Ferramentas para compreender o século XXI
Apoiando-se nos trabalhos dos seus antecessores, Marx inscreve-se na
história do pensamento económico. Ele é nada menos que o
fundador da macroeconomia moderna.
Num artigo de 1925, Keynes exclamava: "Como posso admitir uma doutrina que
consagra como Bíblia, subtraindo-o a toda crítica, um volume de
economia política ultrapassado, que não só é falso
de um ponto de vista científico como também não tem
qualquer interesse, nenhuma aplicação possível no mundo
actual?
[1]
Mais recentemente, Jonathan Sperber, autor em 2017 de uma biografia de Marx
[2]
, é igualmente categórico: "Encontram-se na obra de Marx
poucas coisas que interessem as tendências da economia ou da teoria
económica do fim do século XIX ou do século XX". Mas
outros pensam, ao contrário, que as contribuições de Marx
não estão ultrapassadas e que permanecem uma referência
fecunda para a compreensão do capitalismo contemporâneo.
Ainda que se situe no prolongamento dos clássicos (de Adam Smith a David
Ricardo), a obra de Marx introduz uma ruptura e extrai da sua abordagem
crítica conclusões perigosas para a ordem estabelecida. Era
preciso portanto passar da economia política à ciência
económica e bifurcar para um outro paradigma, por razões
claramente expostas por John Bates Clark: "Os trabalhadores, dizem-nos,
são permanentemente desapossados do que produzem [...] Se esta
acusação fosse fundamentada, todo homem dotado de razão
deveria tornar-se um socialista e a sua vontade de transformar o sistema
económico apenas exprimiria seu sentido de justiça". Era
preciso portanto "decompor o produto da actividade económica nos
seus elementos constitutivos, a fim de verificar se o jogo natural da
concorrência leva ou não a atribuir a cada produtor a parte exacta
de riquezas que ele contribui para criar".
[3]
É a teoria da repartição, hoje dominante.
No livro II de
O Capital,
Max expõe seus esquemas da reprodução
[4]
que distinguem duas grandes secções: a secção I
que produz os bens de investimento e a secção II que produz os
bens de consumo. Ele descreve as condições de
reprodução, ou, dito de outra forma, as relações
que devem existir entre a produção das empresas e seus mercados.
Estas relações exprimem-se em valor de troca, mas Marx insiste
também sobre o facto de que a estrutura desta oferta deve corresponder
à da procura social em termos de valor de uso. Esta abordagem de Marx
é evidentemente inspirada pelo famoso
Tableau économique
de François Quesnay
[5]
que era, segundo ele, uma "exposição, tão simples
quanto genial para o seu tempo"
[6]
.
|
Florescimento: pela redução da jornada de trabalho
"A única liberdade possível é que o homem social, os
produtores associados, regulem racionalmente seus intercâmbios com a
natureza, que a controlem em conjunto ao invés de serem dominados pelo
seu poder cego e que efectuem estes intercâmbios dispensando o
mínimo de força e nas condições mais dignas, as
mais conformes à natureza humana.
"Mas esta actividade constituirá sempre o reino da necessidade.
É para além que começa o desenvolvimento das forças
humanas em si, o verdadeiro reino da liberdade que não pode florescer
senão fundamentando-se sobre o outro reino, sobre a outra base, a da
necessidade. A condição essencial deste florescimento é a
redução da jornada de trabalho".
Karl Marx,
O capital,
livro III, capítulo 48
|
Ainda que não tenha partido do zero (também se poderia mencionar
Steuart
[7]
ou Sismondi
[8]
entre as suas fontes de inspiração), pode-se sustentar que Marx
é o fundador da macroeconomia moderna. É o que reconhecia a
keynesiana de esquerda Joan Robinson, aliás crítica severa de
Marx: "Partir de Marx teria poupado [a Keynes] muitos problemas"
[9]
. Mesmo Paul Samuelson, alvo favorito de Joan Robinson e ele próprio
crítico muito cáustico de Marx, assim o reconhecia: "Sem
dúvida todos teríamos ganho em estudar as tabelas de Marx mais
cedo".
[10]
A finança vista por Marx
Mas a mais bela homenagem é a de Wassily Leontief, em 1937: "[Marx]
desenvolveu o esquema fundamental descrevendo as relações entre
os ramos dos bens de consumo e dos bens de equipamento. Ainda que ele
não tenha encerrado o assunto, o esquema marxista constitui sempre uma
das raras proposições sobre as quais existe um amplo consenso
entre os teóricos do ciclo económico". E acrescenta: "A
análise contemporânea do ciclo económico é
claramente tributária da economia marxiana. Sem levantar a
questão da prioridade, quase não seria exagerado dizer que os
três volumes do
Capital
ajudaram mais que qualquer outro trabalho a por esta questão no centro
do debate económico".
[11]
Um dos componentes da crise actual é a crença de que a
finança seria uma fonte autónoma de valor. O que não tem
nada de novo: "Para os economistas vulgares que tentam apresentar o
capital como fonte independente do valor e da criação de valor,
esta forma é evidentemente uma bênção, pois ela
torna irreconhecível a origem do lucro e atribui-o ao resultado do
processo de produção capitalista separado do
próprio processo uma existência independente" (O
Capital, Livro II, capítulo 24).
