A economia da bolha e a deflação da dívida
- Incorporar os sectores rentistas num modelo financeiro
por Michael Hudson
[*]
e Dirk Bezemer
[**]
1. Introdução
2. Finanças não são A economia
3. Rumo a um modelo de economias financiarizadas
4. O sector FIRE, rendas e a resposta progressiva
5. Como o sector FIRE opera
6. Efeitos sobre o ambiente, a demografia e a economia
7. Em conclusão
Referências
Resumo:
A macroeconomia actual ignora o papel que a renda, a dívida e o sector
financeiro desempenham na moldagem da nossa economia. Discutimos aqui a
visão clássica sobre rendas e as respostas políticas ao
sector rentista no século XIX. As finanças, seguros &
imobiliário constituem hoje a encarnação do sector
rentista. Este documento mostra como fluxos financeiros podem ser conceptual e
estatisticamente estudados separadamente do sector real (mas interagindo com
este). Discutimos a interacção das finanças com o governo
e com a economia internacional.
1. Introdução
Agora que a Economia da Bolha se rendeu à deflação da
dívida, o mundo está a descobrir a deficiência de modelos
que deixam de explicar como a maior parte da criação de
crédito hoje em dia (1) inflaciona preços de activos sem elevar
preços de mercadorias ou níveis salariais, e (2) cria um fluxo
recíproco de serviço da dívida. Este serviço da
dívida tende a ascender como uma proporção do rendimento
pessoal e das empresas, crescendo mais rapidamente do que a capacidade dos
devedores para pagar levando à (3) deflação da
dívida. O único meio de impedir que este fenómeno de
precipitar economia na depressão e mantê-las ali é (4)
cancelar
(write down)
as dívidas de modo a libertar receita para ser gasta outra vez em bens
e serviços.
Ao promover uma visão enganosa do modo como a economia funciona, as
omissões acima levam a uma política que deixa de impedir bolhas
de dívida ou de tratar efectivamente da resultante depressão.
Para evitar uma repetição da recente crise financeira e na
verdade para desembaraçar as economias do seu actual colete de
força que subordina a recuperação à prisão
dos direitos dos credores (isto é, salvar os bancos de assumirem uma
perda sobre os seus maus empréstimos e jogos) é
necessário explicar como a criação de crédito
inflaciona preços da habitação e de outros activos,
enquanto juros e outros encargos financeiros deflacionam a economia
"real", sendo responsável por preços de mercadorias,
contracção de mercados e do emprego e por salários
afundarem numa espiral descendente. Estamos a tratar de duas tendências
de preços que vão em direcções opostas:
preços de activos e preços de mercadorias. Portanto é
necessário explicar como a expansão do crédito pressiona
preços de activos para cima enquanto simultaneamente provoca
deflação da dívida.
Mas o típico modelo monetário e de preços MV=PT centra-se
sobre preços de mercadorias e activos, não sobre preços de
activos inflacionados pela alavancagem da dívida. Analogamente, os
modelos 'Dynamic Stochastic General Equilibrium' (ou DSGE) de hoje
caracterizam-se pela "ausência de um meio apropriado de modelar
mercados financeiros" (Tovar 2008:p.29). Se bem que Schumpeter (1934:95)
já notasse que "processos em termos de meios de pagamento
não são meramente reflexos de processos em termos de bens. De
todo modo possível, com rara unanimidade, mesmo com impaciência e
indignação moral e intelectual, uma linha muito longa de
teóricos asseguraram-nos do oposto", para isto não há
lugar nos modelos DSGE ou na teoria macroeconómica das últimas
décadas. Cecchetti et al (2011:p.2) descrevem a prática actual
escrevendo que "para um macroeconomista que trabalha para construir uma
estrutura teórica para o entendimento da economia como um todo, a
dívida é ... trivial ... porque (numa economia fechada) é
um zero líquido os passivos de todos os tomadores de
empréstimos correspondem sempre exactamente aos activos de todos os
prestamistas. ... Sem nenhum papel activo para o dinheiro, integrar o
crédito na estrutura principal demonstrou ser difícil". E
ainda assim o crédito e sua contrapartida, a dívida, têm
modelado nossos sistemas económicos desde a pré-história
(Hudson 2004). O entendimento de como o crédito é utilizado
é portanto uma condição
sine qua non
para o entendimento da nossa economia. Isto exige, por sua vez, pensar acerca
de um modelo fundamentalmente diferente que possa substituir modelos tipo DGSE
como o padrão de análise. Só então o
"imperador nu pode ser destronado" (Keen 2011).
