O tecto da dívida começa a ser progressivamente revogado
- O sr. Obama usa tácticas de intimidação para levar os
democratas a votarem o seu plano republicano para a Wall Street
por Michael Hudson
O salvamento melodramático da Wall Street deve ser visto como um ensaio
geral para a não-crise do tecto da dívida.
Apercebemo-nos de que a excitação em torno da dívida
é tão melodramaticamente encenada como um combate de luta livre,
quando o sr. Obama ameaça de forma gritante e vazia que se o Congresso
não "enfrentar os duros desafios que são a reforma fiscal e
a reforma dos direitos adquiridos", não haverá dinheiro para
pagar os cheques da Segurança Social já no próximo
mês. No discurso que fez ontem (25 Julho) acerca da dívida
ameaçava que "se entrarmos em incumprimento, não teremos
dinheiro para pagar todas as nossas contas como a segurança
social, a reforma dos veteranos, ou os contratos que o governo assinou com
milhares de empresas".
Isto não está nem sequer perto da verdade. No entanto tornou-se a
ameaça principal desde há uma semana, quando o Presidente usou
praticamente as mesmas palavras quando entrevistado por Scott Pelley na CBS
Evening News.
É claro que o Governo terá dinheiro suficiente para pagar os
cheques mensais da Segurança Social. A administração da
Segurança Social tem as suas reservas próprias em
títulos do tesouro. Eu compreendo que os advogados (como o Sr. Obama e
na verdade a maioria dos presidentes norte-americanos) raramente entendem de
economia. Mas o que aqui se trata é um problema legal. O Sr. Obama
compreende certamente que a Segurança Social é solvente, e que
possui títulos suficientemente líquidos para assegurar os seus
pagamentos durante a década vindoura. Ainda assim, Obama faz da
Segurança Social o seu principal alvo.
A explicação mais razoável para esta ameaça sem
fundamento reside no facto de ele procurar instaurar o pânico junto dos
mais idosos para que estes alimentem esperanças de que o plano que ele
tem preparado para o orçamento os possa salvar. A realidade é que
estão a ser conduzidos a uma autêntica chacina económica
(tudo isto sem que uma única palavra recordando a realidade dos factos
seja endereçada ao presidente pelo Rubiconómico secretário
do Tesouro Geither, pelo presidente da Reserva Federal Bernanke ou por quem
quer que seja na administração Wall-Streetiana Democrata,
anteriormente conhecida como Democratic Leadership Council).
Trata-se de pura fraude.
O sr. Obama veio para enterrar a Segurança Social, a Medicare e a
Medicaid e não para as salvar. Isto tornou-se claro quando esta
administração nomeou a sua Comissão para a
Redução do Défice, chefiada por inimigos declarados do
senador Alan Simpson, referência do Partido Republicano no que toca
à segurança social, e de Erskin Bowles, chefe de gabinete de Bill
Clinton. A mais recente escolha por parte sr. Obama de congressistas
republicanos e de democratas moderados, incumbidos de reescrever o
código fiscal de forma bipartidária para que não
possa ser atacado é nada mais do que uma manobra para fazer
aprovar uma "reforma" fiscal que os representantes democraticamente
eleitos dificilmente considerariam noutras circunstâncias.
O diabo está sempre nos pormenores. Normalmente os lobbys da Wall Street
têm sempre esses mesmos pormenores bem aconchegados nas pastas, que fazem
chegar às mãos dos seus congressistas e senadores mais dedicados.
Neste caso têm também o Presidente, que acatou os seus
conselhos acerca de quem nomear para a sua administração, de
forma a que estes agissem como seus lacaios na conquista do governo para a sua
causa, criando um "socialismo para os ricos"
Tal socialismo não é coisa que exista, como é evidente.
