A queda da União Soviética
O desastre ecológico Estado das infra-estruturas
Mediocridade informática Reino das máfias Viver sem
a URSS
por Fidel Castro,
Entrevistado por Ignacio Ramonet
[*]
Após a queda, em 1991, da União Soviética e de outros
países do Leste, descobriram-se coisas terríveis. Confirmou-se a
existência de um enorme desastre ecológico, verificou-se que as
infra-estruturas se encontravam num estado calamitoso. A medicina, segundo me
dizia o Comandante, não funcionava
Funcionava com deficiências, mas era dez vezes melhor do que agora.
Descobriu-se que havia dificuldades terríveis na vida quotidiana e
surgiu também uma espécie de reino das máfias, uma
corrupção astronómica. Os próprios quadros do
Partido apoderaram-se de uma grande parte da riqueza nacional. Não
há dúvida: setenta anos de socialismo soviético
não permitiram construir um "homem novo". Todas estas
revelações surpreenderam-no? Afectaram as suas
convicções?
Vou responder-lhe. Você expôs uma lista de questões:
algumas já eram conhecidas, mas muitas conheceram-se depois. Há
que analisá-las bem.
Havia muitas coisas com as quais eu não concordava. Por exemplo, quando
ia a Moscovo, queixava-me porque me punham à perna um pequeno quadro do
Partido, o qual me acompanhava a todo o lado, convertendo-me praticamente numa
propriedade sua. Via pequenas misérias, invejas, egoísmos. Esse
tipo de coisas existiam, mas também se vêem em toda a parte, mas
num grau muito maior nas sociedades capitalistas. Confesso que havia esses
problemas, mas em grau muito menor do que noutras paragens.
Vamos vê-las uma por uma. Diga a primeira.
O desastre ecológico.
É verdade. Não se sabia que no mundo havia um desastre
ecológico, e pode dizer-se que o Ocidente o descobriu primeiro. Marx
pensava que o limite do desenvolvimento das riquezas estava no sistema social e
não nos recursos naturais, como hoje se sabe.
Os soviéticos não conheciam o perigo ecológico, e num
território gigantesco como o da URSS talvez fosse difícil
defender-se dele, mas as catástrofes ecológicas que lá se
descobriram são iguais às da Europa e dos Estados Unidos.
E Tchernobil?
[1]
O desastre de Tchernobil, a única tragédia ocorrida com os tipos
de reactores que não são a água, mas de grafite, causou
efectivamente danos tremendos. Antes dele, porém, houve outros
desastres ecológicos: a destruição que se verificou no
México, na América Central, na América do Sul. Quanto
à selva do Amazonas há uma disputa para se ver como será
possível salvá-la. A devastação ecológica
é universal, não se pode atribuí-la realmente à
URSS.
Mas falemos, por exemplo, do mar de Aral. Os soviéticos tomaram
decisões para desviar os rios e o mar de Aral está a desaparecer,
por razões de gigantismo produtivista.
Mas não é um problema exclusivo. Discutiu-se muito, desde
Khruchtchev até Brejnev e outros. Queriam produzir. Por exemplo, no
Kazaquistão desenvolveram a produção de trigo e todos
procuraram incrementar a produção. Também quiseram
cultivar as chamadas estepes da fome no Usbequistão eu estive
lá, e então trouxeram água de uns rios que vinham das
montanhas. Produziam milhões de toneladas de algodão. Penso que
foi uma aplicação incorrecta da técnica. Não
sabiam, nem sequer suspeitavam, que julgando fazer uma grande coisa, podiam
provocar um enorme desastre ecológico. Lembro-me de que Khruchtchev me
falou desse tipo de plano, a conquista de novas terras, a
superprodução. Estavam empenhados em fazer as mesmas coisas que
os Estados Unidos. E enquanto prosperava a agricultura, a sementeira de
regadio, etc., aumentavam os problemas dos resíduos salinos.
