O enigma do crescimento chinês
por Rémy Herrera
[*]
e Zhiming Long
[**]
Por que falar de enigma?
O êxito manifesto da economia chinesa, ilustrado especialmente por uma
taxa de crescimento muito rápida do produto interno bruto (PIB)
de facto, a mais elevada do mundo em média ao longo das últimas
três décadas , mas também pelo papel de líder
que hoje ela tende a ocupar no seio dos países do Sul, é muitas
vezes comentado nos media e na literatura académica. Entretanto, um
mistério continua a rodear este fenómeno, nomeadamente porque o
conteúdo e por vezes a própria realidade dos debates entre
economistas chineses ainda que muito controversos e abrangendo o
espectro político completo que vai do marxismo ao neoliberalismo
não são percebidos na sua justa medida pelos comentadores
ocidentais.
[1]
Estes últimos estão com efeito constrangidos a apoiarem-se sobre
dados estatísticos e fontes de informação geralmente
elaboradas por instituições ocidentais (ou multilaterais, mas
sempre dominadas pelas potência ocidentais), que traduzem visões
externas à China. Este prisma centrado no ocidente, ideológico
por natureza, é deformador pelo menos tanto, há que
reconhecer, quanto aquele com que são tratados os discursos oficiais das
autoridades chinesas.
Além disso, também há dificuldades devido a incertezas
transmitidas por certos termos utilizados acerca da China (como o de
"emergência"), ou certas categorias ambíguas (como a dos
"BRICS"), assim como à indeterminação
para não dizer confusão que acompanha as tentativas de
caracterização do sistema político-económico em
curso neste país. Estas dificuldades, complexas como se vê,
explicam que fora da China as opiniões sobre a evolução
desta sociedade, por vezes muito categóricas, são frequentemente
mal documentadas e pouco escoradas. À direita, o que é celebrado
é o triunfo aparente de um capitalismo vigoroso em território
chinês, mesmo que se considere aberrante sua combinação com
a "ditadura comunista". À esquerda ou, digamos,
sobretudo entre marxistas , talvez mais do que em qualquer outro tema, o
leque de desacordos a seu respeito está amplamente aberto, indo da
franca desaprovação frente às gritantes desigualdades de
riqueza que induz este dinamismo económico até à
esperança finalmente reencontrada de uma nova super-potência capaz
de se contrapor ao hegemonismo estado-unidense. O poderio crescente da China
intriga, fascina, provocando aqui admiração, ali
inquietação, mas para todos o crescimento da sua economia no
fundo permanece um enigma.
É neste contexto singularmente nebuloso que no ocidente parece se ter
estabelecido um consenso no seio das instituições da ideologia
dominante quanto a certas "evidências" sobre a China. Uma das
mais enraizadas é a ideia segundo a qual a China teria
"emergido", e seu crescimento económico "descolado",
após
as "reformas" ditas de "abertura" do fim dos anos 1970, ou
seja, de facto
após
a morte do presidente Mao Zedong em 1976. O presente artigo pretende por em
causa este consenso e fornecer elementos de reflexão para desenredar o
"enigma" deste crescimento chinês sem pretender
dissipar, longe disso, toda a complexidade.
Acumulação de capital, crescimento da produção e
"emergência" de longo prazo
Uma das ideias mais difundidas sobre a China é que ela teria
"emergido"
recentemente.
O conceito de "emergência" tal como aquele de
"BRICS", forjado pelos
think tanks
das finanças estado-unidense sugere que um
"descolamento" seria encarável no quadro da
mundialização, apesar dos disfuncionamentos do sistema mundial
capitalista, no entanto desfavoráveis aos países do Sul.
Entretanto, ao aceitar esta ideia de que a economia chinesa teria
"emergido", ou "descolado", exactamente
após
e
somente após
o desaparecimento de Mao, adere-se, implicitamente, a uma das variantes
da seguinte argumentação. Em primeiro lugar, a economia chinesa
não teria realmente começado a se desenvolver senão
graças à sua "reorientação" e sua
"abertura" ao sistema mundial capitalista adoptada sob a
influência do número um chinês, Deng Xiaoping, na
sequência do 11º Congresso do Partido Comunista Chinês (PCC)
em Dezembro de 1978 e incidentalmente, algumas semanas mais tarde, do
reconhecimento diplomático da República Popular pelos Estados
Unidos, em Janeiro de 1979. Em segundo lugar: seria óbvio que a economia
chinesa não teria feito outra coisa senão estagnar durante o
período maoista do socialismo como estagnaria de facto, pela sua
natureza por assim dizer, toda economia socialista. E, terceira variante deste
mesmo raciocínio, acrescenta-se o argumento segundo o qual a China se
teria modernizado quase imediatamente depois (por magia?) de os seus altos
dirigentes políticos terem decidido abandonar, se não a etiqueta
de "comunismo", pelo menos as instituições do
socialismo, para orientá-las rumo a formas do sistema capitalista.
