Colômbia sob a pressão de "criminosos de paz" (1)
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os dois homens [Macron e Duque], infelizmente, não tiveram tempo
de evocar os 7 milhões de deslocados internos colombianos, nem os 462
dirigentes sociais, comunitários, indígenas, camponeses e
defensores dos direitos humanos assassinados no país, de janeiro de 2016
a fevereiro de 2019 (incluindo 172 em 2018), a crer no Provedor de
Justiça (Ombudsman) Carlos Negret, nem os 133 ex-guerrilheiros
executados (assim como 34 membros das suas famílias), depois de haverem
deposto as armas, confiantes na palavra do Estado.
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Em visita oficial à França, o presidente colombiano, Iván
Duque, foi recebido, em 19 de junho, no Palácio do Eliseu. Na
ocasião, o presidente Emmanuel Macron recordou o empenhamento de Paris
no pleno êxito dos acordos de paz, assinados em 24 de novembro de 2016,
entre o poder e as Forças Armadas Revolucionárias da
Colômbia (FARC),
"acordos financeiramente apoiados numa base bilateral, com a
intermediação da União Europeia",
realçou ele. No que lhe diz respeito, Duque evocou sobretudo
"a sua preocupação com as consequências na
Colômbia da crise migratória venezuelana".
Em linha com o seu interlocutor Paris e Bogotá
reconheceram o
"imaginário presidente"
venezuelano, Juan Guaido, e invocaram o Tribunal Penal Internacional
(TPI) para julgar o legítimo chefe de Estado, Nicolás Maduro,
que, obstinadamente, se recusa a deixar-se derrubar Macron anunciou que
a França irá duplicar este ano sua contribuição
para o Alto Comissariado da ONU para os refugiados (ACNUR) e para o
Comité Internacional da Cruz vermelha (CICV), colocando sobre a mesa 1
milhão de euros para ajudar os migrantes e deslocados venezuelanos.
Com uma agenda manifestamente muito carregada, os dois homens, infelizmente,
não tiveram tempo de evocar os 7 milhões de deslocados internos
colombianos
[1]
, nem os 462 dirigentes sociais, comunitários, indígenas,
camponeses e defensores dos direitos humanos assassinados no país, de
janeiro de 2016 a fevereiro de 2019 (incluindo 172 em 2018), a crer no Provedor
de Justiça (Ombudsman) Carlos Negret, nem os 133 ex-guerrilheiros
executados (assim como 34 membros da sua família), depois de haverem
deposto as armas, confiantes na palavra do Estado
[2]
.
Para não deixar o campo aberto a uma possível e leve
sensação de desconforto, o ministro da Transição
Ecológica, François Henri Goullet de Rugy
("macronista"
de fresca data, tendência
"o verde está no fruto"
[3]
), assinou um acordo bilateral de cooperação para a
proteção do meio ambiente e dos recursos naturais com o seu
homólogo Ricardo Lozano, que fazia parte da delegação
colombiana. Também aí, por uma questão de
equilíbrio e de não ingerência nos assuntos internos de um
Estado soberano, foi assumido não mencionar a autorização
dada por Bogotá para a exploração não convencional,
por fraturação hidráulica ("
fracking
"), do petróleo e do gás de xisto presentes no subsolo
colombiano; as primeiras experiências vão arrancar continuamente
em 33.915 quilómetros quadrados, nos departamentos de Santander,
César, Bolívar e Antioquia
[4]
. Caro ao presidente francês como este recordou por ocasião
da assinatura de um acordo de livre comércio entre a União
Europeia e o Mercado Comum do Sul (Mercosul) a
implementação do Acordo de Paris sobre as mudanças
climáticas encontrar-se-á, sem dúvida, muito facilitado...
Paradoxalmente, foi dos Estados Unidos que, para o presidente de
extrema-direita Iván Duque, vieram as contrariedades. Com efeito, em 18
de maio, numa manchete de uma "
primeira página
" muito notada, o
New York Times
afirmou:
"As novas ordens do exército colombiano para matar preocupam"
[5]
. Baseada em documentos oficiais e testemunhos anónimos de oficiais de
alta patente, a investigação revelou as instruções
do comandante-em-chefe das forças armadas nomeado por Duque, em dezembro
de 2018, o general Nicacio Martínez, exigindo das suas tropas que
duplicassem o número de
"capturas"
e de
"eliminação de criminosos".