Também nós estamos a descobrir certas coisas. A
Revolução utilizou herbicidas: quando a produção de
açúcar se elevou a 8 milhões de toneladas, se não
se recorresse a esses produtos químicos num momento dado, não
podia haver indústria agrícola. Quanto aos fertilizantes, bom, o
fertilizante num dado momento salvou a humanidade, e em geral a humanidade
não poderia sequer pensar em alimentar mais de 6 500 milhões de
habitantes, permanecendo grande parte, desnutrido e faminto, o Terceiro Mundo.
Contudo, recordo um livro de Voisin
[2]
que se intitulava
Hierba, Suelo y Cáncer
(Erva, Solo e Cancro). Analisava o efeito do potássio no
desenvolvimento de determinados cancros li muitos desses livros, tinha
um interesse especial pela agricultura, o perigo do excesso de potássio.
Os tubérculos em geral precisam dele: para a bananeira ou a
cana-de-açúcar aplicam-se o nitrogénio, o fósforo e
o potássio.
Há uma série de produções de alimentos, entre eles
os cereais, que precisam dos três elementos.
Hoje conhecem-se muitos efeitos indesejáveis e antes
inacreditáveis do abuso dos fertilizantes e dos herbicidas. Rachel
Carson escreveu
The Silent Spring
(A Primavera Silenciosa), que muito me ensinou. Hoje estudam-se os genes. Mas,
há vinte anos, destes últimos pouco se sabia, a genética
regia-se pelas leis de Mendel, aquelas descobertas a partir das ervilhas
ajudaram muitíssimo a genética tradicional mediante a
combinação de cromossomas e genes. Não se conhecia a
engenharia genética, não se haviam produzido transferências
de genes de uma célula para outra. Nós trabalhamos muito a
genética tradicional e depois vimos as possibilidades da engenharia
genética, a qual também desenvolvemos. Hoje dispões de
medicamentos produzidos por esses métodos, vacinas ou fármacos
que não têm origem natural. As de origem natural podem estar
contaminadas com outros elementos, pelo que fazer uma vacina sintética
dá muito mais segurança do que uma vacina natural.
Houve um tempo em que pareceu que a ciência resolveria tudo. Hoje
descobrimos que não é assim. O desafio torna-se mais
difícil porque também não podemos renunciar a ela. A
ciência terá de resolver muitos problemas que ela mesma cria.
Salvar a espécie será uma tarefa de titãs, mas nunca
será possível através de sistemas económicos e
sociais em que só o lucro e a publicidade decidam.
Ou seja, trata-se de questões muito complexas e profundas não
resolvidas pelo homem, e das quais não se pode culpar, longe disso, a
antiga URSS.
O estado calamitoso das infra-estruturas, das vias de
comunicação, o caminho-de-ferro, as estradas, o telefone, a
electricidade, tudo em péssimo estado.
Eu não tenho qualquer interesse em defender seja o que for de mau que os
soviéticos tenham feito, que isto fique bem claro. Cheguei a pensar, e
penso ainda, que sem a industrialização acelerada à qual
esse país se viu obrigado, em grande parte por culpa do Ocidente, que o
bloqueou, o invadiu e lhe impôs a guerra, a URSS não se teria
salvo da bota nazi, teria sido derrotada. Eles, em plena guerra, foram capazes
de transportar fábricas, implantá-las em terrenos cobertos de
neve e fazê-las produzir quando ainda lhes faltava o tecto. Foram
protagonistas de uma enorme proeza, uma das mais meritórias daquela
guerra, onde se cometeram tantos erros políticos previamente. Aqui se
justificam as minhas maiores criticas pelos erros cometidos.
Recordando as nossas relações com eles, que duraram mais de 30
anos até ao colapso, penso que os soviéticos tinham gasolina de
sobra, porque a gasolina é o que fica depois de produzir o
fuelóleo (
fuel-oil)
e o gasóleo para a indústria, os transportes e a agricultura.
Eles não desenvolveram uma sociedade consumista, saturada de
automóveis particulares e grandes consumidores de gasolina como acontece
nos Estados Unidos e na Europa Ocidental. Creio que fizeram muito bem. A minha
ideia é que a gasolina sobrava e, na década de 1960, a URSS
não teria mercado para ela. Não se encontra outra
explicação para o incrível consumo dos motores a gasolina
de camiões, camionetas, jipes e automóveis soviéticos.