Ora, ao assim fazer, três realidades fundamentais ficam ao mesmo tempo
ocultadas. A primeira, no entanto grandiosa, é a profundidade milenar da
história. Pois se é incontestável que a China de facto
"emergiu" na cena mundial, isto não foi há 40 anos,
como repete o leitmotiv absurdo dos media dominantes, mas, enquanto
civilização importante e Estado-nação
, há... vários milhares de ano. O peso da China pôde
atingir um terço do PIB mundial no começo do século XIX.
[2]
E é preciso manter consciência de que não foi senão
graças à vitória da revolução maoista em
Outubro de 1949 que foi possível por fim ao século de guerras
havia dilacerado o país, continuamente, desde a agressão
britânica da Guerra do Ópio em 1842 e dos assaltos lançados
pelas potências ocidentais que haviam desmembrado este país. A
segunda realidade deixada de lado é que quando na China o crescimento do
PIB começou a ultrapassar regularmente a marca dos 10%, na década
de 1980 (contra 3% registados nos Estados Unidos), o essencial das estruturas e
instituições do socialismo ainda estavam em vigor. O terceiro
facto a recordar aqui, muito frequentemente esquecido na literatura, é a
rapidez relativamente forte da taxa de crescimento do PIB chinês
antes
da morte de Mao.
Este último ponto é suficientemente importante, e esquecido, para
que nele insistamos por um instante. É verdade que o crescimento
económico acelerou-se a partir dos anos 1980 ao ponto de colocar
a China, a partir desta época, e apesar do seu nível bastante
fraco de rendimento per capita, longe dos outros países ditos
"socialista" ou de "economia historicamente planificada"
durante esta mesma década. Ainda seria preciso reconhecer que o
crescimento do produto material líquido (ancestral do PIB) já
havia sido muito elevado no decorrer dos dez anos que antecederam a
decisão de "reformar" a economia para abri-la ao sistema
mundial.
[3]
Segundo os dados fornecidos pelo Banco Mundial, expressos em preços
constantes (base 1980) e em médias decenais, a taxa de crescimento
económico da China atingia 6,8% entre 1970 e 1979 ou seja, mais
do dobro daquela dos Estados Unidos neste período (a 3,2%, a
preços constantes de 1980).
[4]
E se se examinam agora as séries oficiais de PIB publicadas pelo
National Bureau of Statistics (NBA) da China nos seus
China Statistical Yearbooks
[5]
, fonte de qualidade e fiável, desde a sua criação (em
1952) até os nossos dias (2015), expressos em preços constantes
com base em 1952 e homogeneizados para levarem em conta rupturas
estatísticas que assinalaram a transição da contabilidade
do
Material Product System
(MPS, de tipo soviético) para o
System of National Accounts
(SNA, "moderno")
[6]
, observamos que a taxa de crescimento do PIB chinês, que em média
anual era de 8,3% entre 1952 e 2015, era, por sub-períodos, de 6,3%
entre 1952 e 1978 o que é forte e de 9,9% de 1979 a 2015
o que é muito forte. Mas se se puser entre parênteses todos
os primeiros anos da República Popular que vão de 1952 a 1962 (ou
seja, entre o cumprimento da unificação do território
continental e o período muito perturbado da ruptura com a União
Soviética), é uma taxa de crescimento anual médio do PIB
chinês de 8,2% que se regista entre 1963 e 1978 o que reflecte um
crescimento muito rápido, considerando que este período
compreende a Revolução Cultural.
Mas o que é realmente a acumulação do capital na China?
Esta acumulação pode ser medida. Num artigo que os autores destas
linhas publicaram recentemente na revista científica de referência
nos EUA especializada sobre a China (a
China Economic Review
), chegámos a construir várias séries temporais originais
de stocks de capital físico no período longo (1952-2015)
[7]
para utilizar esta nova base em outras investigações, mas
também porque, no momento actual, os institutos chineses de
estatísticas ainda não puseram à disposição
do público dados oficiais de stocks de capital.
[8]
Nossas séries, calculadas pelo método do inventário
permanente, podem ser consideradas de boa qualidade em relação
àquelas que existem na literatura
[9]
, por várias razões: nossos stocks iniciais são estimados
a partir de um procedimento de cálculo mais rigoroso do rácio
capital-
output
do que as das outras bases; os fluxos de investimento são estritamente
consistentes com o perímetro estatístico dos stocks; nossos
esforços são concentrados na construção de
índices de preços dos investimentos adaptados ao conteúdo
exacto destes stocks; e as taxas de depreciação retidas
são avaliadas por tipo de bens de capital a fim de deduzir uma taxa de
depreciação total da estrutura de conjunto do capital.