Quando os governos são controlados pelos ricos chama-se oligarquia. Os
diálogos de Platão mostraram claramente que em vez de vermos as
sociedades como oligarquias ou democracias, deveríamos vê-las em
movimento. As democracias tendem a polarizar-se economicamente (normalmente
entre credores e devedores) rumo a uma oligarquia. Estas últimas tendem
por sua vez para uma transformação em aristocracias
hereditárias. Com o tempo as famílias dominantes lutarão
entre si, e haverá uma facção que, como Clístenes
em 507 a.c., tomará o povo como parte integrante, criando uma
democracia, e eternizando o triângulo político.
"E precisamente isto que sucede hoje em dia. Em vez de gozarmos o que
tinha sido previsto pela Era Progressista isto é uma
evolução para o socialismo, onde o governo providencia as
infra-estruturas básicas da sociedade recorrendo a um mecanismo de
subsídios estamos a viver um verdadeiro retrocesso rumo a um
neo-feudalismo. A diferença reside no facto de, desta vez, a sociedade
não ser controlada por caudilhos militares. A finança
alcançou aquilo que a força militar alcançara outrora. Em
vez de estarem presas à terra, como no feudalismo, as famílias
têm hoje a liberdade de viver onde bem entendem desde que levem
toda uma vida para pagar o empréstimo da sua casa.
Em vez de pagar um tributo sobre a terra aos conquistadores, pagamos aos
bancos. Assim como o acesso à terra era uma condição
fundamental para a sobrevivência das famílias durante o
feudalismo, assim hoje necessitamos de acesso ao crédito, à
água, aos cuidados médicos, pensões, segurança
social, entre outros sobre tudo isto temos de pagar um juro, temos de
pagar taxas e rendas a uma oligarquia neo-feudal que se expande habilmente dos
Estados Unidos para a Irlanda e para a Grécia.
O governo norte-americano gastou 13 biliões de dólares em
resgates financeiros desde a falência da Lehman Brothers em Setembro de
2008. No entanto o sr. Obama alerta-nos para o facto de que, daqui a 30 anos, o
défice da Segurança Social pode chegar a 1000 milhões de
dólares, e é para prevenir esse mesmo défice que ele
procura cortar nos pagamentos hoje.
Ao que parece os 13 mil milhões esgotaram todo o dinheiro que o governo
tinha à disposição. Os bancos e a Wall Street ficaram com
o dinheiro e fugiram e já não há dinheiro suficiente para
pagar a Segurança Social, a Medicare e as outras despesas do estado que
os Democratas moderados e os Republicanos procuram agora cortar.
Mas não para já. Este plano servirá para esconder a actual
crise, delegando os planos para uma "Comissão de
Redução da Dívida 2" composta por membros do
Congresso.
Finalmente temos "uma mudança em que podemos acreditar"
Afinal, a mudança acaba sempre por ser surpreendente.
A falsa crise
Normalmente uma crise é necessária para criar um vácuo
para o qual são expelidos estes resíduos tóxicos. A Wall
Street não gosta de crises reais excepto quando procura ganhos
fáceis, obtidos através de especulações
informatizadas acerca da azáfama dos mercados. Mas quando se trata de
dinheiro a sério, a ilusão da crise é preferível,
melodramaticamente encenada para arrancar a maior reacção emotiva
da plateia, tal como um bom realizador de cinema faz quando procura montar uma
boa sequência: Será que o comboio que aparece a alta velocidade
acabará por abalroar a rapariga que está presa aos carris? Ou
escapará ela a tempo?
O comboio é, neste caso, a dívida; sendo a rapariga a economia
americana. No entanto, cedo descobrimos que a rapariga mais não é
que a Wall Street num mau disfarce. Este exercício acaba por ser uma
comédia, não lá muito divina. O sr. Obama apresenta um
plano muito republicano que os republicanos rejeitam. Trata-se de uma
ilusão de luta política, acabando os republicanos por dizer que
Obama é socialista.
