por Michel Chossudovsky
Este artigo (editado e actualizado em 2018) foca o sistema capitalista da China
sob etiqueta "comunista".
Os salários são extremamente baixos, a produtividade é
alta. Estas são as realidades sociais das mercadorias "Made in
China", comercializadas à escala mundial.
A China é uma economia capitalista avançada integrada no mercado
mundial. Os salários para o trabalho não qualificado em
fábricas chinesas são tão baixos quanto US$100 por
mês, uma pequena fracção do salário mínimo em
países ocidentais.
O preço de fábrica de uma mercadoria produzida na China é
da ordem de 10% do preço de retalho em países ocidentais.
Consequentemente, a maior fatia dos ganhos da economia de trabalho barato da
China acumula-se nos distribuidores e retalhistas dos países ocidentais.
Em desenvolvimentos recentes, Trump instruiu sua administração a
impor tarifas sobre importações chinesas num valor da ordem dos
US$50 mil milhões.
O que Trump não percebe é que o défice comercial com a
China contribui para sustentar a economia de retalho dos EUA, contribui
também para o crescimento do PIB dos EUA.
Sanções comerciais dirigidas contra a China provocariam
imediatamente uma reacção adversa contra os EUA.
A China não está dependente de importações dos EUA.
Muito pelo contrário.
Os EUA são uma economia orientada pela importação, com
fraca base industrial e manufactureira, fortemente dependente de
importações da China.
Imagine o que aconteceria se a China, na sequência das ameaças de
Washington, decidisse de um dia para o outro restringir significativamente suas
exportações de mercadorias "Made in China" para os EUA.
Seria absolutamente devastador, desestabilizando a economia do consumidor, um
caos económico e financeiro.
O "Made in China" é a ossatura do comércio a retalho
nos EUA o qual inequivocamente sustenta o consumo familiar em virtualmente
todas as principais categorias de comércio, desde vestuário,
até calçados, hardware, electrónica, brinquedos,
joalharia, utensílios domésticos, alimentos, aparelhos de TV,
telemóveis, etc.
Importar da China é uma lucrativa operação de muitos
milhões de milhões de dólares. É fonte de tremendo
lucro e riqueza nos EUA, porque bens de consumo importados da economia de
baixos salários da China são muitas vezes vendidos ao
nível de retalho a mais de dez vezes o seu preço de
fábrica.
A produção não se efectua nos EUA. Os produtores [nos EUA]
abandonaram a produção. O défice comercial dos EUA com a
China é instrumental para alimentar o lucro extraído da economia
do consumidor, o qual repousa em bens de consumo Made in China.
Uma dúzia de camisas produzida na China será vendida a um
preço de fábrica FOB a US$36 por dúzia (US$3 por camisa).
Uma vez chegadas a lojas em centros comerciais, cada camisa será vendida
por US$30 ou mais, aproximadamente dez vezes o seu preço de
fábrica. Receitas vastas acumulam-se para os distribuidores grossistas e
retalhistas. Os "não produtores" baseados nos EUA colhem os
benefícios da produção de mercadorias de baixo custo da
China.
(Michel Chossudovsky, The Globalization of Poverty and the New World Order,
Global Research, 2003).
As recentes ameaças de Trump contra a China seguem aquelas formuladas em
2017 em relação ao comércio da China com a Coreia do
Norte, as quais são analisadas na primeira parte deste artigo.
Os decisores políticos chineses estão plenamente conscientes de
que a economia dos EUA está fortemente dependente do "Made in
China".
E com um mercado interno de mis de 1,4 mil milhões de pessoas, à
parte do mercado global de exportação, estas ameaças
veladas do presidente Trump não serão levadas a sério em
Beijing.
China: restauração capitalista
Em 1981-82, com base no Centre for Asian Studies (CAS) da Universidade de Hong
Kong, iniciei minha investigação do processo de
restauração capitalista na China. Assisti a um curso
rápido de mandarim na HKU Language School bem como em Formosa. Esta
investigação a qual estendeu-se por um período de
mais de quatro anos incluiu trabalho de campo efectuado em várias
regiões da China (1981-83) centrando-se nas reformas económicas e
sociais, em análises das defuntas comunas populares e no desenvolvimento
da indústria capitalista de propriedade privada incluindo o trabalho
barato da economia de exportação.