Quem o há-se saber melhor do que nós, que adquirimos dezenas de
milhares e, em trinta anos, nunca nos faltou um barco da frota soviética
a trazer gasolina? É justo dizer-se que também nunca deixou de
chegar um barco com petróleo, fuelóleo ou gasóleo. Os
equipamentos com motores diesel eram muito mais eficientes.
Mas, na realidade, tinham atrasos tecnológicos em diversas esferas da
economia produtiva, e isso teve o seu preço na luta do socialismo face
ao imperialismo e seus aliados. O curioso é que a URSS era o país
que mais centros de investigação criou, mais
investigações levou a cabo, e, exceptuando a esfera militar, o
que menos aplicou na sua própria economia o caudal de
invenções que desenvolveu.
As estradas eram estreitas. Talvez por razões de segurança
não desenvolveram grandes auto-estradas. Por razões de
segurança as suas linhas férreas tinham bitola diferente das da
Europa. Neste meio de transporte sim, deram passos assinaláveis em
frente. Talvez os seus carros não fossem muito luxuosos, mas o comboio
da Sibéria chegava a muitos milhares de quilómetros de
distância e o sistema ferroviário, sem dúvida muito mais
económico que o transporte rodoviário a grandes distâncias,
chegava a todos os cantos daquele imenso país. Os automóveis
particulares consomem hoje a maior parte da gasolina que as refinarias
produzem. Nos Estados Unidos o consumo diário ultrapassa os 8,5
milhões de barris, algo realmente insustentável e que contribui
para o rápido esgotamento das reservas provadas e prováveis de
petróleo no mundo.
E nem a informática desenvolveram, apesar de terem milhares de
engenheiros, o que à partida lhes dava uma elevada capacidade.
Como explica isto?
Isso não tem justificação, é falta de visão.
É inacreditável. Os ianques, pelo contrário, trataram de a
desenvolver a toda a velocidade. Em algumas coisas, os soviéticos foram
medíocres; porém, isso não acontecia nas
investigações, o problema estava na sua aplicação.
Eles tinham mais investigação, chegaram ao espaço antes
dos outros, e não se chega ao espaço sem informática.
Esse erro foi evitado em Cuba? Preocupam-se com o desenvolvimento da
informática?
No nosso país houve momentos em que não se ensinava
informática nem mesmo nas universidades. Avançámos a pouco
e pouco, começando exactamente pelas universidades. Depois
criámos 170 clubes juvenis de informática, e não há
muito elevámos esse número a 300, com o dobro dos computadores em
cada clube. O essencial é que hoje, no nosso país, o ensino da
informática começa na idade pré-escolar. Cem por cento das
crianças e dos jovens, desde o jardim-escola até à
universidade, contam com os seus laboratórios de informática, e
descobrimos as possibilidades enormes que isso nos oferece. Também se
utilizam exaustivamente os meios audiovisuais na educação de
crianças, adolescentes, jovens de toda a população. Para o
uso destas técnicas, os painéis solares, com um custo e gasto
mínimos, fornecem a electricidade necessária em cem por cento das
escolas rurais que dela careciam.
Já entrámos na etapa de massificação e trabalhamos
intensamente noutras áreas da informática: estão a
formar-se dezenas de milhares de programadores e desenhadores de programas. E
criámos já vai no quinto curso , uma Universidade
das Ciências Informáticas, com alunos seleccionados entre os
melhores de todo o país, na qual ingressam dois mil alunos por ano.
Ainda a URSS. Quando a União Soviética se extinguiu, surgiu uma
espécie de reino de máfias por todo o lado. Descobriu-se uma
corrupção gigantesca: os soviéticos não tinham
conseguido inocular valores éticos, mas, pelo contrário, havia-se
criado uma espécie de corrupção generalizada.
