Levados pela corrente

A economia em deflação

por Mike Whitney

Poderá haver um modesto aumento do PIB no 4º trimestre de 2009 ou no 1º trimestre de 2010. Será a marca do fim da actual recessão que dura há 20 meses, mas não o fim da crise. O aumento do crescimento não significa que os problemas acabaram ou que a economia está em vias de recuperação. Significa apenas que o estímulo fiscal dos 787 mil milhões de dólares de Obama está a começar a ter efeito, dando impulso aos gastos do consumo e gerando uma actividade económica a curto prazo. Infelizmente, quando o estímulo acabar, a economia escorregará de novo para território negativo. Isto porque o consumidor americano atravessou uma fronteira importante e deixou de ter a capacidade de impulsionar a economia através do consumo alimentado pela dívida. Os dados indicam uma mudança crítica no comportamento do consumidor que anuncia a sua distanciação do actual modelo para o crescimento económico. É um jogo totalmente novo.

Desde meados dos anos 80 até 2007, o rácio dívida/PIB disparou de 165% para mais de 350%, mais do dobro nesse mesmo período. A formação da dívida pessoal segue exactamente a mesma tendência já que o agregado familiar beneficia com o sector financeiro; são faces opostas da mesma moeda. As instituições fiscais aumentam a rendibilidade expandindo o crédito e alimentando as bolhas de valores, em vez de aplicar capital em empresas produtivas. Este modelo de negócios é defeituoso por natureza. O método da Wall Street para transferir a riqueza dos trabalhadores para a classe dos investidores é a criação de bolhas especulativas. Nunca falha. É por isso que existem agora 42 estados com dificuldades orçamentais, o desemprego aumentou para 9,5 por cento, e desapareceram 45 milhões de milhões de dólares dos mercados de acções globais. A financiarização criou uma crise global, esmagou a procura do consumidor, aumentou a instabilidade sistémica e fez com que a economia mergulhasse a pique.

Na década passada, a transferência de riqueza de uma classe para a outra acelerou fortemente devido à desregulamentação e às baixas taxas de juro do FED. Os salários estagnados forçaram participantes relutantes a virar-se para o mercado à procura de melhores retornos para as suas poupanças, enquanto que as frouxas normas de empréstimos e o crédito fácil levaram os trabalhadores a aumentar a sua carga de dívidas pessoais. Tudo isto foi feito com o objectivo de garantir lucros para alguns à custa do bem-estar de muitos.

Wall Street fez aparecer uma miríade de instrumentos de dívida complexos (derivativos e securitização) que foram utilizados para reforçar o poder impulsionador em muitos milhões de milhões de dólares a fim de que os mandarins financeiros e os gestores de hedge funds pudessem arrecadar bónus e salários sumptuosos na linha da frente antes de rebentar o escândalo Ponzi. Na crise actual, a situação chegou ao auge quando dois hedge funds do Bear Stearns ficaram insolventes em Julho de 2007, criando um pandemónio nos mercados de acções quando os mercados de crédito congelaram. Quando os preços das casas entraram em queda e o desemprego aumentou, as famílias não tiveram outra alternativa senão cortar nas despesas do pagamento das dívidas. As enormes dificuldades alteraram profundamente o comportamento do consumidor e elevaram a taxa de poupanças para 6,9% no mês passado, o valor mais elevado em 15 anos. Prevê-se que as poupanças continuem a aumentar apesar das tentativas do FED para relançar a economia com taxas de juro a zero por cento. Uma recente "Economic Letter: US Household Deleveraging and Future Consumption Growth" (Carta económica: desalavancagem familiar nos EUA e futuro crescimento do consumo) do Federal Reserve Bank of San Francisco realça as condições que desencadearam esta profunda alteração no comportamento do consumidor. Eis um excerto alargado:

"A utilização familiar de empréstimos nos EUA, medida pelo rácio da dívida em relação ao rendimento pessoal disponível, aumentou modestamente de 55% em 1960 para 65% nos meados dos anos 80. Depois, durante as duas décadas seguintes, a utilização de empréstimos aumentou para mais do dobro, atingindo um nível sem precedentes de 133% em 2007. Essa incrível subida da dívida foi acompanhada por uma redução regular na taxa de poupança pessoal. A combinação de uma dívida maior e de uma poupança menor possibilitou que os gastos pessoais de consumo crescessem mais rapidamente do que o rendimento disponível, provocando uma explosão significativa do crescimento económico americano durante esse período.

Mas, com a continuação, o consumo não pode crescer mais depressa do que o rendimento porque há um limite superior quanto à dívida que os agregados familiares podem suportar, com base nos seus rendimentos. Para muitas famílias americanas, os actuais níveis de dívida são demasiado altos, conforme se evidencia pelo forte aumento da delinquência e das penhoras nos últimos anos. Para conseguir um nível sustentável de dívida em relação ao rendimento, as famílias podem vir a ter que passar por um período prolongado de suspensão do crédito, em que a dívida é reduzida e as poupanças aumentam.

