A actividade segunda-feira na Bolsa de Valores de Nova Iorque (NYSE) foi
realmente insólita. Começou com a Casa Branca a anunciar que o
défice fiscal deste ano ascenderia até uma altura
récord de quase US$500 mil milhões. Isso foi seguido pelas
notícias da alta dos preços de petróleo, ganhos
trimestrais fracos, e uma desaceleração do consumo. Pelo meio da
manhã, os mercados se achavam em plena retirada. Foi aí que o
gigante de investimentos Merryll Lynch anunciou que afixaria uma perda de $4
mil milhões de dólares no segundo trimestre e cancelamentos de
US$9,4 mil milhões de
obrigações de dívida colateralizada
(CDOs) e outros activos relacionados a hipotecas. As acções
rapidamente foram abaixo e o massacre começava. Ao tocar do sino que
encerrava o dia, a média Dow Jones principal índice da
NYSE havia baixado 240 pontos. Os negociadores saíram
cambaleando da bolsa, debruçados e desgrenhados, parecendo haverem
recebido um aviso de alistamento do exército.
No entanto, terça-feira, o mercado protagonizou uma valente
recuperação, ao subir 260 pontos em questão de horas. Era
o bastante para dar aos gerentes dos fundos um pouco de alívio e a
esperança de que as coisas estavam finalmente a mudar. Mas as
mágoas do mercado estão longe de acabarem. O Fundo
Monetário Internacional o resumiu numa advertência emitida no
começo da semana:
"Os mercados financeiros globais encontram-se 'frágeis' e os
indicadores de risco sistêmico continuam 'elevados'
A qualidade do
crédito 'através de muitas classes de empréstimos
começou a deteriorar com preços imobiliários em
declínio e a desaceleração do crescimento
económico'. As folhas de balanço dos bancos estão sob um
'stress renovado' e o declínio no preço das acções
bancárias tornou mais difícil o levantamento de novos capitais.
[Existe uma] probabilidade maior de uma interacção negativa entre
o ajustamento do sistema bancário e a economia real'.
(Financial Times)
O FMI também manteve a sua previsão anterior de que as perdas
totais das instituições financeiras devidas à crise
creditícia alcançariam US$1 milhão de milhões de
dólares (US$945 mil milhões), uma soma que terá
consequências violentas para a indústria, os consumidores e a
economia global.
No blog de Nouriel Roubini, o Doutor Calamidade (Doctor Doom) fez a seguinte
observação sobre os apuros da Merrill Lynch:
"A decisão da Merrill Lynch de 'vender' uma boa parte de suas ODCs
restantes a 22 centavos do dólar foi amplamente louvada como um
reconhecimento pela firma da amplitude das suas perdas com esses instrumentos
[financeiros] tóxicos. Este cacho de US$30,6 mil milhões de ODCs
já havia sido rebaixado a US$11,1 mil milhões. Agora com a sua
'venda' à firma Lone Star a um preço de US$6,7 mil
milhões, a Merrill Lynch está a assumir mais US$4,4 mil
milhões de cancelamentos, e a 'vendê-lo' por 22% do valor
original. Mas esta 'venda' baseia-se no mercado? De maneira nenhuma: chamar
esta transacção de 'venda' é uma piada." (O Global
EconoMonitor de Nouriel Roubini)
De facto. Isto não é uma "venda"; assemelha-se mais ao
abandono de um barco que está a afundar. Os caciques do investimento
estão a serem torrados pelos seus bens desvalorizados e estão a
despejá-los a qualquer custo. Agora não há mercado para
instrumento financeiro algum vinculado a ou sustentado por hipotecas, e
não haverá até o imobiliário chegar ao fundo.
O negócio da Merrill Lynch ilustra até que ponto chegou a
loucura. A Merrill disse que "proporcionará financiamento ao
comprador por aproximadamente 75 por cento do preço de compra".
Epa! Por outras palavras, os bancos estão tão afobados para
livrarem-se do seu papel-lixo que estão quase a pagar à gente
para o levarem embora. Ora, isso é que é desespero! Os
problemas a assombrarem os mercados financeiros efectuaram
polinização cruzada com a economia real e estão a espalhar
a miséria por todas as partes. O desemprego está a aumentar, o
crescimento está a desacelerar, a inflação está a
subir, o dólar está a cair. Já o ouvimos muitas vezes
antes, mas ainda nos assombra vermos as acções da General Motors
caírem abaixo das da Bed & Bath (produtos de banho), ou a Starbucks
(cadeia de cafés) fechar 600 lojas, ou mansões milionárias
serem vendidas por US$425 mil.
Agora que o trabalhador está esmagado pela a sua hipoteca, preocupado
com a perda do seu emprego, e a tentar manter a comida na mesa, o mínimo
que o Congresso pode fazer é dispersar os especuladores do
petróleo, certo?
