Ler a linguagem do inimigo
Alla Glinchikova, do Instituto de Estudos sobre a Globalização e
os Movimentos Sociais, da Rússia, referia-se neste fórum à
utilização da linguagem do inimigo. Há que conhecer essa
linguagem, e também as ideias do inimigo.
Concordo em que não haverá no século XXI um só
socialismo e sim vários socialismos, que partem das experiências
anteriores e que sem dúvida devemos estudar a fundo. Mas não
basta que nós os de esquerda, os socialistas, os revolucionários
e os que assim pensam aprofundem e meditem só entre si. Para entender o
que ocorreu na União Soviética há que ler, por exemplo, as
memórias de Margaret Thatcher
The Path to Power
e
The Downing Street Years
, que vejo raramente citada nos círculos da esquerda e que falam
directamente na linguagem do inimigo.
A senhora Thatcher explica quão decisiva foi a estratégia acordada
entre ela e Reagan, que provocou uma viragem na Guerra Fria e a corrida
armamentista com a chamada Guerra das Galáxias. Provocaram uma ferida
mortal na URSS. Obrigaram a sociedade soviética, que queria ser
socialista, a investir desenfreadamente na defesa. Que outra coisa podia fazer
a URSS, se aquilo que lhe vinha por cima era uma guerra nada menos que a partir
do espaço? Conseguiram identificar as lacunas que teria a sociedade e
descobriram que tinham de obrigar os soviéticos a desperdiçar
recursos e inteligências em objectivos que não eram socialistas.
A senhora Tatcher diz que a guerra das galáxias a princípio
pareceu-lhe uma loucura, mas depois compreendeu que este era um objectivo
principal a fim de por fim ao socialismo soviético e à Guerra
Fria. E assim foi.
O que quero dizer com isto? Que não só é útil
olharmos para nós mesmo, a partir de nós mesmos, como
também estudar o que o adversário faz e diz nesse mesmo momento.
Isto tem outro problema e em certas ocasiões um enorme desafio para
todos nós: por vezes há que esperar décadas para conhecer
textos chaves onde se pormenoriza o que faz o inimigo, assim como o que deve
estar a fazer agora mesmo.
Quando analisamos o mundo hoje gosto muito de recorrer a um documento em
inglês elaborado pela Agência Central de Inteligência (CIA):
por muito poder de imaginação que tenham os
revolucionários, é bom ver como a CIA vê o mundo e o
futuro. Numa análise que a Agência tornou pública,
intitulada Tendências global para 2010
(Global Trends 2010),
que no ano 2000 actualizaram até 2015
(Global Trends 2015)
,
projectaram quatro cenários da possível evolução
do mundo, tendo em conta todos os factores: económico, político,
tecnológico, ...
Estes quatro cenários, com diferentes possibilidades de desenvolvimento
do capitalismo neoliberal globalizado, chegam a um mesmo ponto: a
influência dos Estados Unidos da América continuará a
declinar. No entender dos analistas da CIA, que tiveram em conta
informações de muito diversas fontes científicas do
planeta antes dos famosos atentados do 11 de Setembro de 2001, o mundo
já vivia no declínio do poderio norte-americano e previam para o
futuro diferentes cenários, todos com essa característica comum.
Estou certo de que esse relatório foi lido pelos conservadores
norte-americanos, os mesmos que elaboraram a política de uma
administração que por vezes é julgada com certa rudeza
como irresponsável, aventureira, etc. Não, estão a
cumprir uma missão: tentar deter esse declínio que eles sabem
inevitável e reverter digamos à moda antiga "a
marcha da História".
AUTOCRÍTICA DO FIM DA HISTÓRIA
Retornemos ao idioma do inimigo e citemos pessoas que não são da
nossa própria filiação ideológica. Quero mencionar
Francis Fukuyama, possivelmente o homem mais citado na última
década do século passado. Todo o mundo fala dele. Nem todo o
mundo leu o seu livro mais famoso, mas todos conhecem a sua tese fundamental.
Quantos leram os seus estudos posteriores ao seu célebre
O fim da História
? Em 1992 ele publicou este ensaio, mas Fukuyama não teve que esperar
muito tempo para fazer uma séria autocrítica e uma crítica
ao pensamento neoconservador, ao assinalar que o mundo não podia ser
governado. Bastaram dez anos a esse burocrata norte-americano para reconhecer
o erro e gravidade dessa política, para admitir que apesar de haver
emergido vitoriosa e como única superpotência, os Estados Unidos
não podem governar, como ele próprio acreditava nos
inícios dos anos 90.