Ora vejamos. O capitalismo é um criador de todo o tipo de germes. Quem
inventou a máfia foi o capitalismo. Todos esses germes de
corrupção estão presentes. No socialismo também os
há, porque as pessoas têm necessidades, tu tens de semear valores,
promovê-los. Nós lutámos e continuamos ainda hoje a
lutar, e muito , porque uma revolução começa
acabando com todas as leis. Recordo-me que descobrimos a existência de
uma cultura dos ricos e uma cultura dos pobres. A dos ricos, muito decentes:
compro, pago. A dos pobres: como posso conseguir isto aqui? Como vou roubar o
rico ou seja lá quem for?
Muitas famílias humildes, boas, patriotas, diziam ao filho que
trabalhava por exemplo na hotelaria: "Escuta, traz-me um lençol,
traz-me uma almofada, traz-me isto, traz-me aquilo". Estas atitudes nascem
da cultura da pobreza, e quando se fazem as mudanças sociais para
transformar tudo, os hábitos perduram durante muito tempo.
Se este socialismo desaparecesse de Cuba, por termos seguido os conselhos de
Felipe González
[3]
e de toda essa gente, também aqui, e em altíssimo grau, teriam
desabrochado as máfias, e todo o pior do capitalismo, incluindo drogas e
crimes. Há sectores completos da nossa sociedade que ainda não
conseguimos mudar, e o entusiasmo que temos é que vemos com toda a
clareza como transformá-los progressivamente, mediante uma verdadeira
revolução educacional.
Também na União Soviética isso deve ter ocorrido.
Não sei realmente em que grau existiu na URSS isso que você diz,
porque a URSS tinha bastantes escolas, desenvolviam profusamente as
investigações, as universidades tinham um bom nível.
Seja como for, o homem é o homem, não podemos idealizá-lo.
Felizmente é grande a minha confiança: penso que este ser humano,
com todos os seus defeitos e limitações, tem capacidades
suficientes para se preservar e inteligência bastante para se melhorar.
Se eu não acreditasse nisso, não teria uma razão para
lutar até à morte. Diria: "Olhem, isto não tem
remédio, isto vai falhar de qualquer maneira". De modo que tu podes
fazer todas as comparações possíveis, e creio que uma
razão ou outra podem explicar o que parece não ter
justificação. Há fenómenos que são de outra
natureza.
Vocês não realizaram em Cuba aquilo a que, no tempo de Gorbatchev,
se deu o nome de
perestroika,
revisão geral do funcionamento do sistema. Acha que aqui não
era necessária uma perestróica e que isso ajudou a preservar a
Revolução?
O que lhe posso dizer é que, na União Soviética, ocorreram
fenómenos históricos que aqui não se deram. Aqui
não houve estalinismo; no nosso país nunca se conheceu um
fenómeno desse carácter: abuso de poder, culto da personalidade,
estátuas, etc. Aqui, logo no início da Revolução,
foi promulgada uma lei que proibia que se desse o nome de dirigentes vivos a
uma rua, a uma obra, ou que se lhes erigisse uma estátua. Aqui
não há retratos oficiais nas repartições
públicas: sempre fomos firmemente contra o culto da personalidade. Tal
culto não passou por aqui.
Nós não temos de rectificar erros que se cometeram noutros lados.
Também não houve colectivização forçada de
terras, foi coisa que nunca aconteceu no nosso país. Sempre
respeitámos um princípio: a construção do
socialismo é tarefa de homens livres que queiram construir uma sociedade
nova. Não temos razões para rectificar erros que nunca existiram.
Se tivéssemos feito essa perestróica, os norte-americanos
estariam felizes, porque, de facto, os soviéticos
autodestruíram-se. Se nos tivéssemos dividido em dez
fracções e iniciássemos assim uma luta tremenda pelo
poder, nesse caso os norte-americanos sentir-se-iam as pessoas mais felizes do
planeta e diriam: "Vamos finalmente ver-nos livres da
Revolução Cubana". Se nos temos dedicado a fazer reformas
desse tipo, que nada têm a ver com as realidades de Cuba,
ter-nos-íamos autodestruído. Mas não nos vamos
autodestruir, que isso fique muito claro.
Chegou a considerar com interesse os esforços de Gorbatchev para
reformar a URSS?