Mas a partir de 2000, o ritmo da acumulação de dívida acelerou-se profundamente. O aumento dos níveis de dívidas foi acompanhado pelo aumento de riqueza. Um fluxo de novos compradores de casas, muitas vezes especulativos, com acesso a crédito fácil, contribuíram para fazer subir os preços a níveis sem precedentes em relação ao seu preço base, medido pelas rendas ou rendimentos disponíveis. O dinheiro conseguido a partir de uma apressada avaliação dos valores das casas proporcionou centenas de milhares de milhões de dólares por ano em dinheiro gasto por famílias que o utilizaram para pagar uma grande variedade de bens e serviços… O rápido crescimento da dívida permitiu que o consumo crescesse mais depressa do que os rendimentos.

Desde o início da recessão americana em Dezembro de 2007, o empréstimo a famílias entrou em queda. Actualmente situa-se em cerca de 130% do rendimento disponível. Por quanto tempo mais continuará o processo de suspensão de empréstimos?

Olhando para o futuro, o provável é que muitas famílias americanas vão tentar reduzir a sua dívida. Se isso acontecer através do aumento da poupança, o processo de suspensão de empréstimos pode levar a um abrandamento substancial e prolongado dos gastos do consumidor em relação às taxas de crescimento anteriores à pré-recessão. ("U.S. Household Deleveraging and Future Consumption Growth, by Reuven Glick and Kevin J. Lansing, FRBSF Economic Letter")

A riqueza familiar diminuiu em 14 milhões de milhões de dólares desde que a crise começou. Os salários estão a diminuir lentamente e o desemprego situa-se em 9,5%, o mais alto em 25 anos. A percentagem do valor da habitação também desceu abaixo dos 50% pela primeira vez desde que há registos. E – como um terço das casas não têm hipotecas (100% pertencentes aos seus proprietários) – as casas restantes têm apenas um valor de 12%. Se os preços continuarem a descer em 2010, a grande maioria dos proprietários de casas afundar-se-ão, o que pressagia um forte aumento do número de penhoras.

Nos últimos 18 meses, o rácio da dívida em relação ao rendimento disponível apenas melhorou para 128%, o que significa que serão necessários pelo menos mais dez anos para equilibrar suficientemente as contas a fim de recomeçar os gastos aos níveis anteriores à crise. Vai ser uma tarefa penosa e longa mesmo que o estímulo funcione conforme o planeado, principalmente porque o desemprego tende a chegar aos 10% nos finais de Setembro e poderá ser ainda maior em 2010. A suspensão de empréstimos familiares vai continuar qualquer que seja a evolução positiva dos mercados, o que significa que a economia arrancará a um nível de actividade mais baixo. Isto impede qualquer hipótese de uma recuperação sólida. Segundo David Rosenberg, economista principal do Gluskin Sheff :

"Segundo as nossas estimativas, há uma dívida familiar de mais de 5 milhões de milhões de dólares que terá que ser eliminada nos próximos anos e que vai exigir que os consumidores se mantenham numa dieta de despesas semi-permanente. As empresas têm conhecimento disso, e é por isso que não estão apenas a reduzir os custos com pessoal, mas também a reduzir a semana de trabalho para um nível recorde de apenas 33,1 horas. Há menos gente a trabalhar e os que ainda estão a trabalhar viram as suas horas de trabalho profundamente reduzidas neste ciclo…

A coluna editorial de Bob Herbert no Saturday New York Times pôs o dedo na ferida de toda esta questão da recuperação – como é que pode haver recuperação quando o mercado de trabalho está em deterioração a um ritmo tão rápido nove meses depois do colapso Lehman. O impacto total do colapso do crédito já pode ter ficado para trás mas, por favor, os outros dois choques, nomeadamente a redução dos mercados do trabalho e a queda dos preços das casas, ainda se encontram mesmo à nossa frente. Por cada emprego que nasce nos EUA, há mais de cinco desempregados que procuram trabalho activamente, competindo por esses lugares. É uma situação sem precedentes e quase o dobro daquela a que assistimos no auge da recessão de 2001. As fileiras oficiais dos desempregados duplicaram durante esta recessão para 14 milhões e, se tomarmos em consideração todas as formas de redução do mercado de trabalho, o número não oficial está à beira dos 30 milhões, outro recorde. Para os que ainda acreditam que de certa forma conseguimos evitar uma depressão económica neste ciclo por causa de um défice fiscal/PIB de 13% e de um balanço geral abundante do FED, o Center for Labour Market Studies da Northeastern University estima que o desemprego real se situa actualmente em 18,2%, o que na verdade é mais alto do que a taxa publicada no final de 1930…

O que torna este ciclo "diferente" é que três quartos dos trabalhadores que foram despedidos no ano passado foram mandados embora numa base permanente, e não temporariamente. Um recorde de 53% dos desempregados actuais são trabalhadores que foram despedidos permanentemente – e não temporariamente por causa das artimanhas do tradicional ciclo de negócios. Isto significa que esses postos de trabalho não vão voltar tão depressa, se é que voltarão, quando a economia começar a sua transição para a próxima fase de expansão". (David Rosenberg economista-chefe do Gluskin Sheff).