Outro investigador que não costuma ser mencionado nos círculos da
esquerda é o senhor Jospeh Schumpeter, auto-norte-americano que em 1942
publicou um livro
Capitalism, Socialism and Democracy
onde formulou uma teoria que lhe acarretou muitíssimos carolos
dos seus colegas académicos. Ainda não lhe perdoam sua
declaração desconcertante: "uma forma de socialismo
surgirá inevitavelmente da também inevitável
decomposição do capitalismo".
A única discordância que tenho com o famoso prognóstico de
Schumpeter é sobre a quantidade das formas de socialismo que
surgirão. Inclino-me antes a pensar que não surgirá uma e
sim umas quantas formas de socialismo.
Ele imaginou a situação actual: a vitória final do
capitalismo à escala global e que, quando chegasse a essa fase,
inevitavelmente manifestar-se-ia a sua decomposição e
inevitavelmente uma forma de socialismo. Uma das grandes ironias do
século XX é que a confrontação Leste-Oeste, a
grande batalha que significou a Guerra Fria que nunca chegou a
desencadear-se mas que pôs o mundo em constante inquietação
, foi ganha pelo imperialismo norte-americano, e contudo ao
ganhá-la começou a ascender a sua fase de derrota.
Na América Latina, por razões que foram aqui mencionadas, vivemos
uma etapa que nos permite não só avançar com formas
independentes do socialismo como somos um ponto de referência para outros
que também começam a dar-se conta de que não foi
tão real a vitória do capitalismo, nem se havia detido a
história tão abruptamente como disse Fukuyama.
JULIO ANTONIO MELLA
Se aprofundarmos na nossa história vamos verificar que na nossa
região contamos precisamente com as expressões mais
autênticas do socialismo, com uma visão criadora,
anti-dogmática, inclusive nos dias iniciais desse modelo na Europa.
Impressionou-me muitíssimo a leitura do artigo que, após a morte
de Lenine, lhe dedicou Julio Antonio Mella principal dirigente e
fundador do Partido marxista-leninista de Cuba. Publicou-o em Fevereiro de
1924 num jornal do Partido Comunista de Cuba e intitulou-o "Lenine
coroado". Ninguém no nosso país, naquele momento,
prestou-lhe tal tributo nem tantas homenagens a Lenine como Mella. Ele estava
a falar de uma figura que indubitavelmente respeitou e quis muitíssimo,
mas advertiu que não aspirava reproduzir em Cuba a experiência
bolchevique, que não queria comunistas que seguissem a linha de outro
partido, que o que se propunha seu Partido era contar com seres humanos
pensantes, que não fossem dirigidos, nem domesticados, nem disciplinados
por outros, e sim que estivéssemos "sempre a pensar com a nossa
cabeça", "seres pensantes, não seres conduzidos.
Pessoas, não bestas". Este rapaz ainda não havia
completado 21 anos disse que Cuba queria uma revolução
socialista, mas à cubana.
Além desta figura, há que recordar o paradigma dos
revolucionários latino-americanos, José Carlos Mariátegui,
que também exprimiu algo semelhante há décadas: que o
socialismo na América não será um decalque nem
cópia e sim criação heróica. Se é
criação, não pode ser um só, tem que ser diverso,
deve fundar com heroísmo um socialismo aqui e outro acolá.
É o que estamos vivendo, como afirmou o presidente Rafael Correa:
"não uma época de mudança e sim uma mudança de
época", que tem a ver com esta fase declinante do imperialismo
norte-americano.
Faz-nos falta uma teoria para a fase actual do capitalismo globalizado
neoliberal, que tenta deter sua queda e reimpor-se sobre o mundo.
Por que os Estados Unidos gastam hoje muito mais em recursos militares do que
todos os países da Terra juntos, mais do que quando havia Guerra Fria?
Por que essa incessante produção de novos e novos instrumentos de
morte de guerra? Para atacar a União Soviética? Para atacar o
Eixo do Mal? Claro que não. Por um lado, é o reflexo de uma
economia enferma numa sociedade enferma a Thatcher sabia que aquele
armamentismo irracional precipitaria a destruição da URSS,
enquanto para os Estados Unidos e a Grã Bretanha significava mais lucros
para os monopólios e a indústria armamentista. E, por outro
lado, se se produzem estas ofensivas tão violentas que copiam o fascismo
e reproduzem os mecanismos da época da Guerra Fria é porque
estão na defensiva, cercados diante do avanço dos povos.