Olhe, eu tinha uma péssima opinião de tudo o que Gorbatchev
estava a fazer, num dado momento da sua liderança. Agradou-me no
princípio, quando falou de aplicar a ciência à
produção, de avançar pelo caminho de uma
produção intensiva, apoiado na produtividade do trabalho e
não num crescimento extensivo assente em cada vez mais fábricas.
Este caminho já se tinha esgotado e havia que seguir pela via da
produção intensiva. Mais produtividade e mais produtividade,
aplicação intensiva da técnica ninguém podia
discordar disto. Falou também da sua oposição aos ganhos
não provenientes do trabalho. Eram palavras de um verdadeiro
revolucionário socialista.
Essas foram as primeiras declarações de Gorbatchev, que sempre
tiveram a nossa plena concordância, e ele também se opôs ao
excesso de consumo de álcool, o que me pareceu muito correcto. Bom,
creio que lá não é assim tão fácil lidar com
este problema, exigia uma prédica longa, porque os russos sabem
há muito tempo como se produz a vodca, a aguardente, num qualquer
alambique. Até conversei com ele sobre este tema, essas coisas
interessavam-me.
Eu explicava-lhe também a necessidade de a URSS ter outros
métodos nas relações com os restantes partidos, de ser
mais aberta nas suas relações, não só com os
partidos comunistas, mas também com as forças de esquerda e com
todas as forças progressistas.
Eles tinham com os demais partidos comunistas pró-soviéticos uma
atitude bastante hegemónica, ou não?
Eu não sou dos que se põem a criticar os personagens
históricos satanizados pela reacção mundial para agradar
aos burgueses e aos imperialistas. Mas não vou cometer a tontice de
não me atrever a dizer algo que tenho o dever de dizer. Na União
Soviética, pelas tradições de governo absoluto,
mentalidade hierárquica, cultura feudal ou o que quer que seja, criou-se
a tendência para o abuso de poder e, em especial, o hábito de
impor a autoridade de um país, de um Estado, de um partido
hegemónico, aos outros países e partidos.
Mantivemos relações, durante mais de quarenta anos, com o
movimento revolucionário na América Latina, e
relações de grande proximidade. Nunca nos ocorreu dizer a quem
quer que fosse o que devia fazer. Íamos descobrindo, além disso,
o zelo com que cada movimento revolucionário defende os seus direitos e
as suas prerrogativas. Recordo momentos cruciais: quando a URSS desabou, muita
gente ficou só, e entre essa gente estávamos nós, os
revolucionários cubanos. Mas nós sabíamos o que
devíamos fazer. Os demais movimentos revolucionários travavam em
muitos lados a sua luta. Não vou dizer quais, não vou dizer quem;
mas tratava-se de movimentos muito sérios. Perante aquela
situação desesperada, a queda da URSS, perguntaram-nos se deviam
continuar a lutar, ou se negociavam com as forças opostas procurando uma
paz, mesmo sabendo-se ao que conduziria uma tal paz.
Eu dizia-lhes: "Vocês não nos podem pedir a nossa
opinião, a luta é vossa, quem poderá morrer são
vocês, não somos nós. Nós sabemos o que estamos
dispostos a fazer; mas isso só vocês o podem decidir. Apoiaremos a
vossa decisão, seja ela qual for". Ali estava a mais extrema
manifestação de respeito pelos demais movimentos. E não na
tentativa de impor na base dos nossos conhecimentos e experiências
e do enorme respeito que sentiam pela nossa Revolução o
peso dos nossos pontos de vista. Nesse momento não podíamos
pensar nas vantagens ou desvantagens, para Cuba, das decisões que
tomassem: "Decidam vocês!". E assim cada um deles, em momentos
decisivos, adoptou a sua linha.
Conheceu Boris Ieltsine?
