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							O que é 'capital fictício'?
						
								
									por Marx Memorial Library
								
							 
							 O "ouro das fadas" nas fábulas infantis é dinheiro
							mágico  uma fortuna que logo se desfaz e se revela como folhas,
							poeira ou lixo inútil. Mais coloquialmente, é a riqueza
							precária ou ilusória que pode desvanecer-se tão
							rapidamente quanto é adquirida. Esse foi certamente o caso de alguns
							especuladores na sequência da crise bancária global de 2007-2008. 
 As vítimas reais, é claro, foram famílias comuns da classe
							trabalhadora que em consequência perderam suas poupanças, suas
							casas, seus empregos e, por vezes, suas vidas.
 
 A crise não foi algum tipo de aberração. Marx destacou
							que, embora as crises sejam inerentes ao capitalismo, as que envolvem o que ele
							chamou de "capital fictício", um subconjunto do capital
							financeiro, eram centrais.
 
 Para a maioria das pessoas capital financeiro significa dinheiro, ou melhor,
							dinheiro no banco para além do que é necessário à
							sobrevivência e que potencialmente possa ser investido para ganhar mais
							dinheiro. A maioria das pessoas não tem muito dele e aquele que
							têm não lhes rende muitos juros.
 
 Mas algumas pessoas têm aos montes, corporações e bancos
							têm ainda mais. Por vezes eles investem em capital "produtivo":
							matérias-primas, energia, materiais e serviços e, acima de tudo,
							maquinaria (os "meios de produção") e na força
							de trabalho dos trabalhadores que empregam.
 
 Marx chamou a isto de "capital real" ao lado de "capital
							monetário"  os fundos reais utilizados. Isto permite-lhes
							produzirem uma mercadoria cuja venda realiza um lucro  mais capital
							financeiro  o qual pode ou não ser reinvestido.
 
 O "Capital fictício" é diferente. O capitalismo depende
							do crédito e da dívida. Sempre dependeu. Se você contrair
							um empréstimo  comprar alguma coisa com o seu cartão de
							crédito por exemplo (dois séculos atrás poderia ter sido
							um empréstimo de um agiota para comprar sementes ou ferramentas), tem de
							trabalhar para reembolsá-lo  com juros. O dono de uma
							fábrica que contrai um empréstimo para expandir está a
							"apostar" o seu reembolso com a exploração de futuros
							empregados.
 
 O que há de novo hoje é o domínio global da
							financiarização  e o facto de que uma
							proporção crescente do capital financeiro é, para usar o
							termo de Marx, "fictícia".
 
 Hoje, o "capital fictício" é independente da
							produção real de mercadorias (bens ou serviços). No fundo,
							ele consiste essencialmente de "pretensões" 
							
								("claims")
							
							 financeiras sobre bens e serviços que ainda não foram produzidos
							(e que poderão nunca virem a ser produzidos), a promessa de ganhos
							futuros com base na mais-valia criada por trabalhadores que ainda não
							foram empregados.
 
 Inclui acções, quotas e outros valores mobiliários, os
							quais, disse Marx, são "meramente um título de propriedade
							de uma porção correspondente da mais-valia a ser realizada por
							ela"  conferindo essencialmente ao seu possuidor uma
							participação em lucros futuros, uma fatia do valor apropriado do
							trabalho daqueles que o produziram.
 
 O capital fictício de hoje envolve a invenção de produtos
							financeiros "em papel" (na verdade electrónicos) cada vez mais
							complexos, tais como derivativos, activos titularizados e hipotecas em moeda
							estrangeira, tudo inimaginável na época de Marx e cada vez mais
							distanciado da produção de mercadorias físicas.
 
 A tecnologia financeira ou "fintech"  o reforço
							automatizado dos serviços financeiros  é um dos principais
							focos de inovação e de investimento global, particularmente na
							Grã-Bretanha pós-Brexit, onde o investimento especulativo dobrou
							no ano passado para cerca de £37,5 mil milhões.
 
 Hás exemplos que vão desde plataformas de 
							 crowdfunding
							 (empresas como Kickstarter e GoFundMe), passando por aplicativos inteligentes
							de investimento e negociação de acções, até
							novas blockchain e criptomoedas.
 
 Marx não apenas cunhou o termo "capital fictício" como
							dedicou bastante esforço a analisá-lo. Um capítulo
							intitulado 
							
								Crédito, capital fictício e crise
							
							 no volume III de 
							
								O capital
							
							 demonstra como o capitalismo se torna cada vez mais dependente do
							crédito e da dívida como elementos-chave do capital
							fictício.
 
 Hoje, crédito e dívida  desde o saldo do seu cartão
							de crédito até à dívida nacional  são
							fundamentais para o capitalismo. Ao nível individual, agências de
							cobrança perseguem os devedores por conta de um credor.
 
 Mas o próprio crédito é uma mercadoria: ele é
							comprado e vendido. E se bastantes pessoas incumprirem, há um problema.
 
 A par da dívida e muitas vezes intimamente ligada a ela, particularmente
							desde o colapso de 2008, uma componente cada vez mais importante do capital
							fictício é o "capital morto", tipificado por
							propriedades vazias e pelo "banco" de terras para desenvolvimento,
							com valor de uso não realizado, não produzindo renda mas a
							valorizar-se em termos de valor de troca  e produzindo um
							"lucro" nocional para seus proprietários  a cada dia que
							passa.
 
