Visões em choque sobre a desnuclearização
Cimeira EUA-Coreia do Norte está em risco
As esperanças crescentes geradas pela recente Cimeira Inter-Coreana
são agora suplantadas pela incerteza, devido à suspensão
pela Coreia do Norte de uma reunião planeada com o Sul.
Nas semanas a seguir à cimeira da Declaração de Panmunjon,
a Coreia do Norte efectuou acções para demonstrar sua boa vontade
e desejo de resolução pacífica de diferenças.
A República Democrática e Popular da Coreia (RDPC, o nome formal
da Coreia do Norte)
anunciou
que desmantelaria seu sítio subterrâneo de testes nucleares, o
que culminaria em explosões para destruir túneis, no bloqueio de
entradas e na remoção de instalações acima do solo.
Progressos substanciais já haviam sido feitos quanto à
desactivação do sítio
. A RDPC poderia ter esperado e feito disto uma questão
negociável em conversações com os Estados Unidos. Ao
invés disso, ela ofereceu este passo aos Estados Unidos antes da
cimeira, como uma medida de construção de confiança.
Também antes, a Coreia do Norte comprometeu-se a uma
suspensão de testes nucleares e de mísseis
. E como gesto adicional de boas intenções, a Coreia do Norte
libertou todos os três prisioneiros americanos.
Os sinais iniciais das reuniões do secretário de Estado Mike
Pompeo com o presidente Kim Jong Us foram bastante encorajadores, indicando um
não característico grau de flexibilidade da parte da
administração Trump. Os media norte-coreanos informaram que as
conversações indicavam que Trump "tem uma nova
alternativa" e uma "atitude proactiva" e que
Kim e Pompeo
haviam alcançado "um entendimento satisfatório".
Enquanto isso, quando Pompeo e Kim faziam aparentes progressos, o processo
começou a descarrilar de um lado diferente. Houve muitos na
administração Trump que não estavam entusiasmados com a
ideia da reciprocidade. A visão dominante era que prémios,
quaisquer que fossem, só podiam vir após a
desnuclearização.
O Conselheiro de Segurança Nacional John Bolton saiu-se com uma
série de entrevistas para elucidar a posição dos EUA.
A desnuclearização permanente, verificável e
irreversível teria de verificar-se antes de "os benefícios
começarem a fluir", disse ele. A expectativa é que a RDPC deveria
abandonar sua dissuasão nuclear sem receber qualquer coisa mais em
retorno além da promessa de prémios futuros. Nem tão pouco
Bolton considera que o desarmamento nuclear será suficiente. As
negociações ainda não começaram e os EUA já
estão a amontoar novas exigências. As conversações,
Bolton insistiu, também precisariam considerar o programa de
mísseis balísticos da RDPC e preocupações com
direitos humanos.
Armas químicas e biológicas
também estarão na agenda, disse ele, apesar do facto de a sua
existência ser puramente especulativa. Negociações sobre
desnuclearização serão só por si bastante
desafiadoras. Sobrecarregar as conversações com questões
adicionais é provável que seja uma receita para o fracasso.
Mesmo quando a Coreia do Norte se esforça para atender exigências
americanas, ela não pode esperar qualquer alívio quanto a
sanções e ameaças. Bolton assevera que os EUA precisam ver
a Coreia do Norte a implementar a
desnuclearização
e a política da máxima pressão não
esmorecerá até que isso aconteça.
Que espécie de benefícios pode a Coreia do Norte esperar como
retorno pelo cumprimento das exigências dos EUA? "Eu encararia a
nossa ajuda económica",
declarou Bolton sem rodeios
. Presumivelmente, uma vez que a Coreia do Norte tenha satisfeito todas as
exigências da administração Trump, as sanções
começariam a ser reduzidas ou eliminadas. Isso não é
um prémio. Se alguém está a punir outro, e então
promete reduzir o montante da punição, certamente se pode dizer
que a vítima não encarará isso como um
"prémio".
Na frente económica, Mike Pompeo concorda com Bolton. Nenhuns fundos do
contribuinte serão direccionados para
assistir a Coreia do Norte
, disse ele. O que os Estados Unidos estão desejosos de fazer é
enviar vorazes investidores corporativos à Coreia do Norte em busca de
oportunidades para fazer lucros. Uma vez tendo sido completada a
desnuclearização e levantadas as sanções,
Pompeo diz
que o presidente Kim "obterá da América o que ela
tem de melhor nossos empresários, nossos tomadores de risco,
nossos fornecedores de capital... Eles obterão entradas de capital
privado". Uma forte argumentação poderia ser feita de que
estes são realmente o que há de pior na América
e não são desejáveis para a Coreia do Norte nem para
qualquer outra nação.