A injunção recorda a sinistra prática dos
"falsos positivos"
que, para
"fazer número",
levaram à execução de civis apresentados como
guerrilheiros mortos em combate 2.248 vítimas, entre 1988 e 2014
(oficialmente), dos quais, mais de 90% durante os dois mandatos do mentor de
Duque, Álvaro Uribe (2002-2010).
Sob o fogo da justiça, em relação a 283 destas
execuções extrajudiciais, nos departamentos de Cesar e da
Guajira, entre outubro de 2004 e janeiro de 2006, a 10.ª Brigada Blindada
tinha então como Vice-comandante e Chefe do Estado Maior ... Nicacio
Martínez (nomeado depois por Duque às mais altas
funções,
bis repetita
).
Percebendo uma possível reprovação internacional, o
Exército suspendeu essa diretiva dois dias após a
revelação do
New York Times
(NYT). Todavia, o
"incidente"
não terminou aí. Depois de o ministro da Defesa, Guillermo
Botero, ter denunciado o artigo como estando
"cheio de incoerências",
foi desencadeada uma feroz caça às bruxas dentro das
unidades militares para encontrar, ameaçar e punir os
responsáveis por aquelas revelações. Os dois colaboradores
do NYT, o jornalista Nicholas Casey e o fotógrafo Federico Ríos,
foram objeto de violentas rajadas de declarações agressivas
incluindo as do senador e ex-presidente Uribe, ou da senadora
María Fernanda Cabal (esposa de José Felix Lafaurie, presidente
da Fedegan, a poderosa federação de latifundiários, os
principais beneficiários das terras arrancadas aos camponeses por
paramilitares) e insultados, acusados e, até, ameaçados de
morte nas redes sociais, pelo que tiveram de deixar o país por
razões de segurança.
Tendo feito de Duque um de seus principais comparsas na
Organização dos Estados Americanos (OEA) para desestabilizar a
Venezuela, Donald Trump, em 6 de maio de 2019, nomeou embaixador em
Bogotá, Philip Goldberg, diplomata expulso da Bolívia em 2008,
pelo seu papel numa violenta tentativa de derrubar o presidente Evo Morales.
Isto é simbólico. Para não dizer um programa. No entanto,
por vezes acontece que os Estados Unidos restringem com uma mão o que
estimulam com a outra. Sobretudo em período eleitoral! Os oponentes a um
segundo mandato de Trump lançam-se assim contra os aspetos mais absurdos
de sua política matéria que não falta, no caso da
América Latina em geral e da Colômbia em particular.
É assim que, em 29 de maio, preocupados com a viragem dos
acontecimentos, com o apoio da Casa Branca, setenta e três membros
democratas do Congresso norte-americano apresentaram uma carta aberta muito
crítica ao secretário de Estado, Mike Pompeo, pedindo-lhe para
pressionar Duque, com o objetivo de deixar de pôr em causa os Acordos de
Paz. De onde, reforçando essa acusação, um outro editorial
do
New York Times
"Colombia's peace is too precious to abandon"
("A paz na Colômbia é preciosa demais para ser
abandonada")
, os média e o pessoal político (neste caso
democrata), sob a cobertura de informação independente, seguem
muitas vezes de mãos dadas.