Os democratas por seu lado fingem-se chocados. Muitos dizem: "Onde
está o verdadeiro Obama?", mas ao que parece Obama revela-se um
impostor republicano ao serviço da Wall Street, disfarçado de
democrata. No fundo é precisamente isso que é o Democrat
Leadership Council: Conselho de Democratas da Wall Street.
Não se trata de um paradoxo tão grande quanto possa parecer.
Há uma razão para o facto de os democratas actuais da era
pós-clinton alinharem de forma consequente na destruição
do legado de Franklin Roosevelt e dos antigos democratas. Um senado dominado
pelos democratas nunca aprovaria o mesmo plano de doações
à Wall Street se um presidente republicano o propusesse exactamente nos
mesmos termos em que o propõe hoje Obama.
Eis o que o próximo candidato presidencial republicano poderá
dizer: "Vocês sabem que podemos contar com o apoio de Obama para
apoiar qualquer medida que nós, republicanos, queiramos. Se não
quiserem políticas republicanas então devem votar em mim para
presidente, pois um congresso de maioria democrata irá certamente
opor-se às medidas republicanas se formos nós a propô-las.
Mas se for o Sr. Obama a propor, certamente que o congresso não
resistirá a aprová-las.
A história é a mesma no Reino Unido onde o partido trabalhista
é convocado a concluir a tarefa iniciada pelos conservadores, que
necessitaram do novo partido trabalhista
(new labour)
para privatizar os caminhos de ferro e para levar a cabo as desastrosas
parcerias público-privadas para as novas linhas de metro londrinas. A
história repete-se também em França onde os socialistas
apoiam o programa de privatizações ditado pelo Banco Central
Europeu.
O coleccionar das falácias habituais
Quando encontramos os governantes e os media repetindo um erro económico
numa lengalenga incessante, é porque existem interesses maiores em jogo.
O sector da finança procura convencer os eleitores de que a economia
entrará em crise caso a Wall Street não obtenha o que quer
nomeadamente a desregulação e a isenção fiscal.
A primeira falácia do Sr.Obama é a de que um orçamento de
estado é como um orçamento familiar. No entanto as
famílias não podem emitir títulos de dívida
(IOUs)
que valem como dinheiro em todo o mundo. Apenas os governos o podem fazer:
é um privilégio que os bancos gostariam de ter o poder de
criar crédito livremente a partir dos teclados dos seus computadores,
cobrando juros por aquilo que é praticamente gratuito, e que os governos
fazem realmente de forma gratuita. (Trata-se da Teoria de Estado do Dinheiro.
Ver o blog da UMCK Economics.)
"Hoje em dia, qualquer família sabe que uma pequena dívida
de cartão de crédito é algo administrável. Mas se
continuarmos pelo mesmo caminho a nossa crescente dívida
custar-nos-á muitos empregos e afectará negativamente a
economia". No entanto as economias precisam do dinheiro do governo para
financiar o seu próprio crescimento e esse dinheiro é obtido
através da contracção de dívida por parte dos
estados. É esta a essência do investimento contra-cíclico
keynesiano desde há já meio século. E era, até aos
nossos dias, a política económica fundamental do Partido
Democrata.
É verdade que durante a administração Clinton houve um
superávite orçamental. A economia sobreviveu então
através do fornecimento de crédito por parte da banca comercial,
cobrando o juro. Para obrigar a economia a voltar a uma tal
relação com a Wall Street, em vez de com o governo, este
necessita de acabar com o seu défice orçamental. A economia
terá então de escolher entre a sua própria
contracção e a entrega de toda a mais-valia económica aos
bancos sob a forma de uma taxa económica pela sua criação
de crédito.
O Sr. Obama também procura passar a ideia de que as agências de
rating são capazes de actuar como servilmente em relação
aos os seus clientes, fazendo a economia pagar um juro cada vez mais alto sobre
os cartões de crédito e actividades bancárias. "Pela
primeira vez na história", diz-nos Obama "a
classificação triplo A do nosso país será revista
em baixa, deixando os investidores de todo o mundo a duvidar de que os Estados
Unidos sejam ainda um bom investimento. As taxas de juro dos cartões de
crédito, hipotecas, prestações do carro, disparariam para
níveis astronómicos, que se juntariam a um aumento da carga
fiscal sobre o povo americano".