2. Finanças não são
A
economia
No mundo real de hoje a maior parte do crédito é gasta para
comprar activos já existentes, não para criar nova capacidade
produtiva. Cerca de 80 por cento dos empréstimos bancários no
mundo de língua inglesa são hipotecas imobiliárias e
grande parte do saldo é emprestada contra acções e
títulos já emitidos. Os bancos emprestam a compradores de
imóveis, aventureiros
(raiders)
corporativos, ambiciosas construtores de impérios financeiros e para
gerir compras alavancadas por dívida. Uma primeira
aproximação desta tendência é por em gráfico
a fatia do empréstimo bancário que vai para sector "FIRE,
seguros e imobiliário", também conhecido como sector
financeiro não bancário. O Gráfico 1 mostra que o seu
rácio em relação ao PIB quadruplicou desde a década
de 1950. O contraste é com o empréstimo para o sector eal, o qual
permaneceu quase constante em relação do PIB. Isto mostra como o
nosso fardo de dívida cresceu.
O que é verdadeiro para os EUA é verdadeiro para muitos outros
países: dívida de empréstimos hipotecários e outras
de famílias foram "a etapa final numa Bolha Ponzi artificialmente
expandida" como mostra Keen (2009) para a Austrália. Expandir
créditos para a compra de activos já existentes incrementa o seu
preço. Potenciais compradores de casas precisam contrair hipotecas
maiores para obter um lar. O efeito é transformar rendas da propriedade
num fluxo de juros de hipotecas. Estes pagamentos desviam a receita de
consumidores e empresários do gasto em consumo ou novo investimento de
capital. O efeito é deflacionário para mercados de produtos da
economia e portanto dos preços no consumidor e do emprego e em
consequência salários. Eis porque tivemos um longo período
de baixa inflação no Índice de Preços no Consumidor
mas inflação em disparada nos preços dos activos. As duas
tendências estão ligadas.
A aquisição endividamento (debt-leveraged buyouts) e as compras
de imobiliário transformam o fluxo de caixa dos negócios (ebitda:
rendimentos antes de juros, impostos, depreciação e
amortização) em pagamentos de juros. Da mesma forma, o
financiamento da dívida pública por bancos ou possuidores de
títulos (especialmente na Eurozona, à qual falta um banco central
para monetizar tal dívida) transformou uma fatia crescente da receita
fiscal em pagamentos de juros. Como os credores reciclam seus recebimentos de
juros e amortizações (e ganhos de capital) em novos
empréstimos para compradores de imóveis, acções e
títulos, uma fatia crescente do rendimento dos empregados, da renda
imobiliária, das receitas de negócios e mesmo da receita fiscal
do governo é desviada para pagar serviço de dívida. Ao
deixar menos para gastar em bens e serviços, o efeito é reduzir
novo investimento e emprego. A evidência actual para as principais
economias da OCDE desde a década de 1980 mostra que ganhos de capital em
ascensão afastam as finanças do crescimento da produtividade do
sector real (Stockhammer 2004) e, mais genericamente, que a
"financiarização" (Epstein 2005) tem prejudicado o
crescimento e os rendimentos. O dinheiro criado por ganhos de capital tem uma
propensão pequena a ser gasto pelos seus proprietários rentistas
em bens e serviços, de modo que uma proporção crescente
dos fluxos de dinheiro da economia é desviada para a
circulação no sector financeiro. Os salários não
aumentam, mesmo quando os preços da propriedade e dos títulos
financeiros ascendem exactamente a tendência bem conhecida que
temos visto no mundo ocidental desde a década de 1970 e que persiste na
Economia da Bolha pós 2001.
Isto é o caso especialmente nas economias pós-soviéticas a
partir de 1991, onde decisores políticos neoliberais (isto, pró
finanças) tiveram liberdade de acção para moldar a
política fiscal e financeira em favor de bancos (especialmente
agências de bancos estrangeiros). A Letónia é citada como
um caso de êxito neoliberal, mas seria difícil encontrar um
exemplo em que o rendimento rentista e os preços houvessem divergido
mais drasticamente dos salários e da economia da produção
"real".
Quanto mais a criação de crédito toma a forma de
inflacionamento de preços de activos ao invés de financiar
compras de bens e serviços ou investimento directo que empregue trabalho
mais deflacionários são os seus efeitos sobre a economia
"real" da produção e do consumo. Os preços da
habitação e outros activos entram em crash, provocando
situação líquida negativa. Mas ainda assim os
proprietários das casas e os empresários têm de liquidar as
suas dívidas. As contas do rendimento nacional classificam este
pagamento como "poupança", embora a receita não esteja
disponível para os devedores que fazem a "poupança" por
"desalavancagem".