Sim. Conheci Boris Ieltsine, era um destacado secretário do Partido em
Moscovo, com muitas e boas ideias: o propósito de dar resposta
às necessidades da capital, o desenvolvimento dessa cidade. Eu instei-o
convictamente a que preservassem as partes históricas, que as não
destruíssem. Ieltsine tinha a ideia de criar estufas para abastecer
Moscovo. Era muito crítico e muito exigente com todos os quadros, de tal
modo que publicávamos os discursos de Ieltsine pelo rigor com que
criticava deficiências, falhas. E eu disse-lhe: "Cuidem dos
edifícios patrimoniais, porque vocês quase fizeram desaparecer a
antiga Moscovo, construíram outra". Ele fez escala aqui, quando
visitou a Nicarágua, e conversou muito connosco.
Bom, um dia em que eu estava de visita a Moscovo, põem o Ieltsine como
meu anfitrião especial, e estou eu a falar-lhe de algumas coisas, de
como é incompreensível que alguns dos produtos mantenham os
mesmos preços, desde há 40 anos, pois escasseavam e davam lugar a
alguns problemas. O caviar tinha o mesmo preço que na época de
Estaline. Digo-lhe: Ainda por cima vocês mantêm alguns
produtos tão baratos que os desperdiçam. O pão está
demasiado barato dizia-lhe eu , e muita gente compra pão
para produzir frango com esse pão e vendê-lo no "mercado
livre camponês". Eu via muitos gastos, muitos desses produtos
superbaratos, antieconómicos, quando tantas coisas haviam mudado no
país e no mundo, a massa monetária tinha-se multiplicado, e
às vezes não eram bens essenciais. Prestava-se a todo o tipo de
dissipação e desvio de recursos.
Havia ali uma contradição: aquele mercado livre camponês
que vendia ao preço que lhe dava na gana. E também a teoria
os norte-americanos usavam esse argumento em defesa da propriedade
privada de que uma altíssima percentagem dos alimentos era
produzida pelo kolkosiano em pequenas parcelas; não sei as percentagens
exactas, mas o que eles não diziam é que o kolkosiano produzia
ovos baratos e carne barata porque utilizava os cereais da
produção sovkosiana ou estatal, que era muito barata, e
você pode criar numa área de 15 por 15 metros duas
mil galinhas, três mil galinhas, mesmo cinco mil galinhas. E até
várias vacas de alta produção.
Vocês experimentaram isso aqui?
Sim. Uma vez fizemos uma experiência, utilizando a luz eléctrica,
sobre a quantidade de leite que se podia produzir por metro quadrado e a
quantidade de quilos de forragem que se podia produzir por metro quadrado.
Fizemos essa experiência, que tinha a ver com a energia que se gastava a
partir de uma superfície de um hectare; você podia em teoria
construir na cidade um edifício de vinte andares, e esse hectare. Se se
dispusesse de luz, água, fertilizantes e uma ou várias vacas de
alta produção. Não se sabe o que dá uma vaca! A
vaca alimenta-se de vegetais, quase sem grãos, dos quais surgem
suculentos gomos verdes fertilizados, ricos em proteínas. Nós
tivemos de estudar a sério tais problemas nos primeiros anos da
Revolução. De modo que falávamos sobre esses temas
Ieltsine e eu. Quando ele ainda não era presidente da Rússia,
falávamos de tudo.
De como funcionavam as coisas na União Soviética?
Repare, uma viagem no carro eléctrico custava quatro centavos, o metro
creio que cinco centavos, isso dava lugar a que as pessoas viajassem demasiado
de um lado para outro de Moscovo. Eu explicava a Ieltsine o que se passava
connosco em relação a isso, porque ele me disse num dado momento:
"Penso que os transportes deviam ser gratuitos". E eu respondi-lhe
com o conselho de que os transportes não fossem gratuitos: argumentei
que deviam ter um preço razoável, nem que fosse somente para
poupar o número de viagens não necessárias que as pessoas
fazem com o transporte gratuito. Porque, uma vez aqui, em Cuba,
entregámos a um nosso companheiro que era secretário regional do
Partido quando existia a região, que era menos que uma
província e mais do que um município , conjunto de
autocarros e ele, sem consultar ninguém, estabeleceu o transporte
intermunicipal gratuito. Coisas que a gente fazia. Pôs grátis o
transporte, por sua conta e, claro, isso custou-lhe uma discussão
tremenda e uma duríssima crítica que eu lhe fiz.