Desemprego e exército de reserva
Este tipo de ilusão só é possível se se apoiar
sobre uma teoria "aditiva" do valor, onde o rendimento nacional
é construído como a soma das remunerações dos
diferentes "factores de produção". A teoria marxista
é, ao contrário, subtractiva: as formas particulares de proveito
(juros, dividendos, rendas, etc) são punções sobre uma
mais-valia global cujo volume é pré-determinado. Não se
pode "enriquecer dormindo" senão na base desta
punção operada sobre a mais-valia global, de modo que o mecanismo
admite limites: os da exploração que é o verdadeiro
"fundamental" da Bolsa. A crise assinala portanto o retorno do real,
como uma chamada à ordem desta dura lei do valor.
Desde há quatro décadas, o capitalismo contemporâneo
caracteriza-se pela persistência de um desemprego em massa e pela
extensão da precariedade. Uma das maneiras de explicar esta
situação consiste em invocar a existência de uma taxa de
desemprego de equilíbrio, por vezes qualificada de "natural".
Mas a "taxa de desemprego que não acelera a
inflação" (o
Nairu
) é também aquela que faz baixar a taxa de lucro. Redescobre-se
assim
"o exército de reserva industrial"
de que falava Marx. "A proporção diferente segundo a qual a
classe operária se decompõe em exército activo e em
exército de reserva, o aumento ou a diminuição da
superpopulação relativa, o grau no qual ela se encontra ora
"contratada" ora "descontratada", numa palavra, seus
movimentos de expansão e de contracção alternativos
correspondem por sua vez às vicissitudes do ciclo industrial, eis o que
determina exclusivamente estas variações" (O Capital, livro
I, capítulo 25). Tem-se aqui uma descrição bastante fiel
das regras de funcionamento de um capitalismo que visa aumentar a taxa de
exploração mantendo a pressão exercida pelo desemprego em
massa sobre os salários e desconectar a sua progressão dos ganhos
de produtividade.
Um capitalismo mundializado
O fio condutor da análise de Marx é que "a base" [do
modo de produção capitalista] é constituída pelo
próprio mercado mundial" (O capital, livro III, capítulo
20). Esta instituição foi prolongada pelos teóricos do
imperialismo os quais mostraram que a economia mundial devia ser considerada
como um conjunto estruturado de maneira assimétrica. Hoje a
mundialização caracteriza-se por mecanismos novos (cadeias de
valor mundiais, emergência, etc), mas o facto essencial é a
liberdade total dos capitais.
Um patrão, Percy Barnevik, então presidente do grupo
suíço-sueco ABB, em 2001 podia assim definir a
mundialização como "a liberdade para o meu grupo investir
onde e quando quiser, produzir o que ele quiser, comprar e vender onde quiser e
ter de suportar os menores constrangimentos possíveis em matéria
de direito do trabalho e de legislação social" (citado por
Le Devoir,
Montreal, 05/Maio/2001). Esta é exactamente a trajectória
encarada por Marx: "As leis imanentes da produção
capitalista resultam no entrelaçamento de todos os povos na rede do
mercado universal". (O capital, livro I, capítulo 32).
Uma das tendências mais notáveis do capitalismo
contemporâneo é procurar (re)transformar em mercadorias o que
não o é ou não deveria sê-lo, em primeiro lugar os
serviços públicos e a protecção social. Mas
é sobretudo a força de trabalho em si mesma que o capitalismo
contemporâneo desejaria reduzir a um estatuto de pura mercadoria. O
objectivo das "reformas" do mercado de trabalho é não
ter de pagar o assalariado senão quando ele produz valor. Isso implica
reduzir ao mínimo e transferir às finanças públicas
os elementos de salário socializado, "remercantilizar" as
reformas (fundos de pensão) e a saúde (seguros privados),
até mesmo fazer desaparecer a própria noção de
duração legal do trabalho.
Este projecto vira as costas ao progresso social, o qual sempre passou pela
"desmercantilização" do trabalho. Para Marx, a
extensão do tempo livre, tornada possível pelos progressos da
produtividade, é a alavanca que deveria permitir que o trabalho
não seja mais uma mercadoria e que a aritmética das necessidades
sociais se substitua à do lucro. Esta é a perspectiva que ele
esboça no fim do Capital (ver caixa).
Crises sucessivas
Para funcionar de maneira relativamente harmoniosa, o capitalismo tem
necessidade de uma taxa de lucro suficiente e de mercados. Mas uma
condição suplementar, que se refere à forma destes
mercados, deve ser satisfeita: eles devem corresponder aos sectores
susceptíveis, graças aos ganhos de produtividade induzidos, de
tornar compatível um crescimento sustentado com a
manutenção da taxa de lucro mantida. É deste ponto de
vista que se pode analisar a passagem do capitalismo da sua fase
"fordista" à sua fase "neoliberal", caracterizada
por este facto empírico
[12]
: a taxa de lucro restabeleceu-se, mas não foi seguida nem pela
taxa de
acumulação nem pela produtividade.