A verdade é que a existência de um superávite no
orçamento de estado aumentará as taxas de juro ao obrigar a
economia a ficar refém do sistema bancário. A
administração Obama encontra-se hoje profundamente mergulhada
numa fase de retórica orwelliana.
Porque é que Wall Street necessita dos democratas de Obama para aprovar
a Rubinomics 2 no Congresso
Durante o discurso de Obama tive a sensação de que já
tinha ouvido tudo aquilo antes. Lembrei-me então que em 2008, o
secretário do Tesouro Henry Paulson procurou contrariar o argumento de
Sheilas Blair, segundo o qual todos os depositantes assegurados pela FDIC
(Federal Deposit Insurance Corporation)
conseguiriam sair da crise de Setembro, sendo os apostadores de risco os
únicos a perderem os ganhos que procuraram fazer através do
crédito livre. "Se deixássemos entrar em colapso o sistema
financeiro" dizia-nos Paulson no seu discurso na Biblioteca Reagan,
"seria o povo americano a pagar o preço. Nunca foi um problema
exclusivo da banca; o que sempre esteve em questão foi a
manutenção da prosperidade e das oportunidades para todos os
americanos".
É claro que aquilo que sempre esteve em questão foi a banca! Wall
Street sabe que se quiser acabar com o New Deal, a Medicare, a Medicaide e com
a segurança social, necessita de um presidente democrata. Um congresso
de maioria democrata rejeitaria qualquer tentativa por parte de um presidente
republicano que procurasse cortes tão drásticos como aqueles que
Obama propõe. A oposição democrata no Congresso fica
estarrecida quando é o próprio presidente Obama o
presidente liberal por excelência, o Tony Blair americano a agir
como o maior apoiante dos cortes nas prestações sociais.
Da mesma maneira que a finança londrina apoiou a chegada do Partido
Trabalhista ao poder, quando o Partido Conservador não se encontrava em
posição de tomar medidas tão radicais como as
privatizações dos caminhos de ferro e do metro londrino,
também os sociais-democratas islandeses procuraram activamente mergulhar
a economia numa dívida que a tornasse refém do Reino Unido e da
Holanda e os socialistas gregos lideram a corrida às
privatizações e os resgates à banca, assim também
nos Estados Unidos o Partido Democrata procura pôr os seus eleitores
nomeadamente os trabalhadores urbanos, as minorias raciais e os pobres,
isto é, os mais afectados pelo plano de austeridade do Presidente Obama
nas mãos da Wall Street.
Assim o sr. Obama está a levar a cabo aquilo que qualquer bom demagogo
normalmente faz: entregar a sorte dos seus eleitores aos financiadores da sua
campanha da Wall Street. Yves Smith chamou-lhe o momento
"Nixon-vai-à-China ao contrário" da presidência
Obama.
Os Republicanos ajudaram ao refrear qualquer candidatura credível do seu
campo à presidência. A ideia é dar margem de manobra a
Obama para se deslocar cada vez mais para a direita do espectro
político. De tal forma que são os Democratas os que mais
põem em causa o sistema de segurança social e não os
Republicanos.
Tudo isto é mais facilmente levado a cabo se existir uma constante
pressão de um sentimento de pânico que começou com a
TARP
em Setembro de 2008. O melodrama do resgate da Wall Street deve ser visto como
um ensaio-geral para a não-crise do limite da dívida.
29/Julho/2011
NR: Este artigo é anterior à aprovação pelo
Congresso das medidas propostas por Obama.
Ver também
Guerra e dívida
, do mesmo autor sobre o mesmo assunto.
O original encontra-se em
http://www.globalresearch.ca/index.php?context=va&aid=25825
. Tradução de MQ.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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