Os transportes eram aqui quase gratuitos, e as pessoas, em vez de caminharem
dez quarteirões, sete quarteirões, tomavam o autocarro para fazer
esse percurso, normalmente nem o pagavam, não dava tempo, ou pagavam o
correspondente a 700 metros, 800 metros, o que multiplica o consumo
desnecessário. Tive isto presente na conversa com Ieltsine por
isso o aconselhei a não tornar grátis os transportes e outros
serviços similares, em nada parecidos com a educação e a
saúde. E sei também que havia muitas coisas quase gratuitas
porque os preços eram inamovíveis. O certo é que durante
aquela visita me encontrei várias vezes com Ieltsine, e realmente
naquele tempo tínhamo-lo em grande consideração pelo seu
radicalismo. Tudo isto se passou bastante tempo antes da catástrofe da
desintegração.
Como eram as suas relações com Gorbatchev?
Acontecia o mesmo. Houve boas relações com Gorbatchev. O
Raúl conhecia-o há vários anos, desde uma visita que fez
à União Soviética. Tinham relações de
amizade. Eu falei muito com ele, conheci-o, conversámos com
frequência. Tratava-se de um homem muito inteligente, essa era uma das
suas características. Connosco foi realmente muito amistoso, portou-se
como amigo, e era visível o seu respeito pela Revolução
Cubana. Enquanto exerceu o poder na União Soviética fez todo o
possível para não prejudicar os interesses de Cuba e as
relações positivas com o nosso país. Um homem com boas
intenções, porque não tenho dúvidas de que
Gorbatchev tinha a intenção de lutar por um
aperfeiçoamento do socialismo, não ponho isso em causa.
Mas não conseguiu encontrar soluções para os grandes
problemas que o seu país enfrentava. Desempenhou, indiscutivelmente, um
papel importante nos fenómenos que se desencadearam na União
Soviética e na derrocada posterior. Não conseguiu evitar a
desintegração da União Soviética, não a
soube preservar como grande país e como grande potência. Pelo
contrário, os seus erros e as suas debilidades ulteriores
contribuíram para isso. Nós sugerimos-lhe, como disse, que para
os congressos, para as efemérides que eles organizavam, convidasse
não só os partidos comunistas mas também outras
forças de esquerda e progressistas. Sofremos os efeitos de um
furacão, telefonou-nos e enviou-nos uma ajuda, tudo muito bem. Fizeram
um plano inicial, que era bom, já o disse, na base das ideias relativas
à produção intensiva que era preciso desenvolver.
Depois começaram as concessões na esfera da política
internacional, as concessões no armamento estratégico, em tudo, e
um dia Gorbatchev até pediu a assessoria de Felipe González e do
PSOE. Contou-mo ele mesmo, creio que num dos parágrafos de uma carta. A
sua situação era já muito complicada. Li-o com espanto,
mas sem surpresa. Resignei-me à realidade de que o socialismo na URSS
havia retrocedido cem anos.
Em algum momento consideraram que a vossa segurança era garantida pelo
poderio militar da União Soviética?
Nunca. Em determinado momento chegámos à convicção
de que, se fôssemos atacados directamente pelos Estados Unidos, os
soviéticos nunca lutariam por nós. Nem podíamos pedir que
o fizessem. Com o desenvolvimento das tecnologias modernas, era ingénuo
pensar, ou pedir, ou esperar que aquela potência lutasse contra os
Estados Unidos, se estes interviessem na ilhazita que estava aqui a 90 milhas
do território norte-americano.
E chegámos à convicção total de que esse apoio
nunca viria. Mais ainda: perguntámo-lo directamente aos
soviéticos, vários anos antes do desaparecimento da URSS.
"Digam-no com franqueza". "Não!" responderam.
Sabíamos que era isso que iam responder. E então, mais do que
nunca, acelerámos o desenvolvimento da nossa concepção e
aperfeiçoámos as ideias tácticas e estratégicas com
as quais esta Revolução triunfou e venceu mesmo no terreno
militar um exército cem vezes mais numeroso em homens e não se
sabe quantas vezes mais poderoso em armas. Depois dessa resposta,
arreigámo-nos mais do que nunca nas nossas concepções,
aprofundámo-las e fortalecemo-nos a um nível tal que nos permite
afirmar hoje que este país é militarmente invulnerável
mas não o é em virtude de armas de
destruição maciça.