Por que se havia de duvidar... É também o NYT, embora muito pouco
alinhado com Caracas, que atirou uma pedra ao charco, confirmando, com atraso,
o que um punhado de jornalistas independentes clamava no deserto: no
espetáculo que pretendia fazer entrar
"ajuda humanitária"
na Venezuela, desde Cúcuta (Colômbia), em 23 de fevereiro,
foram partidários do
"fantoche"
Guaido e não as forças de segurança
"de Maduro"
que incendiaram um camião da caravana de
"benfeitores da humanidade
um sítio da"; Web
, libertário-conservador, o
PanAm Post
, revelou-lhe a corrupção dos
"representantes"
de Guaido, que, no lado colombiano da fronteira, desviaram dezenas de
milhares de
"dólares humanitários",
teoricamente destinados a essa generosa operação; por sua
vez, a CNN em espanhol confirmou a tentativa de assassinato do presidente
Nicolás Maduro, com a ajuda de dois drones carregados de explosivos, em
4 de agosto de 2018, entrevistando na Colômbia, onde vive em completa
tranquilidade, um dos participantes neste magnicídio falhado (por
pouco). Tantas ações escabrosas e pesados fracassos
imputáveis à política de Trump e dos seus falcões,
Mike Pompeo, John Bolton (assessor de segurança nacional) e Eliott
Abrams
("enviado especial"
à Venezuela), que, como os seus comparsas venezuelanos, saem
ridicularizados. Daí algumas revelações, mas a ofensiva
contra Caracas continua noutros campos.
Porém, notar-se-á incidentalmente desculpe-se este aparte!
- que essas fugas dos média livres raramente excedem um razoável
limite. Como testemunha um edificante episódio, relatado (28 de junho de
2019) por Daniel Espinosa, no semanário peruano
Hildebrandt en sus trece.
Em 15 de junho, o NYT publica um artigo revelador sobre a escalada de
"ataques cibernéticos"
realizados pelos Estados Unidos contra... a rede elétrica russa
(o que, entre parênteses, reforça as suspeitas causadas pela
gigantesca falha de energia que, recentemente, paralisou a Venezuela). Como
é seu hábito e num instante, Trump atira-se por Tweet ao
New York Times:
a difusão desta informação constitui
"um virtual ato de traição".
Em relação ao que, com grande candura, o departamento de
comunicação do
"órgão de comunicação (muito)
independente"
responde e revela:
"Nós submetemos este artigo ao governo, antes da sua
publicação. Como o mencionamos na nota, os oficiais de
segurança nacional de Trump disseram-nos que não havia
problema" ...
Nas circunstâncias, e o que quer que se pense destas
relações, adversas ou incestuosas, consoante o momento, o atual
conluio
"antiTrump"
tem apenas aspetos negativos. Porém, há todos os motivos
para nos preocuparmos com uma aliança ainda mais mortífera: a da
extrema direita colombiana e do Partido Republicano Americano.
Em fevereiro de 2019, Duque apresentou a sua nova política de defesa e
segurança: esta interdita, a partir de agora, as tréguas
bilaterais no quadro do conflito armado interno, que continua a opôr o
Estado ao Exército de Libertação Nacional (ELN),
histórica guerrilha ainda em atividade. Uma medida perigosamente
contraproducente para o relançamento de uma possível
"negociação",
atualmente congelada, especialmente quando se observa que, desde a sua
chegada ao poder, Duque está a fazer tudo para rasgar os compromissos
assumidos em nome do Estado pelo seu antecessor, Juan Manuel Santos, quando ele
concretizou o fim do conflito com as FARC. Um terrível precedente. E,
acima de tudo, representa o assassinato de um Prémio Nobel!
O quinto ponto do Acordo de Paz, assinado em 24 de novembro de 2016, no teatro
Colón de Bogotá, previa um
"sistema de justiça, verdade, reparação e não
repetição",
incluindo uma jurisdição especial para a paz, que o
Congresso colombiano aprovou, em 27 de novembro de 2017.
"Ni trizas ni rizas!" ("nem rompimentos nem regozijos").
Fortalecido pela consulta popular, durante a qual, em 2 de outubro de
2016, após uma intensa campanha orquestrada pelo ex-presidente Uribe,
50,2% dos eleitores se pronunciaram contra o texto original dos Acordos, Duque,
antes mesmo de sua eleição, e seguindo à letra as
imprecações do seu mentor, nunca escondeu a sua
intenção de retornar à espinha dorsal do dispositivo: a
Justiça Especial para a Paz (JEP). Implementada, ela faria suar mais do
que um membro do
"establishment".