 O lucro está ali, certo, mas o capital físico real e sua
							capacidade de produzir produtos úteis não mudou absolutamente
							nada.
 
 A parte "fictícia" do capital fictício geralmente
							só se torna visível publicamente num momento de crise, mais
							particularmente durante o colapso de uma companhia ou de um banco, quando o
							capital social ou o "dinheiro" depositado (pelo qual o investidor tem
							um recibo) se torna sem valor.
 
 Naquilo em que a crise actual difere das anteriores é no papel do Estado
							a intervir para salvar o sistema económico. Sem isto, o consenso 
							tanto da direita quanto da esquerda  era que teria entrado em colapso na
							sua totalidade. E, naturalmente, a "prosperidade" que [a
							intervenção] retornou é restrita a um número
							relativamente pequeno de indivíduos.
 
 A intervenção do Estado para salvar a economia não
							é nada de novo. Engels ressalta (em nota de rodapé do volume III
							de O Capital) que o Banco da Inglaterra era capaz de "emitir qualquer
							quantidade de notas bancárias, independentemente da reserva de ouro em
							seu poder; portanto, de criar uma quantidade arbitrária de capital
							fictício em papel-moeda e de usá-lo para o objectivo de fazer
							empréstimos a bancos, corretores de câmbio e, por meio deles, ao
							comércio".
 
 A partir da década de 1930, o "padrão ouro" foi
							abandonado (inicialmente nos EUA a fim de acabar com a Grande Depressão)
							para ser substituído por "moeda fiduciária" 
							
								("fiat money")
							
							  moeda emitida por governos mas não vinculado a qualquer activo
							específico, cujo "valor" é essencialmente uma
							questão de fé e que pode ser usada para comprar alguma coisa.
 
 "As reservas fraccionais da banca"  a prática normal
							pela qual as reservas mantidas por um banco são apenas uma
							fracção de seus passivos para com os depositantes (o que permite
							que a oferta de moeda cresça para além da base monetária
							criada pelo banco central) significa que o estado tem de actuar como
							prestamista de último instância para esses bancos comerciais.
 
 Em consequência, na crise de 2007-8 o Banco da Inglaterra criou moeda
							nova, electronicamente, a partir do nada, um processo chamado "facilidade
							quantitativa" 
							
								("quantitative easing", QE).
 
 Parte dela  cerca de 45 mil milhões de libras  foi usada
							para "comprar" acções do RBS [Royal Bank of Scotland],
							agora avaliadas em menos da metade do que o contribuinte pagou por elas. E
							quantias muito mais altas foram supostamente "injectadas" na economia
							 não através do investimento directo na
							produção, transportes, educação ou serviços
							de saúde, mas sim na recompra de títulos dos bancos comerciais,
							que então ficavam livres para usar o dinheiro como quisessem.
 
 A QE continua a crescer  de £200 mil milhões em 2009 para
							cerca de £435 mil milhões em 2018. Os valores foram ainda maiores
							no ano passado, a fim de combater os efeitos do Brexit  cerca de um
							quarto do PIB da Grã-Bretanha.
 
 E após a pandemia do Covid-19 eles provavelmente crescerão ainda
							mais, pois a moeda, injectado supostamente para apoiar a
							produção, o emprego e os serviços essenciais, acaba por
							escorar um sistema financeiro fracassado, grande parte do qual em
							paraísos fiscais além-mar.
 
 O "capital fictício" escora o sistema capitalista à
							custa de cortes cruéis em serviços de educação,
							saúde e bem-estar, níveis crescentes de dívida pessoal e
							institucional (incluindo governos nacional e locais), exploração
							acrescida para os trabalhadores e desigualdade crescente. O fardo, como sempre,
							recai sobre as pessoas comuns.
 
 
								11/Maio/2020
							Respostas anteriores (este é o número 63) podem ser encontradas
								em 
								 https://tinyurl.com/FullMarx
								 . 
 O próximo curso on-line da Biblioteca Memorial Marx e da Escola dos
								Trabalhadores, Sindicatos, Classe e Poder começa na segunda-feira 18 de
								Maio. Pormenores em 
								 https://tinyurl.com/MMLOnlineLearning
								 .
 
 Ver também:
 Capital fictício
									, L. N. Krasavina
									
									 Reflexões sobre a crise
									, Remy Herrera
									
									 Alucinações circulatórias da moeda e do capital fechando o ciclo
									, José Martins
									
									 Criptomoedas: do fetichismo do ouro ao hayekgold
									, Paulo Nakatani e Gustavo Moura de Cavalcanti Mello
									
									 Não, o coronavirus não é o responsável pela queda das cotações bolsistas
									, Eric Toussaint
									
									 Roubo ou exploração?
									, Michael Roberts
									
									 O capital fictício, como a finança se apropria do nosso futuro
									, Daniel Vaz de Carvalho
									
									 Crise: algumas perguntas e respostas
									, Jorge Figueiredo
									
									 La crisis global y el capital ficticio
									, Consuelo Silva Flores e Claudio Lara Cortés
 
 O original encontra-se em
								 morningstaronline.co.uk/article/f/what-is-fictitious-capital
 
 Este artigo encontra-se em
								 https://resistir.info/
								.
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