Quando a URSS se desmoronou, muitos previram também o desabamento da
Revolução Cubana. Como é que resistiram?
Quando a URSS e o campo socialista desapareceram, ninguém apostava um
cêntimo na sobrevivência da Revolução Cubana.
O país sofreu um golpe brutal quando, de um dia para o outro, ruiu a
grande potência e nos deixou sós,
sozinhitos,
e perdemos todos os mercados para o açúcar e deixámos de
receber víveres, combustível, até a madeira para dar uma
sepultura cristã aos nossos mortos. Ficámos sem
combustível de um dia para o outro, sem matérias-primas, sem
alimentos, sem artigos de higiene, sem nada. E todos pensavam: "Isto vai
cair" e alguns idiotas continuam a acreditar que isto vai ruir e
que, se não ruir agora, desabará depois. Quanto mais
ilusões eles tiverem e mais pensarem nisso, mais devemos nós
pensar, e mais devemos nós tirar as conclusões, para que jamais a
derrota possa dominar este povo glorioso.
Os Estados Unidos apertaram ainda mais o bloqueio. Surgiram as leis Torricelli
[4]
e Helms-Burton
[5]
, ambas de carácter extraterritorial. Os nossos mercados e fornecedores
fundamentais desapareceram abruptamente. O consumo de calorias e
proteínas reduziu-se quase a metade. O país resistiu e
avançou consideravelmente no campo social. Hoje já recuperou
grande parte das suas necessidades nutritivas e avança aceleradamente
noutros campos. Mesmo nessas condições, a obra realizada e a
consciência criada durante anos operaram o milagre. Porque resistimos?
Porque a Revolução contou sempre, conta e contará cada vez
mais com o apoio do povo, um povo inteligente, cada vez mais unido, mais culto
e mais combativo.
NOTAS
1- A 26 de Abril de 1986, na central nuclear de Tchernobil, a norte da Ucrânia
e a só 12 quilómetros da fronteira com a Bielorússia, aconteceu o maior
desastre nuclear da história.
Inicialmente, as autoridades ocultaram da população e do mundo as verdadeiras
dimensões da catástrofe, que causou centenas de mortos e dezenas de milhares de
pessoas ficaram contaminadas por matérias radiactivas.
2- André Voisin (1903-1964), engenheiro-agrónomo francês, autor de
Hierba, Suelo y Cáncer,
Tecnos, Madrid, 1961.
3- Felipe Gonzáles (n. 1942), dirigente do Partido Socialista Operário Espanhol
(PSOE), foi presidente do Governo de Espanha, de 1982 a 1996.
4- Promulgada em 1992, a Lei Torricelli estabelece duas sanções fundamentais:
1) proibir o comércio de filiais de companhais norte-americanas estabelecidas
em terceiros países com Cuba; 2)
proibir os barcos que entrem em portos cubanos, com fins comerciais, de
atracarem em portos dos Estados Unidos
ou em portos de países que sejam possessões norte-americanas, durante os 180
dias seguintes à data em que abandonaram um porto cubano.
5- Jessie Helms, presidente da Comissão de Negócios Estrangeiros do Senado e
senador da Carolina do Norte, e Dan Burton, representante de Indiana na Câmara
de Representantes, apresentaram uma lei aprovada pelo presidente Bill
Clinton a 12 de Março de 1996 sobre o "direito das pessoas afectadas
pela Revolução Cubana" e sobre as "medidas a adoptar contra
aqueles que negoceiam com Cuba". Consulte-se:
www.cubavsbloqueo.cu/especiales/lhb/ley_hb_intro.htm
.
[*]
Capítulo 17 de
Fidel Castro - Biografia a duas vozes,
de Ignacio Ramonet,
Campo das Letras
, Porto, 2006, 632 pgs., ISBN 989-625-120-7.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
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