Originalmente, deveriam comparecer perante ela trinta e oito
magistrados, 13.000 ex-guerrilheiros (que respeitam este compromisso e
estão prontos a assumir as suas responsabilidades), polícias e
militares, assim como atores comprometidos da sociedade dita
"civil"
empresários ligados ao financiamento do paramilitarismo e
agentes (não membros da força pública) do Estado. Com,
como possível castigo, sentenças de restrição da
liberdade (mas sem prisão) de cinco a oito anos ou, mesmo, de
vinte anos de prisão efetiva para quem, autor dos mais graves abusos,
tentasse subtrair-se à revelação da verdade.
Crimes de guerra, crimes contra a humanidade... Eles bem puderam dar-se ares de
segurança, Álvaro Uribe e os seus não quiseram ir longe.
Já em setembro de 2017, o muito
"uribista"
Procurador Geral da República, Néstor Humberto
Martínez, se recusou a cooperar com a procuradora do Tribunal Penal
Internacional (TPI), Fatou Bensouda, e a entregar-lhe os relatórios e
documentos por ela solicitados. Ela mostrou-se muito irritada (mas sem grandes
consequências). Os mesmos lutam, desde então, como o diabo numa
pia de água-benta, para bloquear o outro canal de acesso às
atrocidades sob o terrorismo de Estado, aberto pela JEP.
Com efeito, desejando beneficiar das adaptações das suas penas em
troca da verdade devida às vítimas, mais de 300 paramilitares
pedem para comparecer perante a jurisdição, para revelar o seu
papel e o dos setores políticos que financiaram e promoveram o seu
movimento. Pelas mesmas razões, 1.914 militares, incluindo cinco
generais e vinte coronéis, alguns dos quais fortemente condenados (por
"falsos positivos"
ou ligações ao paramilitarismo), apresentaram-se à
JEP para beneficiar dos seus mecanismos, resultando da sua confissão e
das suas revelações penas muito inferiores às da
justiça ordinária (sabendo-se que eles não podiam ter
acesso à JEP, antes de terem passado pelo menos cinco anos na
prisão).
Um grande passo para repor a verdade, mas um pesadelo para os seus superiores e
os seus patrocinadores, os
"assassinos de colarinho branco".
Razão pela qual o presidente Duque declarou a sua
intenção de reformar alguns artigos da lei-chave.
A tentativa de desmantelamento da instituição criada para julgar
e mostrar ao país a realidade de um conflito sangrento, com mais de
cinquenta anos, não é de hoje. Já em 13 de julho de 2018,
após uma longa passagem pelo Congresso, o Tribunal Constitucional
eliminou a possibilidade da JEC convocar civis , ficando apenas
autorizada uma comparência
"voluntária"
destes. Depois de uma sentença (570 páginas) obrigar um
não-combatente a comparecer perante este tribunal, tal passaria a ser
"contrário à Constituição",
porque afasta o juiz natural do processo civil, que é a
justiça ordinária. Esta, além disso, na pessoa do
Procurador Geral, Néstor Humberto Martínez, não deixou de
expressar a sua hostilidade ao que considera como uma instância
ilegítima. O confronto de poderes irá até ao
questionamento, em setembro de 2018, da diretora dos Assuntos jurídicos
da JEP, Martha Lucía Zamora, e de dois advogados e consultores, July
Milena Henríquez e Luis Ernesto Caicedo Ramirez, acusados de
"aconselhar e proteger"
antigos combatentes das FARC. A alta funcionária será
empurrada para a demissão.
Finalmente remetida pelo Tribunal Constitucional ao Congresso, em dezembro de
2018, para que seja assinada pelos presidentes da Câmara e do Senado,
encarregados de a remeter, de seguida, ao Chefe de Estado, a lei
estatutária da JEP não terminou assim o seu percurso de combate.
Enquanto Duque diz que levará
"todo o tempo necessário"
para a ratificar, o seu assessor para a paz, Miguel Antonio Ceballos,
precisa que o governo pretende
"fazer objeção à lei"
por
"inconveniência"
(literalmente:
"inconveniente").