A moral da história é que utilizar casas como
"mealheiros", como sugeriu Alan Greenspan, para empréstimos
sobre a situação líquida não é realmente
como fazer retiradas de uma conta bancária. Quando há uma
retirada de uma conta bancária há menos dinheiro
disponível, mas nenhuma obrigação residual de pagar. Agora
o rendimento pode ser gasto à discrição do seu receptor.
Mas tomar emprestado contra uma casa implica uma obrigação de
pode de lado rendimento futuro para pagar o banqueiro e portanto uma
perda de futuro gasto discricionário.
3. Rumo a um modelo das economias financiarizadas
Criar um modelo mais realista das economias financiarizadas de hoje para
detectar este fenómeno exige uma decomposição das contas
do rendimento e do produto nacional para ver a economia como um conjunto de
diferentes sectores a interagirem uns com os outros. Estas justapõem os
sectores privado e público na medida em que a despesa corrente,
poupança e fiscalidade é afectada. Mas a implicação
é que défices do orçamento do governo incham a economia do
sector privado como um todo.
Contudo, um défice orçamental que assume a forma de
transferências de pagamentos para bancos, como no caso do salvamento
bancário pós Setembro de 2008, os US$2 milhões de
milhões de dinheiro por lixo
(cash-for-trash)
do Federal Reserve para emprestar a bancos a juros de 0,25% em 2011, tem um
efeito diferente de défices que reflectem programas de despesas sociais,
Segurança Social e Medicare, investimento em infraestrutura
pública ou compra de outros bens e serviços.
O efeito de transferências de pagamentos para o sector financeiro
bem como o aumento de US$5,3 milhões de milhões na dívida
do Tesouro dos EUA pela incorporação da Fannie Mae e Freddie Mac
no balanço público é de apoiar preços de
activos (acima de todos aqueles do sistema bancário), não de
inchar preços de mercadorias e salários. Analogamente, a
política da "quantitative easing" de 2009 na
Grã-Bretanha confundia empréstimos utilizados na economia real (a
qual estava a estagnar ou cair ao longo do experimento) com
regulação dos balanços bancários junto ao Banco da
Inglaterra, os quais quadruplicaram desde 2009 (Gráfico 3). Bezemer e
Gardiner (2010) mostram que nem empréstimos bancários nem gastos
nem PIB aumentaram perceptivelmente durante ou após o exercício,
mas houve uma curiosa corrida ao mercado de acções durante 2009.
Um comunicado de imprensa divulgado pela Bolsa de Valores de Londres em 29 de
Dezembro de 2009 informava que "um recorde de £82,5 mil
milhões foi levantado através de novas emissões de
acções na London Stock Exchange durante o ano de 2009... apesar
das difíceis condições de mercado". As
finanças não são a economia.
A maior parte dos modelos tratam o sector internacional ou como um
"escape" (leakage, tal como Keynes denominou o comércio
externo e fluxos de capital) ou como um ítem de equilíbrio no
excedente do sector privado/público ou defasagem (como no modelo do Levy
Institute ver Zezza 2009 para uma descrição
analítica). Mas o sector internacional envolve não apenas o
comércio de importação e exportação e outras
rubricas da conta corrente (remessas de emigrantes e, acima de tudo, gastos
militares) como também investimento e rendimento estrangeiro e
reservas estrangeiras no banco central mantidas em títulos do Tesouro
dos EUA e outros títulos, isto é, empréstimos ao Governo
dos EUA.
Os fluxos de capital incharam enormemente desde a viragem do milénio e
eles cada vez mais têm sido equiparados pelos fluxos de saída de
investimentos em activos denominados em dólares possuídos tanto
por cidadãos privados como pelos seus governos. Isto foi facilitado por
novos veículos de investimento tais como Sovereign Wealth Funds (SWFs).
A UNCTAD (2011: p. 119) informa de 25 SWFs estabelecidos só desde 2000.
Graças a entradas de capital, a conta capital está agora a
mover-se independentemente da conta corrente. Não é como se a
acumulação de poupanças internacionais exigisse excedentes
em conta corrente. Mesmo países em desenvolvimento com défices em
conta corrente acumularam reservas estrangeiras bem como investimentos privados
em enormes quantidades na véspera da crise, como informa Obstfeld
(2008). No cerne disto está a economia dos EUA e os seus mercados
financeiros. Exemplo: consumidores e empresários dos EUA mantém
um défice comercial e bancos utilizaram toda a oferta dos US$700 mil
milhões de crédito QE2 do Fed para arbitragem de divisas externas
e outras especulações internacionais, não para emprestar
à economia interna dos EUA. Mas o Tesouro dos EUA recebeu um influxo de
bancos centrais estrangeiros que acumulam reservas de dólares com a
compra de Títulos do Tesouro e outros títulos financeiros dos EUA.
