Será que a quebra de um banco australiano abalará a Wall Street?

O apocalipse australiano

por Mike Whitney [*]

. A actividade segunda-feira na Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE) foi realmente insólita. Começou com a Casa Branca a anunciar que o défice fiscal deste ano ascenderia até uma altura récord de quase US$500 mil milhões. Isso foi seguido pelas notícias da alta dos preços de petróleo, ganhos trimestrais fracos, e uma desaceleração do consumo. Pelo meio da manhã, os mercados se achavam em plena retirada. Foi aí que o gigante de investimentos Merryll Lynch anunciou que afixaria uma perda de $4 mil milhões de dólares no segundo trimestre e cancelamentos de US$9,4 mil milhões de obrigações de dívida colateralizada (CDOs) e outros activos relacionados a hipotecas. As acções rapidamente foram abaixo e o massacre começava. Ao tocar do sino que encerrava o dia, a média Dow Jones — principal índice da NYSE — havia baixado 240 pontos. Os negociadores saíram cambaleando da bolsa, debruçados e desgrenhados, parecendo haverem recebido um aviso de alistamento do exército.

No entanto, terça-feira, o mercado protagonizou uma valente recuperação, ao subir 260 pontos em questão de horas. Era o bastante para dar aos gerentes dos fundos um pouco de alívio e a esperança de que as coisas estavam finalmente a mudar. Mas as mágoas do mercado estão longe de acabarem. O Fundo Monetário Internacional o resumiu numa advertência emitida no começo da semana:

"Os mercados financeiros globais encontram-se 'frágeis' e os indicadores de risco sistêmico continuam 'elevados'… A qualidade do crédito 'através de muitas classes de empréstimos começou a deteriorar com preços imobiliários em declínio e a desaceleração do crescimento económico'. As folhas de balanço dos bancos estão sob um 'stress renovado' e o declínio no preço das acções bancárias tornou mais difícil o levantamento de novos capitais. [Existe uma] probabilidade maior de uma interacção negativa entre o ajustamento do sistema bancário e a economia real'. (Financial Times)

O FMI também manteve a sua previsão anterior de que as perdas totais das instituições financeiras devidas à crise creditícia alcançariam US$1 milhão de milhões de dólares (US$945 mil milhões), uma soma que terá consequências violentas para a indústria, os consumidores e a economia global.

No blog de Nouriel Roubini, o Doutor Calamidade (Doctor Doom) fez a seguinte observação sobre os apuros da Merrill Lynch:

"A decisão da Merrill Lynch de 'vender' uma boa parte de suas ODCs restantes a 22 centavos do dólar foi amplamente louvada como um reconhecimento pela firma da amplitude das suas perdas com esses instrumentos [financeiros] tóxicos. Este cacho de US$30,6 mil milhões de ODCs já havia sido rebaixado a US$11,1 mil milhões. Agora com a sua 'venda' à firma Lone Star a um preço de US$6,7 mil milhões, a Merrill Lynch está a assumir mais US$4,4 mil milhões de cancelamentos, e a 'vendê-lo' por 22% do valor original. Mas esta 'venda' baseia-se no mercado? De maneira nenhuma: chamar esta transacção de 'venda' é uma piada." (O Global EconoMonitor de Nouriel Roubini)

De facto. Isto não é uma "venda"; assemelha-se mais ao abandono de um barco que está a afundar. Os caciques do investimento estão a serem torrados pelos seus bens desvalorizados e estão a despejá-los a qualquer custo. Agora não há mercado para instrumento financeiro algum vinculado a ou sustentado por hipotecas, e não haverá até o imobiliário chegar ao fundo.

O negócio da Merrill Lynch ilustra até que ponto chegou a loucura. A Merrill disse que "proporcionará financiamento ao comprador por aproximadamente 75 por cento do preço de compra". Epa! Por outras palavras, os bancos estão tão afobados para livrarem-se do seu papel-lixo que estão quase a pagar à gente para o levarem embora. Ora, isso é que é desespero! Os problemas a assombrarem os mercados financeiros efectuaram polinização cruzada com a economia real e estão a espalhar a miséria por todas as partes. O desemprego está a aumentar, o crescimento está a desacelerar, a inflação está a subir, o dólar está a cair. Já o ouvimos muitas vezes antes, mas ainda nos assombra vermos as acções da General Motors caírem abaixo das da Bed & Bath (produtos de banho), ou a Starbucks (cadeia de cafés) fechar 600 lojas, ou mansões milionárias serem vendidas por US$425 mil.

Agora que o trabalhador está esmagado pela a sua hipoteca, preocupado com a perda do seu emprego, e a tentar manter a comida na mesa, o mínimo que o Congresso pode fazer é dispersar os especuladores do petróleo, certo?