A única possibilidade que resta quando o Tribunal
Constitucional julga uma lei conforme com a Constituição, a "
objeção por inconveniência
" permite ao Chefe de Estado modificá-la, parcial ou totalmente,
devendo o Congresso decidir de seguida se aceita ou recusa a "
objeção
". Por outras palavras, Duque tenta usar a sua maioria parlamentar para
desrespeitar os Acordos e a decisão do Tribunal Constitucional,
instância suprema que lhe coloca areia na engrenagem.
É, então, em 10 de marco de 2019, num discurso televisionado que
Duque anunciou, efetivamente, a sua intenção de alterar seis dos
cento e cinquenta e nove artigos que regulam a JEP, dos quais um, altamente
sensível, se refere à extradição dos
ex-guerrilheiros. Um tema tanto mais delicado quanto, no quadro de um caso
particularmente "
arrevesado
" e altamente significativo, os Estados Unidos reclamam especificamente a
extradição de um dos mais prestigiados ex-comandantes das FARC,
Seuxis Paucias Hernández Solarte, mais conhecido sob o nome de guerra
que usava no comando do Bloco do Caribe: "
Jesús Santrich
". Intelectual, sofrendo de cegueira, ele dirigia aí,
essencialmente, as ações de agitação e de
propaganda, mais do que as operações estritamente militares da
oposição armada.
Em Havana, de outubro de 2012 a agosto de 2016, Santrich foi um dos mais duros
negociadores das FARC frente aos emissários de Juan Manuel Santos.
Excelente orador, brilhante analista, ele deve ocupar uma das dez cadeiras do
Congresso (cinco membros, cinco senadores) reservadas, durante duas
legislaturas, aos dirigentes da Força Alternativa Revolucionária
do Comum (FARC) , novo nome da guerrilha transformada em partido
político, conforme acordado no final das conversações. No
entanto, em 9 de abril de 2018, foi preso com base numa circular vermelha da
Interpol, emitida pelo Tribunal Federal do distrito sul de Nova York, acusado
de "
conspiração
", pelo envio de dez toneladas de cocaína para os Estados Unidos.
A prova (que não prova grande coisa): uma foto alegadamente tirada em 8
de fevereiro de 2018, enquanto Santrich estava supostamente a "
negociar
" a expedição para o Norte do carregamento de cerca de US $
15 milhões, com um agente "
infiltrado
" da Administração de Repressão da Droga (DEA, os
"
stups
" [estupefacientes NT] dos EUA) e alguns cúmplices
incluindo um certo Marlon Marín, sobrinho de Iván Márquez
(o principal negociador das FARC em Havana).
Curiosa maneira de conspirar discretamente com perigosos narcotraficantes: o
sulfuroso encontro teve lugar na casa de Santrich, vigiado e protegido em
permanência pela polícia, por causa da personalidade
sensível do seu habitante! Num vídeo produzido ulteriormente,
veem-se os mesmos "
verdadeiros-falsos narcotraficantes
" a discutir e a entregar um documento ao ex-guerrilheiro. Detalhe que
mata: nós mencionamos que Santrich é cego. Alguém poderia
oferecer-lhe a Bíblia, fazendo-o acreditar que é o
Alcorão. Nenhum som permite ouvir as palavras "
cocaína
", "
branco
", "
droga
", "
narcótico
", "
cheiro
", "
carga
" ou algum outro calão aproximado.
Contudo, o conteúdo da acusação não deixa de ser
muito sério. Santrich protesta a sua boa fé. Tendo-se apresentado
como o sobrinho de Iván Márquez, Marlon Marín
inspirava-lhe confiança. Ele e os outros, incluindo o provocador da DEA,
falavam nesse dia sobre fundos para "
um projeto produtivo, especificamente de fazenda agrícola, nas zonas
onde os acordos da reforma rural deveriam ser implementados
" destinados, entre outras coisas, à reintegração dos
antigos combatentes. "
Isso far-se-ia com funcionários do Ministério do
Pós-conflito, inclusive com o doutor [Rafael] Pardo
[6]
".