Os comentários de Rosenberg devem ser considerados atentamente em relação ao alarmismo sobre a inflação espalhado por conservadores e alarmistas dos meios de comunicação. A inflação não é um perigo real num futuro previsível. A velocidade do dinheiro entrou em queda e a deflação está a fazer descer os preços e os salários. Todos os sectores entraram em contracção. Sem estímulo, a economia vai manter-se num PIB negativo. Eis o que diz Scott Patterson do Wall Street Journal :

"Um princípio básico é que a inflação não constitui problema enquanto a taxa de desemprego não mergulhar abaixo dos 5%. Desde 2001, que o Nonaccelerating Inflation Rate of Unemployment, ou NAIRU, a taxa a que os economistas calculam que o mercado do trabalho pode desencadear a inflação, se tem mantido num desemprego de 4,8%, de acordo com o Gabinete do Orçamento do Congresso.

No primeiro trimestre, a distância entre o NAIRU e a taxa real de desemprego atingiu uma média de 3,3 pontos de percentagem, a maior diferença desde 1983, quando o desemprego rondou os 10%. Uma diferença maior sugere que o mercado de trabalho precisa de ficar mais forte antes que a inflação se torne preocupante". ("Inflation fears? Not in this job market", Scott Patterson, The Wall Street Journal)

O fantasma da inflação é um estratagema político dos Republicanos para sabotar o plano de recuperação de Obama. E, em certa medida, está a resultar. O apoio público a um segundo pacote de estímulo esmoreceu e, com ele, qualquer esperança de restabelecimento sustentável. A pressão sobre os salários e os preços está a aumentar enquanto que os efeitos da deflação se estão a tornar cada vez mais visíveis. A delinquência, o incumprimento de pagamentos, as falências e as penhoras estão em alta, enquanto que os orçamentos dos estados estrebucham e se amontoam os desempregados. Os Republicanos estão a seguir a cartilha neoliberal, tentando esmagar a economia a fim de que o património público seja privatizado e acabem os serviços públicos. Estão a ser ajudados na sua campanha por cidadãos fartos de operações de salvamento que não percebem que boicotar as despesas do governo durante uma profunda recessão pode precipitar uma catástrofe maior.

Dito isto, os economistas liberais pouco se interessam por mais estímulos. O estímulo não é uma panaceia; é apenas uma ponte do Ponto A para o Ponto B. As despesas governamentais podem influir pouco na procura, mas podem resolver problemas subjacentes da economia. Para isso são necessários políticos que combatam os grandes bancos e voltem a regulamentar o sistema financeiro. Ninguém na administração Obama está disposto a desempenhar essa tarefa, por isso a economia vai continuar a sua tendência para a descida.

Neste momento, os bancos têm mais de um milhão de milhões de dólares em valores tóxicos nos seus balanços e todos os mercados de crédito (securitização) estão num caos. Nada se fez para separar os bancos comerciais dos bancos de investimento, para encaixar todos os derivativos em plataformas regulamentadas, para limpar instituições financeiras insolventes, para estabelecer preços para garantias complexas, para aumentar exigências de capital, ou para acabar com as operações de balanço escondidas.

Se os problemas subjacentes não vão ser resolvidos, então porque é que os economistas liberais estão tão ansiosos para usar os seus talentos a fim de minimizar os efeitos da recessão? Estão apenas a tornar fácil o caminho aos vendedores de Wall Street para começarem de novo a especular com o sistema. A tarefa dos economistas progressistas é promover um sistema mais justo que reduza a desigualdade e satisfaça as necessidades materiais básicas de todos os cidadãos. Não faz sentido aplaudir o estímulo se este apenas perpetuar o mesmo sistema em que se todos se comem uns aos outros.

O subtexto da crise financeira é a luta de classes, um facto que os economistas do sistema preferem ignorar, invocando ao invés a imagética bolorenta dos revolucionários desgrenhados e da repressão da era soviética. Apesar disso, durante os anos de Bush, o fosso entre ricos e pobres alargou-se a níveis nunca vistos desde a Idade de Ouro. Agora o 1 por cento do topo dos ricos proprietários possui mais do que o dobro dos 80% da população mais pobre. Todos os ganhos reais no rendimento nacional, situação líquida total, e o crescimento geral em valor financeiro foram parar a esse 1 por cento.

Mas o caminho para o enriquecimento pessoal teve um custo muito alto. O consumidor americano, considerado desde sempre como um recurso inesgotável, encontra-se espremido. Sem segurança no trabalho e sem acesso ao crédito fácil, as despesas do consumidor vão abrandar, os preços vão descer, a procura vai diminuir e a economia vai paralisar. Não pode haver recuperação porque os níveis de consumo anteriores à crise não vão voltar; essa é que é a verdade. O crescimento sustentado exige salários mais altos, e mais horas de trabalho; por agora nenhuma destas coisas é provável. A economia está condenada a um abrandamento prolongado com um persistente desemprego alto e crescente instabilidade social. O futuro é a deflação.

13/Julho/2009

O original encontra-se em http://www.counterpunch.org/whitney07132009.html . Tradução de Margarida Ferreira.

Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ .
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