Errado. Na segunda-feira, o Financial Times divulgou que "Uma proposta no senado destinada a travar a especulação e aumentar a transparência nos mercados energéticos foi bloqueada por legisladores republicanos na sexta-feira. A medida frustra os esforços democratas para mostrarem que o partido está a tomar providências para controlar os preços récord de petróleo. A Lei para travar a especulação excessiva, patrocinada por Harry Reid, o líder da maioria no senado, careceu de dez votos para ultrapassar uma barreira procedimental".

A notícia mais assustadora da semana nos chega lá de baixo [1] , pois o National Australia Bank (NAB) anunciou que reduziria em dois terços uma venda de títulos no valor de £400 milhões. A fuga teve lugar dias depois de esse banco de Melbourne horrorizar os mercados ao anunciar uma redução de 90% de seus £550 milhões de haveres da dívida hipotecária estado-unidense, uma admissão de que os seus títulos classificados como AAA eram virtualmente sem valor. A decisão do National Australia Bank de efectuar provisões contabilísticas drásticas em relação à sua dívida hipotecária estado-unidense poderá ter consequências sérias dentro dos próprios Estados Unidos. O banco optou por um cancelamento de 100% de uma parte das "melhores" CDOs no valor de £450 milhões, embora todas elas fossem classificadas como AAA. (Ambrose Evans Pritchard, "A Austrália enfrenta uma crise pior que a da América", UK Telegraph ).

O artigo original apareceu no Business Spectator sob o título "NBA aturdirá Wall Street", por Robert Gottliebsen. "Aturdir" é eufemismo. Isto é mais parecido a um cutelo de açougueiro a vir abaixo: shuuuuc! Este artigo é uma referência indispensável para aqueles que quiserem entender o arrasamento dos mercados financeiros. Eis um trecho extenso do artigo de Gottliebsen:

"A decisão do Banco Nacional Australiano de cancelar 90% dos seus empréstimos estado-unidenses terá repercussões dramáticas em todo o mundo. Wall Street será profundamente abalada quando entenderem as repercussões do que fez o NAB. Está claro que os bancos não tomaram as mais mínimas providências sequer para protegerem-se contra a sua exposição ao risco dos empréstimos imobiliários estado-unidenses que, nas palavras de John Stewart, estão a experimentar um 'desmoronamento'.

"Estamos agora muito além da crise do sub-prime. O NAB diz que está a sofrer uma perda de 55% sobre empréstimos imobiliários estado-unidenses — um evento que nunca acontecera na história de um país desenvolvido na memória recente. Trata-se de um evento sem precedentes e significa agora que o custo da salvação do sistema financeiro estado-unidense agora está muito para além das mais elevadas estimativas. A recessão estado-unidense agora está selada, mas o que é mais alarmante ainda é que perdas de 55% nos empréstimos apontam para a possibilidade de uma depressão.

"Significa que o custo das salvação das duas maiores seguradoras será tão grande que não deixará margem para salvar nada mais, e há vários bancos estado-unidenses que agora estão em sérios apuros. O NAB diz que a desarticulação do mercado imobiliário está separada do mercado empresarial, mas a tendência é inevitável". (The Business Spectator,"NAB will shock Wall Street")

Os conduits são operações fora do balanço efectuadas pelos bancos as quais contêm centenas de milhares de milhôes de dólares em títulos que agora não valem praticamente nada. Até agora, muitos destes bancos não declararam com precisão as perdas decorrentes dessas transacções na esperança de que o mercado imobiliário se estabilizasse e que o valor dos títulos tornasse a subir. A medida tomada pelo NAB é uma 'mudança de jogo'". (Ídem)

Gottliebsen mais uma vez:

"Os bancos globais estiveram a assinalar ao mercado os activos que possuíam no balanço, mas a maioria dos montantes detidos nas chamadas 'conduit trust accounts' não foram escriturados porque não eram comercializáveis. O NAB desvalorizou-as quando viu as hipotecas podres... Os bancos estado-unidenses desvalorizaram U$450 mil milhões em maus empréstimos habitacionais. A revelação do NAB significa que eles agora certamente precisarão efectuar provisões da ordem de US$1 milhão de milhões. Mas desvalorizações de U$1.300 mil milhões ou talvez ainda maiores são expectáveis". (Business Spectator)

[*] Economista, fergiewhitney@msn.com

NT: a Austrália é conhecida como The Land Down Under, ou seja, "a terra lá de baixo".

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/whitney07302008.html . Traduzido por Flávio Américo dos Reis.


Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .

01/Ago/08