Pompeo prosseguiu a falar acerca das necessidades da Coreia do Norte em energia,
agricultura, equipamento e tecnologia. As necessidade existem. Mas por que?
Durante décadas os Estados Unidos sujeitaram a RDPC a enormes danos
económicos por meio das sanções. O povo norte-coreano
não é incapaz de melhorar sua sorte. Ele só precisa que
lhe seja permitido fazê-lo, sem embaraços e
punições. O que a RDPC precisa e ao que apela sistematicamente
é à normalização de relações.
Certamente a Coreia do Norte não procura privatizar firmas estatais ou
contratar firmas dos EUA para trabalhos que ela é capaz de fazer por si
mesma, uma vez libertada do fardo das sanções.
Está claro que a administração Trump não
está desejosa de dar o que quer que seja à Coreia do Norte.
Não custa nada levantar sanções ou alimentar a
esperança de que oportunidades lucrativas na Coreia do Norte
florescerão para investidores estado-unidenses. Assinar um pedaço
de papel prometendo uma garantia de segurança não impõe
qualquer fardo sobre os Estados Unidos. A administração Trump, ou
aliás qualquer futura administração, é livre para
ignorar aquela garantia e disparar os mísseis de cruzeiro sempre que
achar conveniente.
Nem tão pouco a retirada da administração Trump do acordo
nuclear com o Irão inspira confiança na confiabilidade dos
Estados Unidos como parceiro negocial.
Os pronunciamentos de Bolton, ajudado talvez por manobras de bastidores,
parecem ter levado Pompeo a recuar das suas declarações
anteriores acerca de ter sido feito progresso e ter sido alcançado um
entendimento mútuo com o presidente Kim. Ele agora está a
informar que resta muito trabalho a fazer e que os EUA e a Coreia do Norte
não estão "
nada próximos
".
"Temos muito em mente o modelo da Líbia de 2003, 2004", disse
Bolton recentemente à Fox News. Naquele modelo a Coreia do Norte teria
de despachar suas armas nucleares para Oak Ridge, Tennessee, para
destruição. À RDPC seria exigido completar o desarmamento
antes e receber alívio em relação às
sanções depois.
Então como é que esse modelo funcionou para a
Líbia
? Aquele país começou por desnuclearizar no princípio de 2004
e, ao longo do processo, cumpriu plenamente as exigências dos EUA de
desnuclearização unilateral. Mas os Estados Unidos foram
vagarosos quanto à compensação e os líbios muitas
vezes queixaram-se a diplomatas americanos de não terem sido premiados
pelo seu cumprimento. Só em 2006 éM que os EUA restabeleceram
relações diplomáticas e removeram a Líbia da lista
de estados patrocinadores de terrorismo.
Embora os EUA fossem morosos em dar alívio à Líbia,
estavam ansiosos por emitir mais exigências. John Bolton, que foi
sub-secretário de Estado na administração George W. Bush
naquela altura,
disse a responsáveis líbios
que eles tinham de cortar a cooperação militar com o Irão
a fim de completar o acordo de desnuclearização. Em pelo menos
uma ocasião, um responsável dos EUA
pressionou a Líbia
a cortar o comércio militar com a Coreia do Norte, o Irão e a
Síria.
Responsáveis americanos também exigiram que a Líbia
reconhecesse a
independência do Kosovo
, uma posição a que a Líbia se opôs
sistematicamente. A isto seguiu-se uma nota diplomática dos EUA para a
Líbia, ordenando que votasse contra a [proposta de]
resolução
do governo sérvio nas Nações Unidas, a qual pedia uma
sentença do Tribunal Internacional de Justiça sobre a legalidade
da independência do Kosovo. Nessas circunstâncias, a Líbia
preferiu ausentar-se da votação ao invés de juntar-se aos
Estados Unidos e aos outros três países que se opuseram à
medida.
Os EUA tiveram mais êxito ao obter o voto da Líbia em favor de
sanções da ONU contra o Irão
. Sob pressão dos EUA, a Líbia também lançou um
programa de privatização e abriu oportunidades para
negócios dos EUA.
A Coreia do Norte pode esperar o mesmo tratamento se seguir este modelo. Os
Estados Unidos começarão a tratá-la como um estado
vassalo, esperando que cumpra ordens sobre uma miríade de
questões que nada têm a ver com desnuclearização.
Todos nós sabemos como o modelo terminou, com os Estados Unidos e seus
parceiros da NATO a bombardearem a Líbia e com o assassinato brutal de
Muammar al-Qaddafi. Os norte-coreanos também sabem.