Este modelo pode ser utilizado para rastrear transacções dos EUA
com a China. A economia incide num défice comercial com a China e
também uma saída de investimento do sector privado para a China.
Há algum retorno de ganhos destes investimentos para companhias dos EUA.
Mas no saldo, há uma saída de dólares para a China
a qual também recebe dólares das suas exportações
para países terceiros. O banco central da China tem reciclado a maior
parte destas receitas em dólares para o Tesouro dos EUA (e
anteriormente, para títulos Fannie Mae e investimentos afins), mas
não lhe foi permitido comprar companhias estado-unidenses tais como
operações de refinaria da Unocal.
O modelo público/privado/internacional pode ser tornado mais realista se
se tratar o sector financeiro, seguros e imobiliário (FIRE) como
distinto da economia de produção e consumo subjacente, como se
inspira no Gráfico 1.
4. O sector FIRE, rendas e a resposta progressiva
O sector FIRE trata do balanço de activos e dívidas da economia,
imobiliário, acções e títulos, hipotecas e outros
empréstimos bancários o pagamento de juros,
comissões por gestão de dinheiro e outras taxas para o sector
financeiro, bem como pagamentos de seguros e pagamentos de rendas por
habitação. O sector FIRE é a forma actual que assume a
classe rentista. Rentistas são aqueles que beneficiam do controle sobre
activos que a economia precisa para funcionar e que, portanto, tornam-se
desproporcionadamente ricos quando a economia se desenvolve. Estas receitas
são rendas receitas decorrentes da condição de
proprietário "sem trabalho, risco ou poupança", como
escreveu John Stuart Mill (1848) dos latifundiários do seu tempo,
explicando que "eles se tornam mais ricos, mesmo enquanto estão a
dormir". A teoria económica clássica, desde Adam Smith,
analisou rendas, seus efeitos e políticas em relação a
rendas, mas o próprio conceito foi perdido na teoria económica de
hoje.
Assim como os latifundiários foram os arquétipos de rentistas das
sociedades agrícolas, da mesma forma os investidores, financeiros e
banqueiros constituem a maior parte do sector rentista nas economias
financiarizadas de hoje: as finanças controlam o motor do crescimento da
economia, o qual é o crédito em todas as suas formas. As
economias obviamente precisam de serviços bancários,
serviços de seguros e desenvolvimento imobiliário e assim,
naturalmente, nem tudo das finanças é "sem trabalho, risco
ou poupança". O problema que hoje permanece como era no
século XIII: como isolar o que é socialmente necessário
para a banca "de retalho" processamento de pagamentos por
cheques e cartões de crédito, decidir como re-emprestar
poupanças e novo crédito sob condições normais
(não especulativas) de encargos exorbitantes tais como juros de
29% em cartões de crédito, taxas penalizadoras e outros encargos
em excesso daquilo que é o custo-valor socialmente necessário.
Em princípio, todos os monopólios deveriam ser incluídos
no sector rentista, pois eles representam um privilégio especial
(controle sobre mercados, especialmente de bens essenciais) cujo retorno na
forma de preços e rendimento em excesso dos custos necessários de
produção é uma forma de renda económica, isto
é, um pagamento de transferência ao invés de um rendimento
"ganho". Mas estatisticamente não há modo
prático para isolar a renda de monopólio no NIPA (National Income
and Product Accounts), pois isto incluiria uma grande parte do sector da
tecnologia de informação, das farmacêuticas e muita
"indústria". A estrutura conceptual ideal para a
estatística seria separar a renda económica do valor do custo
subjacente.
Os economistas políticos clássicos, desde os fisiocratas
até Adam Smith, John Stuart Mill e seus seguidores da Era Progressiva
foram reformadores no sentido de que trataram os sectores rentistas a extrair
pagamentos ao invés de ganhar um retorno por produzir um output real
("serviços"). A sua teoria do valor trabalho encontrava a sua
contrapartida na "teoria de preços da renda económica"
a fim de distinguir os custos necessários de produção e de
fazer negócio (reduzidos em última análise ao valor do
trabalho) do "rendimento não ganho" que consistir
principalmente de renda da terra, renda de monopólio, juros e
comissões financeiras. As várias categorias de rendimento
rentista foram retratadas como o elemento "vazio" dos preços.