Errado. Na segunda-feira, o
Financial Times
divulgou que "Uma proposta no senado destinada a travar a
especulação e aumentar a transparência nos mercados
energéticos foi bloqueada por legisladores republicanos na sexta-feira.
A medida frustra os esforços democratas para mostrarem que o partido
está a tomar providências para controlar os preços
récord de petróleo. A Lei para travar a
especulação excessiva, patrocinada por Harry Reid, o líder
da maioria no senado, careceu de dez votos para ultrapassar uma barreira
procedimental".
A notícia mais assustadora da semana nos chega lá de baixo
[1]
, pois o National Australia Bank (NAB) anunciou que reduziria em dois
terços uma venda de títulos no valor de £400 milhões.
A fuga teve lugar dias depois de esse banco de Melbourne horrorizar os
mercados ao anunciar uma redução de 90% de seus £550
milhões de haveres da dívida hipotecária estado-unidense,
uma admissão de que os seus títulos classificados como AAA eram
virtualmente sem valor. A decisão do National Australia Bank de
efectuar provisões contabilísticas drásticas em
relação à sua dívida hipotecária
estado-unidense poderá ter consequências sérias dentro dos
próprios Estados Unidos. O banco optou por um cancelamento de 100% de
uma parte das "melhores" CDOs no valor de £450 milhões,
embora todas elas fossem classificadas como AAA. (Ambrose Evans Pritchard,
"A Austrália enfrenta uma crise pior que a da América",
UK Telegraph
).
O artigo original apareceu no
Business Spectator
sob o título "NBA aturdirá Wall Street", por Robert
Gottliebsen. "Aturdir" é eufemismo. Isto é mais
parecido a um cutelo de açougueiro a vir abaixo: shuuuuc! Este artigo
é uma referência indispensável para aqueles que quiserem
entender o arrasamento dos mercados financeiros. Eis um trecho extenso do
artigo de Gottliebsen:
"A decisão do Banco Nacional Australiano de cancelar 90% dos seus
empréstimos estado-unidenses terá repercussões
dramáticas em todo o mundo. Wall Street será profundamente
abalada quando entenderem as repercussões do que fez o NAB. Está
claro que os bancos não tomaram as mais mínimas
providências sequer para protegerem-se contra a sua
exposição ao risco dos empréstimos imobiliários
estado-unidenses que, nas palavras de John Stewart, estão a
experimentar um 'desmoronamento'.
"Estamos agora muito além da crise do
sub-prime.
O NAB diz que está a sofrer uma perda de 55% sobre empréstimos
imobiliários estado-unidenses um evento que nunca acontecera na
história de um país desenvolvido na memória recente.
Trata-se de um evento sem precedentes e significa agora que o custo da
salvação do sistema financeiro estado-unidense agora está
muito para além das mais elevadas estimativas. A recessão
estado-unidense agora está selada, mas o que é mais alarmante
ainda é que perdas de 55% nos empréstimos apontam para a
possibilidade de uma depressão.
"Significa que o custo das salvação das duas maiores
seguradoras será tão grande que não deixará margem
para salvar nada mais, e há vários bancos estado-unidenses que
agora estão em sérios apuros. O NAB diz que a
desarticulação do mercado imobiliário está separada
do mercado empresarial, mas a tendência é inevitável".
(The Business Spectator,"NAB will shock Wall Street")
Os
conduits
são operações fora do balanço efectuadas pelos
bancos as quais contêm centenas de milhares de milhôes de
dólares em títulos que agora não valem praticamente nada.
Até agora, muitos destes bancos não declararam com
precisão as perdas decorrentes dessas transacções na
esperança de que o mercado imobiliário se estabilizasse e que o
valor dos títulos tornasse a subir. A medida tomada pelo NAB é
uma 'mudança de jogo'". (Ídem)
Gottliebsen mais uma vez:
"Os bancos globais estiveram a assinalar ao mercado os activos que
possuíam no balanço, mas a maioria dos montantes detidos nas
chamadas 'conduit trust accounts' não foram escriturados porque
não eram comercializáveis. O NAB desvalorizou-as quando viu as
hipotecas podres... Os bancos estado-unidenses desvalorizaram U$450 mil
milhões em maus empréstimos habitacionais. A
revelação do NAB significa que eles agora certamente
precisarão efectuar provisões da ordem de US$1 milhão de
milhões. Mas desvalorizações de U$1.300 mil
milhões ou talvez ainda maiores são expectáveis".
(Business Spectator)
[*]
Economista,
fergiewhitney@msn.com
NT: a Austrália é conhecida como
The Land Down Under,
ou seja, "a terra lá de baixo".
O original encontra-se em
http://www.counterpunch.org/whitney07302008.html
. Traduzido por Flávio Américo dos Reis.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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