Em 2006 a Grã-Bretanha e a Líbia assinaram uma Carta Conjunta
sobre Paz e Segurança. O documento declarava que as duas
nações "comprometiam-se nas suas relações
internacionais a absterem-se da ameaça ou da utilização de
força contra a integridade territorial ou independência
política um do outro". Ela ainda obrigava as partes a
absterem-se de intervir
nos assuntos internos um do outro. Cinco anos depois a Grã-Bretanha
estava a ajudar jihadistas a combaterem para derrubar o governo e juntou-se
à NATO no bombardeamento da Líbia. Isso é o modelo
líbio, também, no qual está provado que uma
"garantia" de segurança ocidental não tem valor.
A RDPC tem em mente uma abordagem mais crível,
acção-por-acção, para as negociações.
Nesta há uma abordagem faseada e cada lado ganha alguma coisa à
medida que o progresso continua rumo ao objectivo final da
desnuclearização e da normalização de
relações.
Continuando a estabelecer um quadro de respeito mútuo pelas
negociações, este mês a Coreia do Norte
reduziu drasticamente
a escala de seus exercícios anuais com veículos blindados.
Contudo, Washington está a enviar sinais de uma natureza diferente. Em
11 de Maio arrancaram os
exercícios aéreos
Max Thunder EUA-Coreia do Sul, mobilizando mais de 100 aviões de
combate, incluindo o avançado Stealth F-22 Raptor. O exercício
deste ano é o maior já efectuado, numa aparente tentativa de
aplicar pressão adicional à Coreia do Norte.
Em resposta, a Coreia do Norte
anunciou
que suspendia sua reunião de 16 de Maio com responsáveis
sul-coreanos. A KCNA, agência de notícias da Coreia do Norte,
destacou que os exercícios ampliados constituíam "um desafio
sem disfarce à Declaração de Panmunjon", na qual
ambas as Coreias se comprometiam a cessar todos os actos hostis. A
notícia acrescentava que a Declaração de Panmunjon
não pode ser implementada apenas por uma das partes.
Seguiu-se o primeiro vice-ministro dos Negócios Estrangeiros da RDPC,
Kim Kye Gwan,
anunciando
que a melhoria nas relações com os Estados Unidos arriscava-se a
ser desfeita por responsáveis americanos apelarem ao desarmamento
unilateral e a aderência ao modelo líbio. A Coreia do Norte
já declarou sua intenção de desnuclearizar em troca de um
fim à política hostil dos EUA, continuou ele. "Mas agora os
EUA estão a avaliar mal a magnanimidade e as iniciativas com abertura de
espírito da RDPC como sinais de fraqueza".
A Coreia do Norte deixou a porta aberta para os EUA e a Coreia do Sul. A
reunião de 16 de Maio com responsáveis sul-coreanos foi suspensa,
não cancelada. E os norte-coreanos estão a dizer que
observarão de perto o comportamento dos EUA e de responsáveis
sul-coreanos. Retratado nos media ocidentais como um acto de
inexplicável petulância, a suspensão da reunião
inter-coreana é um alerta para os Estados Unidos e a Coreia do Sul. O
modelo da capitulação não é uma abordagem
viável. A reciprocidade é essencial.
Os norte-coreanos não estão em vias de renunciar à sua
dissuasão nuclear por nada mais do que uma promessa vazia de
segurança e pela sugestão de que sanções podem ser
levantadas se cumprirem uma multidão de exigências adicionais.
Durante a administração Obama o programa de armas nucleares da
Coreia do Norte estava numa etapa de desenvolvimento suficientemente imatura
que os Estados Unidos sentiram poder exigir que a Coreia do Norte
desnuclearizasse plenamente como condição prévia para
conversações.
Depois de a RDPC ter completado seus programas acelerados de armas nucleares e
mísseis balísticos, ela agora tem alguma coisa de substancial
para negociar. Ela espera que os Estados Unidos se empenhem nas
negociações diplomáticas normais das concessões
mútuas. O antigo representante do Departamento de Estado para a Coreia
do Norte,
Joseph Yun
, observa: "O preço subiu. Você tem de tratar do que eles
querem. Se acredita que eles deveriam tratar só do que nós
queremos penso que é um caminho muito, muito errado".
17/Maio/2018
Ver também:
Tentará John Bolton repetir o seu feito?
[*]
Director do Jasenovac Research Institute e associado do Korea Policy Institute,
membro do Comité de Solidariedade para a Democracia e a Paz na Coreia e
membro da Task Force to Stop THAAD in Korea and Militarism in Asia and the
Pacific. Seu sítio web é
https://gregoryelich.org
O original encontra-se em
www.zoominkorea.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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