A renda da terra, a renda de recursos naturais, a renda de monopólio e
os retornos por privilégios (incluindo juros e comissões
financeiras) não têm contrapartida nos custos necessários
de produção. Eles eram produtos históricos e
institucionais de privilégios herdados em grande medida de conquistas
medievais que criaram uma aristocracia territorial na Europa e da
prática bancária que se desenvolveu em grande medida por
transacções com informação privilegiada
(insider dealing),
legitimados por empréstimos a rei para financiar dívidas de
guerras numa época em que o dinheiro e o crédito financiavam a
guerra. Assim, a banca, bem como rivalidades militares por terra, envolviam o
sector externo. Mill (1848) perguntou: "Que direito têm eles, sob o
princípio geral da justiça social, a este acesso a riquezas? Em
que teriam eles sido prejudicados se a sociedade houvesse, desde o
princípio, reservado o direito de tributar o aumento espontâneo da
renda, para o mais elevado montante requerido por exigências
financeiras?"
O objectivo político da análise clássica era,
então, minimizar o custo de estrutura da economia pela
libertação do capitalismo industrial destes remanescentes do
feudalismo. A ideia que guiava os reformadores era minimizar o papel do
rendimento rentista (renda económica) através do investimento
público, da política fiscal e da regulação.
Consideremos isto um por um:
1 Investimento público directo em infraestrutura básica,
incluindo educação, sistemas de transportes, sistemas de
comunicação e outros empreendimentos que eram há muito
mantidos no domínio público ou publicamente regulamentados desde
o fim do século XIX em diante. O primeiro exemplo disto é o
Crédit Mobilier francês, banco fundado pelos seguidores do Conde
de Saint-Simon (1760-1825), o qual inspirou economistas clássicos
importantes, incluindo Karl Marx e John Stuart Mill.
O banco Crédit Mobilier, fundado em 1852, recebeu esse nome em contraste
com os bancos comuns de hipotecas (Sociétés du Crédit
Foncier) ou bancos territoriais, os quais emprestavam aos proprietários
de propriedade mobiliária e para promover empresas industriais, de
mineração, de construção de ferrovias e outras
infraestruturas. Hoje, o grosso do empréstimo bancário é
outra vez para o imobiliário e outras infraestruturas já
existentes, não para a criação de nova capacidade
produtiva e inovação de processos de produção.
Precisamos de instituições financeiras tipo Crédit
Mobilier.
2 Política fiscal (tributar terra e recursos naturais). Aqui o
principal nome da era clássica é Henry George (1839-1897). No seu
Progress and Poverty
(1879) ele observou que grande parte da riqueza criada por avanços
sociais e tecnológicos é capturada por latifundiários e
outros monopolistas através de rendas económicas. Esta
concentração de rendimento "não ganho" o
qual a rigor não é rendimento, embora seja um fluxo de receita
nas mãos de poucos é, segundo George, a causa da pobreza
crescente precisamente naquelas áreas que estão mais
desenvolvidas. O infortúnio do pobre na economia madura de Nova York
afecta-o muito mais gravemente do que os padrões de vida dos pobres na
sua Califórnia nativa (então subdesenvolvida).
Hoje, os fluxos de renda empobrecedores são (a) em pagamento de activos
com preços inflacionados e (b) no serviço dos empréstimos
contra aqueles activos. Uma grande parte dos fluxos de excedentes da economia
para a propriedade e sectores financeiros em pagamento de empréstimos,
juros e comissões pelo uso da terra e da habitação. E
hoje, tal como nos tempos de George, a desigualdade aumentou fortemente quando
empréstimos bancários foram reorientados para afastarem-se do
apoio ao sector real e rumo a empréstimos do sector FIRE. Isto conduz
para a alta os preços dos activos e portanto das hipotecas, aumentando a
drenagem da economia real e ao mesmo tempo enriquecendo proprietários de
activos.
3 Políticas regulamentares para manter os preços onerados
pelos monopólios naturais tais como ferrovias, companhias de energia e
gás de acordo com custos reais de produção mais lucro
normal. O exemplo clássico disto é o US Sherman Antitrust Act
(1890), aprovado em resposta ao desenvolvimento de conglomerados de
negócios ou "trusts" no último terço do
século XIX, os quais muitas vezes reprimiam a competição e
manipulavam preços. Hoje, mais uma vez, o mercado financeiro global
é dominado por uns poucos gigantes e na maior parte das economias
três ou quatro bancos controlam 80% ou mais dos mercados internos.
