A escolha dos camaradas
por Loïc Ramirez
"A autofobia também se manifesta nas fileiras dos que, mesmo
continuando a declarar-se comunistas, se mostram obcecados com a
preocupação de reafirmar que não têm nada a ver com
um passado que consideram, tal como os seus adversários
políticos, como meramente sinónimo de abjecção. A
este narcisismo arrogante dos vencedores, que transfiguram a sua própria
história, corresponde a auto-flagelação dos
vencidos", afirmava o filósofo italiano Domenico Losurdo
[1]
. Um aviso para o movimento comunista europeu face à
renegação do seu passado pró-soviético.
Obediente, o Partido Comunista Francês despiu-se das suas vestes
marxistas-leninistas, abandonou a "ditadura do proletariado" e
escondeu a foice e o martelo. Apesar de fortes resistências internas, o
partido de Thorez, a exemplo de diversos partidos comunistas da Europa
ocidental, iniciou a viragem para o século XXI asseptizado da sua
"matriz bolchevique"
[2]
. Resulta daí uma distanciação das forças
revolucionárias que, outrora, estariam próximas dele.
A morte de Alfonso Cano, abatido pelo exército colombiano a 4 de
Novembro de 2011, provocou a reacção de inúmeros partidos
comunistas que prestaram homenagem ao chefe guerrilheiro. "Honra e
glória ao comandante Alfonso Cano!" anunciou o Partido Comunista da
Venezuela num comunicado de imprensa
[3]
. "Alfonso Cano foi sem sombra de dúvida um revolucionário
exemplar (
) Até sempre, Comandante Alfonso Cano!" escreve o
Partido Comunista do México
[4]
. Quanto aos comunistas chilenos, exprimem as suas "profundas
condolências pela morte do companheiro Alfonso Cano, primeiro comandante
das FARC-EP, às mãos do exército colombiano, sustentado
financeira e tecnicamente pelo aparelho militar do imperialismo americano
[5]
.
Na Europa, as vozes de protesto face à ofensiva militar de Bogotá
são mais raras. O Partido Comunista Grego (KKE) é um dos poucos a
pronunciar-se sobre o assunto, publicando um comunicado dirigido directamente
aos membros do Comité Central das FARC-EP, qualificando-os de
"Caros camaradas": "O camarada Cano tem um lugar de honra no
meio dos milhares de combatentes, sindicalistas, dirigentes políticos,
operários, camponeses e jovens que deram a vida nestes últimos
anos pela nova Colômbia (
) O Partido Comunista da Grécia
está solidário (
) apoiamos a luta para que as FARP-EP sejam
reconhecidas como força beligerante e saiam imediatamente da lista de
grupos terroristas da União Europeia"
[6]
. Em Espanha onde, dada a proximidade histórica que liga o país
ao continente sul-americano, seria de esperar uma reacção do
Partido comunista
nada. É preciso virarmo-nos para o PCPE (Partido
Comunista dos Povos de Espanha) para ler numa nota: "Os comunistas choram
hoje a morte de Alfonso Cano que passa a fazer parte da nossa história
libertadora, pertencendo aos povos e os povos são invencíveis,
prestamos homenagem a um revolucionário com a certeza de alcançar
a vitória"
[7]
.
Dos lados da Praça do Coronel Fabien
[NT 1]
não foi emitido nenhum comunicado oficial relativo a este
acontecimento. O quotidiano
L'Humanité
contentou-se em tratar esta notícia numa pequena nota, um "assunto
delicado", de poucas linhas no seu número de segunda-feira, 7 de
Novembro de 2011
[8]
. Foi o semanário
L'Humanité Dimanche
(HD) que dedicou uma nota consequente ao assunto, na sexta-feira, 10 de
Novembro, através da pluma do historiador e antigo jornalista Jean Ortiz
[9]
.