Sem dúvida faz-nos falta uma teoria para a fase do capitalismo
neoliberal que tenta deter a sua queda. Vivemos num mundo que nos oferece
muitas possibilidades, mas que também tem grandes riscos, ilustrado com
infinitas evidências no actual regime norte-americano. Não sei o
que se vai passar nas próximas eleições, mas o que
não tenho a menor dúvida é que o senhor que hoje
está na Casa Branca não chegou ali por acaso. É o
resultado da acção dos grupos de poder que existem nos Estados
Unidos, cuja mentalidade deveria causar pelo menos ansiedade e grande
preocupação a todo o ser humano minimamente responsável.
ONDE ESTÁ LUIS POSADA CARRILES?
A América Latina é testemunha de como, para impedir a queda,
são capazes de recorrer a qualquer coisa. Cometeria uma falta
imperdoável se não mencionasse porque digo isto. A jornalistas
que me fazem as perguntas de sempre como está Fidel?, quando
volta ao poder?, etc respondo-lhes: onde está Luís Posada
Carriles? É o que deveriam perguntar e, a propósito, denunciar
que há mais de dois anos a República Bolivariana da Venezuela
solicitou a extradição deste homem, que prossiga o julgamento que
aqui se fazia.
Perante as duas possibilidades que tem diante de si extraditá-lo
para a Venezuela ou julgá-lo imediatamente nos Estados Unidos, como
obrigam os acordos internacionais Bush descobriu uma fórmula
melhor: ignorar o assunto, não fazer caso. Algum dia pode ser que
conheçamos alguns documentos escritos na língua do inimigo onde
estes senhores explicam como foi que se conluiaram na obscuridade para salvar
Posada Carriles. Que significa isso na prática? Simplesmente dizer a
Cuba, a Venezuela e aos demais povos desta região que o que torturou, o
que assassinou, o que mandou matar tanta gente inocente, vai continuar a contar
com o favor dos Estados Unidos. E ao mesmo tempo apresenta-nos a outra face da
moeda: a situação dos cinco cubanos, com quadro prisões
perpétuas e 75 anos de prisão, por descobrir os planos dos
Posadas Carriles que eles protegem e que se dedicam a exercer o terrorismo
contra os nossos países.
The New York Times
publicou na semana passada as declarações do
Departamento de Justiça acerca de Leandro Aragocillo, um norte-americano
de origem filipina condenado por espionagem. Apreenderam-lhe nada mais nada
menos que 733 documentos secretos da Casa Branca, do Pentágono, do
Departamento da Defesa e de outros lugares. Condenaram-no a dez anos de
prisão. Tenho compatriotas meus condenados com quatro prisões
perpétuas sem que lhes houvessem encontrado nem um pedacito de papel
comprometedor. Condenaram-nos sem haver apresentado provas contra eles, e
além disso depois que no tribunal escutaram os depoimentos das
testemunhas que ali compareceram, que disseram que não haver ali
espionagem alguma. A moral: cadeia perpétua se tu vais vigiar Posada
Carriles, dez anos de prisão se tu realmente praticas a espionagem,
inclusive na Casa Branca.
O Departamento da Justiça acrescentou uma frasezinha que me emocionou,
francamente: dez anos é a condenação máxima: se
tiver bom comportamento na prisão, o filipino pode sair muito antes.
Nossos cinco companheiros são professores nas suas prisões:
ensinam inglês, matemática, espanhol. Trabalham nos
escritórios dessas prisões com uma disciplina exemplar. Jamais
foram criticados por mau comportamento, mas estarão encerrados quatro
vidas e 75 anos só por combater o terrorismo.
Qual é a mensagem para os nossos povos? Foi implantado nos Estados
Unidos um regime que é capaz de recorrer a tudo. Não são
absolutos, mas têm força suficiente para destruir a Terra e
destruir todos nós. Por isso, num momento de auge das
aspirações revolucionárias, particularmente na
América Latina, num momento de grandes possibilidades e também de
enormes desafios, necessitamos muito pensamento, muita reflexão e
sobretudo muita união.
[*]
Presidente da Assembleia do Poder Popular de Cuba. Palavras pronunciadas no
painel "La Democracia y el socialismo del Siglo XXI". VI Cumbre
Social por la Unión Latinoamericana y Caribeña, 1 de Agosto de
2007, Caracas.
O original encontra-se em
Cuba Debate
.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|