O resultado é exactamente o comportamento que os americanos
progressistas lamentavam nos negócios do século XIX, agora
encenado nas finanças: aumentos artificiais de preços para
serviços bancários e remuneração do banqueiro,
muito acima do nível necessário para cobrir custos mais um lucro
razoável; bloqueio de compra e fixação de preço no
comércio de produtos financeiros e mesmo fraude e
intimidação de competidores. E após a crise, bancos
pequenos foram à bancarrota às centenas enquanto os grandes
bancos foram salvos. A reintrodução de políticas
financeiras anti-trust não será o fim (nos primeiros 10 anos de
existência do Sherman Antitrust Act, foram promovidos muito mais
processos contra sindicatos do que contra o big business). Mas será um
começo.
5. Como o sector FIRE opera
O sector financeiro tornou-se o principal sector rentista. O seu
"produto" é direitos de dívida sobre a economia
"real", subscrição e gestão de dinheiro com base
em comissões. Para isto ele recebe juros e dividendos dos tomadores de
empréstimos do sector imobiliário e dos negócios, assim
como dos consumidores. Ao longo do tempo, um comprador imobiliário
tipicamente paga mais em juros aos seus prestamistas hipotecários do que
o preço de compra original pago ao vendedor da propriedade.
Nas suas interacções com o governo, o sector financeiro compra
títulos (e também faz contribuições para
campanhas). O Federal Reserve bombeia dinheiro para dentro do sistema
bancário através da compra de títulos e, quando o sistema
entra em colapso, faz enormes pagamentos de salvamento para cobrir as
dívidas podres assumidas por bancos e outras instituições
junto a tomadores de empréstimos hipotecários, negócios e
consumidores. O governo também promove o sector imobiliário ao
proporcionar transporte e outras infraestruturas básicas que valorizam o
local da propriedade, além das estradas. Finalmente, o governo actua
como um comprador directo de serviços monopolizados tais como
seguradoras de saúde, companhias farmacêuticas e outros. Na outra
direcção, o governo dos EUA recebe uma pequena parcela de
impostos do imobiliário (principalmente ao nível local por
impostos sobre a propriedade), não muito rendimento fiscal mas alguns
ganhos fiscais de capital nos bons anos.
Não inesperadamente, o sector financeiro prefere tornar-se
invisível não só para os cobradores de impostos e
reguladores do governo como também em relação aos
eleitores. De facto, as políticas fiscais favorecem o rendimento
não ganho. A taxa fiscal no rendimento ordinário nos EUA é
duas vezes maior que o nível dos impostos sobre ganhos de capital: para
os escalões de taxa de imposto de 15% sobre o rendimento, o imposto
sobre os lucros do capital a 5 anos são de 8% e para o escalão
dos 39,6%, eles são de 18% (Kiplinger 2009). Mas, uma vez que ganhos de
capital não são rendimento, impostos mais altos sobre ganhos de
capital contrapõem-se com o facto de que este imposto ataca rendimentos
(ganhos não do capital), o qual portanto seria injustamente tributado.
Minarik (1992:16) escreve contra a tributação de ganhos de
capital asseverando que "o ónus da prova deveria permanecer
naqueles que violariam o princípio básico de taxas fiscais igual
sobre rendimentos de quaisquer origens". Isto funde fluxos de receita com
rendimento.
Tentativas com êxito de separar o sector rentista do resto da economia
e, portanto, transacções de balanço e de
dívida da compra de bens e serviços ajudaram a abrandar a
crítica do afastamento do fardo fiscal da renda da terra e da renda de
monopólio, assim como das finanças. Mas Epstein e Crotty informam
que "os activos totais do sector financeiro aumentaram cerca de um
terço do total de activos financeiros na economia dos EUA nas
décadas pós II Guerra Mundial para 45 por cento do total de
activos financeiros. O seu valor era aproximadamente igual ao PIB dos EUA no
princípio da década de 1950, ao passo que agora monta a 4,5 vezes
o PIB dos EUA. O lucro do sector financeiro cresceu de cerca de 10 por cento
nas décadas de 1950-60 para 40 por cento dos lucros totais interno no
princípio da década de 2000".