É certo que a Colômbia fica muito distante da França e que
não tem havido muitas ocasiões na história recente para os
revolucionários dos dois países estreitarem laços. O PCF
não tem tido, tanto quanto eu saiba, quase nenhum contacto com a
guerrilha camponesa do país andino. No entanto, a
secretária-geral, Marie-George Buffet, pronunciou-se sobre a
libertação da ex-refém Ingrid Betancourt no verão
de 2008 falando da "enorme alegria" que sentira com essa
notícia. O PCF publicara uma declaração na qual afirmava
partilhar da alegria da família Betancourt, considerando que "se
impunha a exigência duma libertação unilateral por parte
das FARC"
[10]
. Assim, o Partido, nessa altura, aprovava que se "exigisse" à
guerrilha uma diligência que "seria um gesto político
significativo a favor da paz", sem sequer falar dos prisioneiros
políticos feitos por Bogotá e que são reclamados pelo
grupo armado. A crer neste comunicado, cabe aos insurrectos fazer um gesto na
direcção duma negociação de
pacificação, enquanto estes não deixam de afirmar que foi
a agressão estatal que os obrigou a pegar em armas.
O silêncio do PCF sobre a morte de Cano terá sido um mero
esquecimento? É evidente que não e que isso reflecte, pelo
contrário, uma decisão política bem amadurecida. Como
poderia um partido legal, que faz parte do modelo democrático dum
estado-nação como a França, que reconhece as suas
instituições, ser solidário com uma
organização rebelde classificada como "terrorista" pela
União Europeia? No entanto, Carlos Medina Gallego, investigador na
Universidade Nacional de Bogotá, disse isto: "As FARC-EP não
têm poupado esforços para procurar obter junto da comunidade
internacional o reconhecimento de "força beligerante" e
não de terroristas, na medida em que essa identificação
torna impossível qualquer saída política e negociada para
o conflito"
[11]
.
Não é o único caso em que o Partido Comunista
Francês se afasta de pessoas que se definem como "comunistas"
com medo de ser atacado pela ideologia dominante. Julien Salingue é
professor na Universidade Paris VIII Saint Denis e orientou as suas pesquisas
sobre o conflito israelo-palestino. Em Setembro de 2002 entrevista o dirigente
marxista-leninista da FPLP (Frente Popular de Libertação da
Palestina). Ahmed Saadat, na altura detido pelas Autoridades palestinas, sob
pressão dos Estados Unidos e de Israel, pelo assassínio do
ministro italiano Rehaman Zeevi em 2001. Eis um extracto da entrevista:
"(J.S.) Há uns dias começou o processo de M. Barghouti, que
foi profundamente mediatizado. Na sua opinião porque é que,
enquanto se falou tanto dele, se mantém o silêncio sobre o senhor
e os seus camaradas? (A.S.) Primeiro que tudo preciso de esclarecer que
é importante que se fale de Barghouti (
) Quanto ao silêncio
a nosso respeito, a primeira responsabilidade, como calcula, cabe à
própria Autoridade Palestina, assim como às ONG que lhe
estão ligadas. Optaram por dar destaque aos que estão em Israel
porque, para eles, o nosso caso é bastante embaraçoso (
) A
única coisa que conseguiram fazer foi ajudar os israelenses que exigiam
há bastante tempo que a FPLP fosse posta na lista das
organizações terroristas estabelecida pela União Europeia.
A partir daí, ficou o assunto arrumado. Já antes, havia muitos PC
que recusavam a encontrar-se connosco, e depois disso ainda foi pior. O PCF,
por exemplo, que veio para se encontrar com a "esquerda palestina"
recusou-se a encontrar-se connosco oficialmente. Idem para o PC de Chipre. E
para outros. Isso faz parte igualmente do silêncio à nossa
volta"
[12]
. Profundamente envolvido nas libertações de Marwan Barghouti
(embora não comunista) e do jovem franco-argelino Salah Hammouri,
conforme ficou demonstrado no trágico episódio no estádio
de França no dia 11 de Novembro passado
[13]
, o MJCF (Movimento de Jovens Comunistas de França) ainda não
soube integrar a libertação do comunista Ahmed Saadat nas suas
reivindicações. Este último parece continuar a ser
esquecido no seio da organização da juventude e na do PCF.