A acusação permanece, avançada pela toupeira dos
stups
americanos e Marlon Marín (imediatamente extraditado para os
Estados Unidos, onde vive como "
testemunha protegida
" sem ter, em qualquer momento, testemunhado perante a justiça
colombiana): misturado com a Venezuela (forçosamente!) e o cartel de
Sinaloa, no México, Santrich não é nada além de um
vulgar narcotraficante.
Seja qual for o lado por que se lhe pegue e com toda a necessária
prudência, esta história "
fede
" a provocação. E, depois, a evidente vontade do Centro
Democrático (partido de Uribe e Duque), da Procuradoria de Néstor
Humberto Martínez e das turbulentas organizações de
Washington de descartar um temível opositor, torpedear moralmente as
FARC e quebrar o impulso dos partidários da paz.
Mesmo do ponto de vista legal, o processo usado para prender Santrich é
proibido na Colômbia. No mundo da espionagem, existem dois tipos de
operações: a do agente clandestino ("
undecover agent
"), que se infiltra numa organização para aí recolher
informações; e a do agente provocador, que engana a sua presa
("
entrapmen
t") e incita-a a cometer um delito. Amplamente utilizada nos (e pelos)
Estados Unidos, esta última técnica foi proibida na
Colômbia pelo artigo 243 do Código de Processo Penal e por, pelo
menos, duas sentenças do Tribunal Constitucional (C-176, de 1994 e
C-156, de 2016)
[7]
.
Esta grosseira violação da lei não impede Juan Manuel
Santos, então presidente, de justificar a prisão como "
necessária para tornar credível um Acordo de Paz que os
colombianos acreditam ter sido excessivamente generoso com os rebeldes
" e de esclarecer: "
A minha mão não tremerá para autorizar a
extradição
".
"
Antes morrer do que apodrecer numa cadeia nos Estados Unidos
", reagiu Santrich. Ele inicia uma greve de fome, em abril-maio de 2018,
que durará 43 dias.
A partir daí tem início uma batalha legal para saber quem deve
decidir do seu destino. Se o delito, o crime ou a "
conspiração
" destinada a cometê-los ocorreram até à entrada em
vigor dos acordos de paz (1 de dezembro de 2016), a JEP é competente e,
conforme especifica a lei, qualquer extradição está
excluída. Se ocorreram posteriormente, a justiça ordinária
toma conta do alegado delinquente, com todas as suas possíveis
consequências (incluindo uma viagem gratuita e sem fim às
infernais prisões americanas). Sabendo-se que as duvidosas provas
apresentadas (foto e vídeo) não permitem determinar a data exata
da "
conspiração
". Mesmo se, neste ponto, Santrich nunca tivesse mantido qualquer
ambiguidade: a reunião suspeita ocorreu "
depois
" da data charneira , o verdadeiro problema reside no facto de se
tratar de uma manipulação destinada a difamá-lo, para o
esmagar.
Em 20 de junho de 2018, a JEP considera-se competente para julgar o caso.
Há linchamentos no ar: negro de raiva, Néstor Humberto
Martínez acusa a jurisdição "
concorrente
" de "
ameaçar a ordem constitucional
". Tenaz como a varíola, recusa duas vezes o pedido de
habeas corpus
apresentado pela Santrich. A tomada de posse oficial de Duque, a 7 de
agosto, aumenta a energia. À JEP, que lhe pediu o dossiê de
extradição do ex-guerrilheiro, ele enviou, em setembro,
presumíveis provas diferentes daquelas que a justiça
norte-americana alegadamente dispõe (sem nunca as ter comunicado aos
colombianos). O que leva uma comissão rogatória da JEP a
reclamá-las a quem de direito, através do Ministério da
Justiça (colombiana) e do Departamento de Estado (americano). Sem
resultado. No início de fevereiro de 2019, o embaixador dos EUA, Kevin
Whitaker, contentou-se em afirmar: "
Até agora, não recebemos nada do governo [colombiano] sobre este
assunto
".