A distinção entre rentista e rendimento "ganho"
não foi incorporada no NIPA (Contabilidade Nacional). É como se
todo rendimento fosse ganho pelo desempenho de um papel produtivo e no qual o
dinheiro (e portanto, o crédito e a dívida) fossem
"neutrais", apenas um "véu", não afectando a
distribuição do rendimento e da riqueza. Como se o crédito
fosse gasto apenas em bens e serviços, não em activos. E os
empréstimos do sector financeiro assumissem sempre a forma de
crédito produtivo, permitindo aos negócios reembolsarem os
empréstimos com ganhos futuros enquanto os consumidores reembolsariam a
partir do aumento de rendimentos futuros. Esta ainda é a
representação encontrada na maior parte dos manuais de hoje. Por
exemplo, Mishkin (2012:1 e 24) explica que "na nossa economia, as
finanças não bancárias também desempenham um papel
importante ao canalizar fundos dos prestamistas-poupadores para
tomadores-gastadores... As companhias financeiras levantam fundos pela
emissão de papel comercial e acções e títlos e
utilizam as receitas para fazerem empréstimos que são
particularmente adequados para as necessidades do consumidor e dos
negócios".
Portanto, aí não há explicação de como uma
bolha de crédito poderia inchar preços imobiliários e a
seguir entrar em colapso num desastre de situação líquida
negativa. As finanças parecem apenas criar riqueza, não
empobrecer a economia subjacente. Admiravelmente, isto foi afirmado mesmo para
os produtos exóticos cuja proliferação antecedeu o crash
de 2008. Ainda em 2006 académicos asseveram que "riscos
financeiros, particularmente riscos de crédito, já não
são mais suportado pelos bancos. Eles são cada vez mais retirados
do balanço. Os activos são convertidos em títulos
comerciáveis, os quais por sua vez elimina riscos de crédito.
Transacções de derivativos como swaps de taxas de juro
também servem o mesmo objectivo [de eliminar riscos de crédito,
MH & DB]" (Das 2006).
Nem tão pouco há qualquer meio de os modelos correntes
distinguirem transferências de pagamentos do governo para o sector
financeiro (ex., os US$13 milhões de milhões nos salvamentos
financeiros pós 2008 nos Estados Unidos) do gasto deficitário
estilo keynesiano. Tais transferências de pagamentos não
"deram a partida" à economia. Eles deram a uma elite
financeira politicamente bem conectada novos direitos adquiridos. Tudo isto
é completamente omisso na teoria macroeconómica convencional, a
qual não pode enfrentar o papel do sector financeiro na economia.
Economistas eminentes têm descrito o treino actual em modelos
macroeconómicos como inúteis, e mesmo socialmente devastadora
(Buiter 2009; também Krugman 2009; Solow 2010).
Pode-se entender porque o sector financeiro tem tão pouco interesse em
rastrear o efeito do aumento do dinheiro e do crédito no desvio de
rendimento do fluxo circular entre produtores e consumidores, desviando
receitas de negócios de nova formação de capital e
depredando activos industriais e recursos naturais. A maior parte dos
construtores de modelos isola estas reacções estruturais,
ambientais e demográficas a longo prazo como "externalidades".
Mas elas são parte integral da realidade. Assim, é-se tentado a
dizer que o elemento financeiro dos modelos económicos é
demasiado importante para ser deixado aos banqueiros e aos think tanks que eles
patrocinam.
6. Efeitos sobre o ambiente, a demografia e a economia
Assim como a deflação da dívida desvia rendimento para
pagar juros e outros encargos financeiros muitas vezes ao custo de pagar
tanto fluxo de caixa corporativo que têm de ser vendidos activos para
pagar credores do mesmo modo o fenómeno leva à
depredação do ambiente natural. A chamada "hipótese
da dívida como recurso" sugere que alto endividamento leva à
exploração acrescida de recursos naturais bem como a
padrões mais insustentáveis de utilização de
recursos (Neumayer 2012). Isto é o que se verifica quando, por exemplo,
o FMI e o Banco Mundial actuam por conta de bancos globais para exigirem que o
Brasil pague a sua dívida externa com a privatização da
floresta amazónia de modo a que madeireiros possam ganhar bastantes
divisas externas para pagar banqueiros estrangeiros credores da dívida
em divisas externas do país. A analogia é com
latifundiários absenteístas que pagam suas hipotecas com a
não reparação da sua propriedade e deixando-a
deteriorar-se. Em todos estes casos o efeito da deflação da
dívida ao extrair juros é não só na despesa
e portanto sobre os preços correntes como também na
capacidade da economia a longo prazo para produzir, ao devorar os seus recursos
naturais e o ambiente bem como o stock capital feito pelo homem dessa sociedade.