Comecei por rever a história económica chinesa incluindo
estruturas do sistema fabril anteriores a 1949, o desenvolvimento dos tratados
portuários estabelecidos na sequência das guerras do ópio
(1842) e vim a perceber que o que estava a ser reinstaurado em termos de zonas
económicas especiais fora influenciado pela história dos tratados
portuários, os quais concediam direitos extra-territoriais à
Grã-Bretanha, França, Alemanha, EUA, Rússia e Japão.
Na década de 1980, o consenso entre gente de esquerda era que a China
era um país socialista. Debater a restauração do
capitalismo na China em círculos de esquerda era um tabu.
A maior parte dos economistas e cientistas sociais "de esquerda"
afastaram a minha análise: "O que está a dizer, Michel,
é uma impossibilidade, vai contra as leis da história",
disse o economista político do Brasil Theotonio dos Santos (em resposta
à minha apresentação no Segundo Congresso de Economistas
do Terceiro Mundo, Havana, 26-31 de Abril de 1981).
Prevaleceu uma perspectiva dogmática: o socialismo chinês
não podia ser revertido. A Corrente Socialista Principal recusava-se
mesmo a reconhecer os factos respeitantes à concentração
da terra, da propriedade, ao colapso de programas sociais e à
ascensão da desigualdade social.
Completei o manuscrito do meu livro intitulado
"Towards Capitalist Restoration? Chinese Socialism after Mao"
em 1984. Ele foi descontraidamente rejeitado pela Monthly Review Press:
"Nós infelizmente não temos mercado para um livro sobre este
assunto".
Se bem que isto fosse uma bofetada vinda do que eu considerava uma importante e
poderosa voz socialista, vim a perceber que a MR (Harry Magdoff em particular)
ao longo da década de 1980 permaneceu um apoiante firme do regime
pós Mao sob o leme de Deng Xiaoping. Anteriormente eu encontrara e
estava em contacto tanto com Paul Sweezy como com Harry Magdoff, por quem tinha
um alto apreço.
O livro foi mais tarde publicado pela Macmillan, em 1986.
Clique aqui para descarregá-lo em PDF
(muito lento devido à dimensão do ficheiro).
Dezoito anos mais tarde, a Monthly Review publicou um livro de Martin
Hart-Landsberg e Paul Burkett intitulado
"China and Socialism: Market Reforms and Class Struggle"
(Monthly Review, 2004), o qual concluía que
"as "reformas de mercado" subverteram fundamentalmente o
socialismo chinês... Embora seja uma questão controversa se a
economia chinesa ainda pode ser descrita como socialista, não há
dúvida quanto à importância para o projecto global do
socialismo de interpretar com precisão e avaliar com sobriedade suas
perspectivas reais".
A introdução dos editores, feita por Harry Magdoff e John Bellamy
Foster, apesar de reconhecer "a reemergência de
características capitalistas" associadas ao crescimento
económico rápido
tende a contornar a questão mais vasta da restauração
capitalista, um processo histórico que tem estado em curso desde o fim
da década de 1970:
Para resumir nossa argumentação uma vez que um país
pós revolucionário envereda pelo caminho do desenvolvimento
capitalista, especialmente quando tenta atingir crescimento muito rápido
um passo leva a outro até que todas as características
danosas e destrutivas do sistema capitalista finalmente reemergem. Ao
invés do prometido novo mundo do "socialismo de mercado", o
que distingue a China de hoje é a velocidade com a qual apagou os feitos
do passado igualitário e criou desigualdades brutas e
destruição humana e ecológica. Do nosso ponto de vista, o
presente ensaio de Martin Hart-Landsberg e Paul Burkett merece estudo cuidadoso
como um trabalho que
remove o mito de que o socialismo chinês sobrevive em meio a algumas das
mais desenfreadas práticas capitalistas. Não há estrada de
mercado para o socialismo se isso significa por de lado as mais prementes
necessidades humanas e a promessa da igualdade humana.
(ênfase acrescentada)
Muitos marxistas acreditam que a reemergência de
"características capitalistas" na República Popular da
China tem as suas raízes na construção socialista
pós 1949 ao invés das estruturas semi-coloniais que prevaleciam
na China antes de 1949.