O impasse actual do capitalismo numa fase depressiva resulta portanto de um
afastamento crescente entre a transformação das necessidades
sociais e o modo capitalista de reconhecimento e de satisfação
destas necessidades. Mas isso implica que o perfil particular da fase actual
mobiliza, sem dúvida pela primeira vez na história, os elementos
de uma crise sistémica.
Esta análise remete ao nível mais fundamental da crítica
marxista. Segundo Marx, o capitalismo é um sistema injusto
(exploração) e instável (crises). Mas é
também, passado um certo ponto, um sistema que surge como irracional,
devido mesmo a êxitos que lhe permitiram seu modo de eficácia
própria (ver caixa abaixo).
A possibilidade de um outro cálculo económico
A abordagem marxista da dinâmica longa do capital poderia afinal de
contas ser resumida da seguinte maneira: a crise é certa, mas a
catástrofe não o é. A crise é certa, no sentido de
que todos os arranjos que o capitalismo inventa, ou que lhe são
impostos, não podem suprimir duradouramente o carácter
desequilibrado e contraditório do seu funcionamento. Mas estes
questionamentos periódicos que enxameiam a sua história
não implicam de modo algum que o capitalismo se dirija inexoravelmente
para a derrocada final. Em cada uma destas "grandes crises", a
opção está aberta: seja o capitalismo ser revertido, seja
ele recuperar-se sob formas que podem ser mais ou menos violentas (guerras,
fascismo) e mais ou menos regressivas (viragem neoliberal).
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Irracional: a "base estreita" do capitalismo
"Por um lado, [o capitalismo] desperta todas as forças da
ciência e da natureza, assim como as da cooperação e da
circulação social, a fim promover a criação de
riqueza independente (relativamente) do tempo de trabalho para ela utilizado.
Por outro, ele pretende medir as gigantescas forças sociais assim
criadas em conformidade com o padrão do tempo de trabalho e
encerrá-las nos limites estreitos, necessários à
manutenção, enquanto valor, do valor já produzido. As
forças produtivas e as relações sociais simples
faces diferentes do desenvolvimento do indivíduo social aparecem
ao capital unicamente como meios para produzir a partir da sua base estreita.
Mas, de facto, são condições materiais, capazes de fazer
explodir esta base".
Karl Marx, Manuscritos de 1857-1858 (ou
Grundrisse
)
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Portanto, encontram-se, na obra de Marx, ferramentas úteis para a
análise do capitalismo contemporâneo. Entretanto, a verdadeira
especificidade da abordagem marxista reside sem dúvida na sua
crítica da economia política (é igualmente o
subtítulo do Capital), que postula a possibilidade de um outro
cálculo económico: a humanidade deveria ter como objectivo
maximizar (colectivamente) seu bem-estar ao invés de se remeter à
maximização (privada) do lucro.
Mas verifica-se que o capitalismo é um sistema compacto cujas molas
fundamentais são invariantes (para além das suas
encarnações concretas). Portanto ele é dificilmente
reformável, tanto mais porque tende hoje a recriar as
condições de um funcionamento "puro" que se opõe
frontalmente à satisfação das necessidades sociais e
à gestão dos desafios ambientais. Coloca-se então a
questão de uma reconsideração radical deste funcionamento.
01/Março/2018
1. John Maynard Keynes, "A Short View of Russia",
Nation and Athenaeum,
10 et 25 octobre 1925 ; traduit dans
Essais de persuasion
, 1931.
2. Jonathan Sperber,
Karl Marx, homme du XIXe siècle
, Piranha, 2017.
3. John Bates Clark,
The Distribution of Wealth. A Theory of Wages, Interest and Profit
, 1899.
4. "Action de reproduire industriellement les valeurs
consommées", d'après le
Tableau économique
(1758) de François Quesnay.
5. François Quesnay, "Analyse de la formule arithmétique du
Tableau économique
",
Journal de l'agriculture, du commerce et des finances
, juin 1766.
6. Karl Marx, dans le chapitre "Sur l'histoire critique" de l'
Anti-Dühring
de Friedrich Engels, qu'il a rédigé pour l'essentiel.
7. James Steuart,
An Inquiry into the Principles of Political Economy
, 1767.
8. Jean Charles Léonard Simonde de Sismondi,
Nouveaux principes d'économie politique.
9. Joan Robinson, "Kalecki et Keynes", dans
Essays in Honour of Michal Kalecki
, 1964.
10. Paul A. Samuelson, "Marxian Economics as Economics",
The American Economic Review
, Vol. 57, No 2, Mai 1967.
11. Wassily Leontief, "The Significance of Marxian Economics for
Present-Day Economic Theory",
The American Economic Review
, Vol. 28, No 1, Papers and Proceedings of the 50th Annual Meeting of the AEA,
March 1938.
12. Constatação de ordem empírica, habitualmente
não quantificada, mas julgada representativa do funcionamento da
economia.
[*]
Economista, ver
Wikipedia
.
O original encontra-se em
www.alternatives-economiques.fr/outils-comprendre-xxie-siecle/00083731
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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