Demograficamente, o efeito da deflação da dívida é
a emigração e outros igualmente negativos. Exemplo: depois de os
preços da propriedade na Lituânia ascenderem quando agências
de bancos suecos alimentaram a bolha imobiliária, os padrões de
vida afundaram. As famílias tinham de aceitar uma vida inteira de
dívida a fim de ganhar a habitação que em 1991 foi legada
ao país livre de dívida quando acabou a União
Soviética. Quando o governo da Lituânia impôs
políticas de austeridade neoliberal em 2009-10, os níveis
salariais afundaram em 30 por cento no sector público e os do sector
privado seguiram o declínio (Sommers et al 2010). A
emigração e a fuga de capitais aceleraram:
The Economist
(2010) informou que cerca de 30 mil lituanos por ano estavam a abandonar o
país, numa população de 2,2 milhões. Na
Islândia afundada em dívida, o recenseamento informou em 2011 que
8% da população havia emigrado (principalmente para a Noruega).
Na medida em que os investidores de hoje têm como objectivo mais os
"retornos totais" (rendimento líquido + ganhos de capital) ao
invés de simplesmente o rendimento em si próprio, um modelo
realista deveria integrar ganhos de capital e investimento no modelo actual
produção-consumo. Os produtores não só pagam
salários e compram bens de capital como nos modelos da "economia
actual"; eles também utilizam seu fluxo de caixa (e mesmo
contracção de empréstimos) para comprar outras companhias,
bem como as suas próprias acções. Quando eles fazes
aquisições a crédito, o resultante alavancamento da
dívida encontra a sua contrapartida nos pagamentos de juros que absorvem
uma fatia crescente do fluxo de caixa corporativo.
Isto tem um efeito sobre a posição fiscal do governo, porque os
juros são uma despesa fiscalmente dedutível. Ao deslocar lucros
tributáveis, a receita do negócio que até então era
paga como impostos sobre o rendimento é agora utilizada para pagar juros
a credores. O resultado no princípio da década de 1980 quando
debt-leveraged buyouts realmente ganharam impulso foi que investidores
financeiros foram capazes de obter o dobro de retorno (a uma taxa de imposto
sobre o rendimento de 50%) pelo financiamento da dívida quando podiam
sobreviver com financiamento por acções. Este incentivo fiscal
para alavancamento de dívida ao invés de investimento por
emissão de acções é o reverso do que Sait-Simon e
seus seguidores instavam no século XIX a tornar-se a onda do futuro.
7. Em conclusão
Só uma parte do fluxo de caixa do sector FIRE é gasta em bens e
serviços. A maior parte é reciclada na compra de títulos
financeiros e outros activos, ou emprestada como ainda mais dívida
produtora de juros em termos de crédito cada vez mais
fáceis pois o repertório de investimentos directos
bancáveis está exaurido. Assim, a tarefa urgente de hoje é
detectar como dirigir mais crédito para mercados de activos afecta os
preços dos activos muito mais do que os preços das mercadorias.
Empréstimos padrões deterioram-se quando os rácios
dívida/acções aumentam e os credores "correm para a
base" a fim de encontrar tomadores de empréstimos em mercados cada
vez mais distantes da economia "real". Este carácter cada vez
mais improdutivo do crédito explica porque a riqueza está a ser
concentrada nas mãos dos 10% mais ricos da população.
É o resultado disfuncional do parasitismo económico.
Keynes reconhecia uma "fuga"
("leakage")
na forma de poupança (o entesouramento, especificamente). Mas no tempo
em que escrevei, em meio à Grande Depressão, havia pouca
motivação para centrar-se no serviço de dívida, ou
na distinção entre investimento directo de capital
(formação de capital tangível) e especulação
com títulos financeiros ou especulação imobiliária
(as quais quase secaram quando os mercados activos estavam a contrair-se em
reflexo da contracção da economia). A poupança assumia a
forma de não gasto, não de pagar dívida à vista.
Houve pouca concessão de empréstimos sob as
condições da depressão.
As actuais tentativas pós-bolha de incorporar nas Contas Nacionais
(NIPA) as estatísticas da actividade corrente são demasiado
grosseiras. Os stocks médios não dão uma medida
quantitativa adequada que distinga o fluxo de fundos para terra e melhorias de
capital ou para a formação de capital industrial em contraste com
a especulação em títulos financeiros. Assim, a
análise monetária precisa ser reformulada de acordo com uma
melhor desagregação estrutural do NIPA a fim de distinguir moeda
e crédito gastos em bens e serviços do que é gasto em
activos financeiros e serviço da dívida.
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[*] Da Universidade de Missouri Kansas City & do Levy Institute, EUA,
autor de
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ISLET, Dresden, 2012, 481 p., ISBN 13:978-3-9814842-0-5
[**] Da Universidade de Groningen, Holanda
O original encontra-se na
World Economic Review,
vol. 1, 2012 e em
http://www.globalresearch.ca/the-bubble-economy-and-debt-deflation/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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