O muito mau folhetim torna-se ridículo (ou obsceno, conforme): quando
está a terminar o prazo de quarenta dias concedido pela JEP ao
Ministério da Justiça para lhe remeter as provas que os Estados
Unidos dispõem contra Santrich, a ministra Gloria María Borrero
anuncia descobrir "
com surpresa
" que a solicitação oficial, uma "
carta ordinária
" enviada a Washington
através
do serviço postal público 4-72, se perdeu... no
Panamá
[8]
.
Ao mesmo tempo, e na esperança de deslegitimar a tão
incómoda JEP, os duvidosos métodos da DEA fazem das suas. Em
março, no bar do luxuoso hotel JW Mariott, situado na "
zona rosa
", bairro financeiro e de entretenimento do norte de Bogotá, a
polícia prende em flagrante delito um juiz da JEP, Carlos Julio Bermeo.
Acabava de receber uma primeira parcela de 40.000 dólares dos 500.000
que lhe prometeram para "
adulterar
" o dossiê de Santrich, para evitar a sua extradição.
Corrompido em potência e perfeito "
pombo
", Bermeo nunca duvidou que estava a lidar com um agente provocador da...
Procuradoria colombiana
[9]
.
Quando os fundamentos do "
show
" são descobertos, o procurador que os musicou justifica os
métodos utilizados e afirma que se deve considerar como "
normal
" que o procurador-geral Néstor Humberto Martínez tenha
autorizado a utilização dos 500.000 dólares, assinando uma
resolução a permitir retirá-los dos "
fundos especiais
" da Procuradoria.
As provas solicitadas aos Estados Unidos nunca chegarão. E como o seu
homólogo Trump, Duque vai sempre "
mais além
". Claramente preocupada, a Missão de verificação da
ONU na Colômbia exige que seja respeitado "
integralmente, o Acordo de paz assinado com as FARC
". Em 8 de abril, apesar da presença omnipresente no hemiciclo de
um furioso Néstor Humberto Martínez e das pressões do novo
embaixador norte-americano, Kevin Whitaker, a Câmara dos Deputados
rejeita as "
objeções
" do Chefe de Estado, com uma clara maioria de 110 vozes contra 44. A sua
derrota acentua-se quando o Senado vota no mesmo sentido, no início de
maio.
De costas voltadas, o Centro Democrático e os seus aliados contestam
falsamente o resultado da última votação faltaria
"uma voz"
e pedem ao Tribunal Constitucional para resolver. Este
último apenas destaca o óbvio, em 29 de maio: um quórum de
93 senadores foi convocado para votar e 47 rejeitaram as
"objeções"
estas foram rejeitadas. O braço de ferro inclina-se, cada
vez mais, contra o governo.
Em 15 de maio, a Jurisdição Especial para a Paz anunciou que
recusava o pedido de extradição de Santrich:
"As provas apresentadas pela Procuradoria dos EUA não permitem
afirmar
[que este]
fez tráfico de droga depois da entrada em vigor do Acordo de paz".
Por outro lado, considerou a sentença,
"os membros da DEA
[que desenvolveram a provocação]
não foram legalmente autorizados pela Procuradoria colombiana, que teria
podido
(e devido)
fazê-lo, através dos mecanismos existentes em matéria de
cooperação judiciária".
Por outras palavras: os
"serviços"
ianques acreditam que podem atuar na Colômbia como num país
conquistado.
O Tribunal Constitucional está agora a caminhar no mesmo sentido. Depois
de treze longos meses de encarceramento, decide ele, Santrich deve ser
libertado! Acusando a JEP de
"desafiar a ordem jurídica"
e
"ameaçar a democracia",
o procurador-geral Néstor Humberto Martínez anuncia
espetacularmente a sua demissão e apela aos cidadãos "
para se mobilizarem com determinação no restabelecimento da
legalidade e da defesa da paz
". A ministra da Justiça, Gloria María Borrero segue-o. Na
sua missão alinhar com os descontentes, Washington anula o visto a um
membro (John Jairo Cárdenas), que denunciou publicamente a
ingerência do embaixador Kevin Whitaker, e anunciou sanções
contra três juízes dois do Tribunal Constitucional (Antonio
José Lizarazo, Diana Fajardo) e um do Supremo Tribunal de Justiça
(Eyder Patiño).