Os combatentes armados são camaradas embaraçosos? É certo
que até Hugo Chavez se resignou a entregar às autoridades
colombianas combatentes da guerrilha, sob pena de ver cair em cima dele os
raios da propaganda mediática acusando-o de ser cúmplice de
perigosos terroristas. Conforme confessou, explicou que a
detenção do colombiano da oposição Joaquin Becerra
tinha sido necessária para não cair na armadilha que queria
atraí-lo para um terreno publicitário desfavorável. Teve
que cortar entre a legalidade internacional e os camaradas
[14]
. O PCF, porém, também já recorreu à luta armada no
passado. Em condições especiais, é certo (a
ocupação por um exército estrangeiro). Será
necessário analisar a situação colombiana e tentar
compreender se a acção da guerrilha se justifica ou se é
contraproducente? Logicamente, dada a sua proximidade histórica,
ideológica e geográfica com as FARC, o Partido Comunista
Colombiano poderia ser levado a utilizar luvas na altura de se pronunciar sobre
Cano, prejudicado que já está pela amálgama entre os seus
militantes e os guerrilheiros. Podemos compreender a importância que tem
para estes actores políticos legais pesar cada palavra no momento de
tratar dum assunto tão delicado num país maioritariamente hostil
aos guerrilheiros. Isso não impede o director do semanário
Voz
(jornal comunista) de afirmar: "O Partido Comunista Colombiano não
adere ao coro de alegria que invade o governo nacional, os círculos
militares e os representantes da extrema-direita e os partidários da
guerra na Colômbia em relação à morte de Alfonso
Cano, principal dirigente da guerrilha das FARC. Somos humanistas e por isso
é-nos dolorosa a morte dos nossos compatriotas. Ainda mais quando se
trata de um combatente revolucionário"
[15]
. Uma declaração sem ambiguidade do dirigente comunista que
reconhece ao guerrilheiro o estatuto de "revolucionário" e o
aceita assim totalmente no seio dessa família política. A isto
acresce um artigo na
Voz
, de Armando Orozco Tovar, cujo título resume o partido assumido:
"O rosto do herói"
[16]
.
Em França é pois assim tão delicado para o PCF reconhecer
Alfonso Cano como um "camarada"? Para os meios de
comunicação evidentemente seria fácil fazer correr a tinta
sobre a solidariedade expressa por um partido político para com um
"narco-terrorista". A opção de se distanciar pode pois
facilmente ser entendida como uma atitude pragmática e razoável a
que ninguém tem nada a opor. Parece-me apenas que é uma pena que
o partido que tem sede na Praça do Coronel Fabien não apresente
nenhumas condolências, nenhuma demonstração de respeito,
pela morte, a milhares de quilómetros, nas montanhas da América
do Sul, de um homem que, esse sim, seria reconhecido como um Pierre Georges
[NT 2]
.
19/Novembro/2011
[1] Fuir l'Histoire, la révolution russe et la révolution
chinoise aujourd'hui, D. Losurdo, edições Delga, 2007,
página 7
[2]
www.lemonde.fr/...
[3]
www.tribuna-popular.org/...
[4]
www.comunistas-mexicanos.org/...
[5]
www.abpnoticias.com/...
[6]
http://es.kke.gr/news/news2011/2011-11-08-farc-ep
[7]
pcpe.es/internacional/...
[8]
L'Humanité,
7 Novembro 2011, página 15
[9]
L'Humanité Dimanche,
semana de10 a 16 Novembro, página 65
[10]
http://www.pcf.fr/sujets/211
[11] FARC-EP, temas y problemas nacionales 1958-2008, C.M.Gallego, Universidad
Nacional de Colombia
[12]
www.juliensalingue.fr/...
[13] Agressão física dos militantes do MJCF, na sequência
da exibição duma bandeirola a favor da Palestina aquando do
desafio França-EUA, ver
www.lesinrocks.com/
[14] Ver o artigo sobre este assunto em
http://www.legrandsoir.info/L-heure-des-bons-et-des-mauvais-choix.html
[15]
carloslozanoguillen.blogspot.com/...
[16] Jornal
Voz,
n°2615, semana de 9 a 15 Novembro, pag. 9
[NT 1] Local onde está a sede do PCF.
[NT 2] Pierre Georges (1919-1944), mais conhecido por Coronel Fabien,
foi um
dos dois membros do Partido Comunista Francês que efectuou as primeiras
execuções de alemães durante a ocupação da
França na II Guerra Mundial. Em 1940, juntou-se à
Resistência Francesa nos Partisans Franco-Atiradores, que na altura ainda
actuavam sobretudo através de sabotagens de equipamento alemão em
França.
O original encontra-se em
http://www.legrandsoir.info/le-choix-de-ses-camarades.html.
Tradução de Margarida Ferreira.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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