Em 1978, Deng Xiaoping avançou uma "Política da Porta
Aberta" juntamente com o lançamento das Zonas Económicas
Especiais (ZEE) em Shenzhen e Xiamen. Estas reformas constituem a ossatura
economia da exportação do trabalho barato da China.
Vale a pena notar, no entanto, que o conceito "Porta Aberta" foi
cunhado pela primeira vez pelo secretário de Estado dos EUA John Hay, em
1899, como parte da agenda colonial dos EUA a qual consistia em obrigar a China
a abrir a sua porta ao comércio "numa base de igualdade" com
as potências coloniais.
A questão do alto crescimento do PIB na China pós Mao é
enganosa. A taxa de crescimento durante o período maoista era igualmente
significativa, no entanto o seu foco e a "composição
social" eram diferentes.
O principal impulso do crescimento do PIB na era pós Mao foi (desde o
princípio) a economia de exportação do trabalho barato
"Made in China" a qual repousa abissalmente sobre salários
baixos e altos níveis de desemprego, sem mencionar o desenvolvimento
dinâmico do consumo de luxo no mercado interno (o que Marx chama de
Departamento IIb). Além disso, enquanto contribuía para o
empobrecimento do povo chinês (particularmente em áreas rurais),
uma grande fatia dos lucros deste processo de crescimento capitalista tem sido
amplamente transferido através do comércio internacional para os
países ocidentais.
Os níveis de desigualdade de rendimento são mais altos do que nos
EUA segundo um
estudo de 2014 da Universidade de Michigan
. A desigualdade social na China está entre as mais altas do mundo.
A desigualdade de rendimento tem estado em ascensão rápida na
China e agora ultrapassa a dos EUA por uma margem ampla, dizem investigadores
da Universidade de Michigan.
Esta é a descoberta chave do seu estudo baseado em dados de
inquérito recém disponível coleccionados por várias
universidades chinesas.
"A desigualdade de rendimento na China de hoje está entre as mais
altas do mundo, especialmente em comparação com os países
com padrões de vida comparáveis ou superiores", disse o
sociólogo da Universidade de Michigan Yu Xie.
University of Michigan study
.
Apesar de a China desempenhar um papel importante e positivo no xadrez
geopolítico, ela não constitui uma alternativa
"socialista" viável para o capitalismo ocidental. Em contraste
com os EUA, no entanto, a China não tem ambições imperiais.
Reservas ilimitadas de trabalho barato: 287 milhões de trabalhadores
migrantes internos
A China actualmente tem, segundo números oficiais, trabalhadores
migrantes internos [
275 milhões em 2015
;
287 milhões em 2017
] empregados como trabalho barato na economia de exportação,
construção e projectos de infraestrutura bem como na economia de
serviços urbana.
Uma força de trabalho formidável, quase da dimensão da
população dos EUA (325 milhões em 2017).
Os 287 milhões de trabalhadores migrantes da China
também constituem a força condutora por trás do
desenvolvimento da infraestrutura, estradas e corredores de transporte, sem
mencionar a iniciativa de investimento na "Estrada da Seda" para o
comércio euro-asiático.
Estes trabalhadores, em grande medida de áreas rurais e pequenas
cidades, constituem mais de um terço da força de trabalho. Eles
não têm o direito de morar em áreas urbanas.
Além disso, desde a abolição das Comunas Populares (1983),
em grande medida a terra agrícola tem sido privatizada. Por sua vez,
muitas das indústrias rurais em pequena escala do período maoista
foram encerradas. O povo nas áreas rurais em grande medida confia nas
remessas do emprego migrante nas cidades e "zonas económicas
especiais" na manufactura e construção.
O meu livro sobre a
Restauração capitalista, o socialismo chinês após Mao
pode agora ser descarregado em formato PDF (nota: 232 MB, descarregamento
muito lento).
A maior fábrica de trabalho barato do mundo
Este vídeo documentário de 2009 descreve a tendência rumo a
um tecido social altamente regulado ao serviço do desenvolvimento da
economia industrial de baixo salário (orientada pelo lucro):