Decidida em 13 de maio, a libertação da Santrich arrasta-se
inexplicavelmente, obrigando a defesa a apresentar um novo
habeas corpus
. Ainda foi preciso esperar até ao dia 17 para que o ex-guerrilheiro
deixasse a prisão de alta segurança de La Picota, em
péssimo estado, numa cadeira de rodas. E, golpe de teatro, é
recapturado dez minutos depois, por ordem do Procurador. Tudo isto sem
explicações. Dependendo das suas opiniões, este golpe de
teatro entusiasma, petrifica ou escandaliza os colombianos. Mas só mais
tarde se poderá reconstituir a cadeia de acontecimentos.
A ordem para libertar o ex-guerrilheiro entregue pela JEP às autoridades
do Instituto Nacional Penitenciário e Prisional (INPEC) chegou a 17 de
maio, às 9h. Nada acontece, nenhuma autoridade aparece. Em todo o lado
farfalham as conversas, o "
diz que disse
". Desde o dia 13, o ex-presidente Uribe dispara em todas as
direções. De acordo com o que espalha aos quatro ventos, Santrich
vai ser transferido para a base do Comando aéreo de transporte militar
(CATAM), próxima do aeroporto internacional el Dorado, de Bogotá,
entregue à DEA e enviado
manu militari
para os Estados Unidos. Hipótese confirmada quando, vindo das
altas esferas, surgiu um pequeno ruído: Duque vai decretar o Estado de
comoção interna e, efetivamente, entregar o detido
[10]
.
(continua)
Notas
[1] Segundo a Agência das Nações Unidas para os refugiados,
7,4 milhões, em março de 2017,
www.unhcr.org/fr/...
[2] Ao ritmo de (no mínimo) duas ou três vítimas por
semana ; estes números aumentaram consideravelmente depois desta
contagem.
[3]
www.lepoint.fr/...
[4] Uma das principais consequências da fraturação
hidráulica é a poluição das águas e dos
solos. Alguns pesquisadores acreditam que ela poderia estar relacionada com
terremotos, deslizamentos de terras e outras atividades sísmicas. Outros
evocam sequelas sanitárias, por vezes importantes para as
populações locais.
[5]
www.nytimes.com/...
[6] Ministro da Defesa durante o mandato do presidente César
Gaviria (1990-1994), Pardo tornou-se um alto conselheiro para o
pós-conflito, os Direitos do Homem e a Segurança, em novembro de
2015.
[7]
Semana,
Bogotá, 3 de junho de 2019.
[8] Em 2006, alegando
"problemas financeiros",
a Administração postal nacional (Adpostal) foi liquidada
pelo governo colombiano. Em sua substituição, criou o 4-72, a
atual rede pública.
[9] O advogado Bermeo apresentou-se às eleições regionais,
em 2015, no Departamento de Cauca, apoiado pelo partido
Opção cidadã
, do ex-senador Luis Alberto Gil, condenado em 2011 (saiu da prisão em
2013) pelas suas ligações ao paramilitarismo. Também
envolvido na provocação ligada ao
"dossiê Santrich",
Gil foi preso ao mesmo tempo que Bermeo, que estava a acompanhar.
[10] Na Colômbia, sem dissolver o Congresso nem suspender (teoricamente)
as liberdades fundamentais, o
"Estado de comoção interna"
(Estado de sítio) permite ao governo legislar por decreto e
suspender a aplicação de certas leis.
Ver também:
Obras de Jesus Santrich em
Livros para descarregamento
.
www.santrichlibre.org
[*]
Jornalista.
O original encontra-se em
www.medelu.org/La-Colombie-sous-la-coupe-des-criminels-de-paix
e a tradução em
pelosocialismo.blogs.sapo.pt/colombia-sob-a-pressao-de-criminosos-72498
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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