Ora, se examinarmos atentamente nossa nova base de dados, constatamos que as
taxas de crescimento médio do stock de capital que chamamos
"produtivo" (compreendendo todos os equipamentos, máquinas,
ferramentas, instalações industriais, mas não os
edifícios residenciais nem o valor das suas terras) foram de facto muito
próximas nos dois sub-períodos 1952-1978 e 1979-2015: 9,7% para a
primeira e 10,9% para a segunda. E se retivermos no presente um stock de
capital produtivo ampliado, incluindo igualmente os
inventories
(importantes para calcular a velocidade de rotação do capital
circulante em economia marxista), vemos que o ritmo médio de
acumulação deste stock de capital amplo foi mesmo ligeiramente
mais elevado durante o sub-período 1952-1978 (10,41%) do que no decorrer
do sub-período 1979-2015 (10,39%). E se se seleccionar um capital ainda
mais extenso, integrando além disso os edifícios residenciais e
suas terras portanto componentes não directamente produtivos
, a taxa de crescimento deste stock de capital muito amplo ainda era
rápida no sub-período 1952-1978, em média de 9,1% contra
10,9% de 1979 a 2015.
Portanto é claro que o esforço de acumulação de
capital não é um fenómeno recente, mas que foi decidido e
planificado continuamente pelas autoridades chinesas durante as seis
décadas decorridas. E é este esforço prolongado de
acumulação permitido nomeadamente por transferências
de excedente das zonas rurais que explica o êxito da
industrialização e, em grande medida, a muito forte taxa de
crescimento do PIB.
Despesas de educação e de investigação
Entretanto, outros factores tiveram certamente de actuar neste dinamismo da
economia. Trata-se, em particular, dos investimentos realizados na
educação e na investigação. Como medi-los? A tarefa
não é fácil, mas tentámos fazê-lo num outro
artigo publicado numa revista académica de Londres.
[10]
Reconstruímos em séries temporais longas (1949-2015) indicadores
de níveis de recursos educativos da população chinesa.
Pois tais séries tão pouco existem nos anuários oficiais,
e as séries relativas aos stocks de "capital humano" existente
na literatura, como aquelas das Penn World Tables (2013) ou de Barro e Lee
(1993), apresentam graves limites.
[11]
Propusemos nossas próprias séries de stocks de
formação da população esforçando-nos por
trazer elementos de respostas a estas insuficiências. Assim, permanecemos
fieis à definição que o NBS dá do nível de
educação atingido pela população (o que conduz a
integrar não só as pessoas titulares de diplomas como
também aquelas que ainda se encontram na escola e mesmo aquelas que
renunciaram no decorrer dos estudos). Tivemos em conta igualmente as
mudanças de durações dos ciclos educativos decididos na
sequência das reformas educativas sucessivas e tomámos em
consideração a influência das campanhas de
alfabetização e de formação dos adultos.
Determinámos portanto stocks de recursos educativos, assim como seus
aumentos
(accrétions)
respectivos o que requer calcular os números médios de
anos de estudos das pessoas por categoria de educação e os pesos
destes indivíduos na população.
Ressalta das nossas estimativas que as taxas de crescimento médio do
stock total de recursos educativos chineses têm sido extremamente
próximas no sub-período 1949-1978 (de 4,19%) e no
sub-período 1979-2015 (4,22%). E se considerarmos um stock educativo
"produtivo", efectuando os cálculos a partir da
população activa (e não total, como anteriormente),
então as taxas de crescimento médio deste stock de recursos
educativos foram de 5,07% de 1949 a 1978 e 3,55% de 1979 a 2015, ou seja, mais
elevado no sub-período que antecedeu as reformas de 1978.
Em consequência, o investimento no sector da educação
também deve ser analisado como um processo de longo prazo, importante
nos primeiros anos da República Popular pois visava a
massificação da educação isto, paralelamente
à generalização do sistema de saúde pública
e à extensão das infraestruturas a todo o território
nacional. Trata-se de um dos pilares centrais da estratégia conduzida
pela revolução na duração longa, que contribuiu
decisivamente para a solidez e o dinamismo da economia actual.
Mas e quanto a (fluxos de) despesas de investigação e
desenvolvimento (I&D)? A China não integrou o sistema de
contabilização internacional das actividades I&D senão em
1986. Isso não significa que o país não tenha
começado a investir em I&D senão a partir de 1986, mas que antes
desta data é impossível ter acesso a dados homogéneos
sobre o assunto. Diante deste constrangimento, elaborámos séries
temporais originais, desta vez pelos fluxos de despesas de I&D, remontando o
mais longe possível no passado (1949-2015). Retivemos todas as massas
orçamentais, elementos de entidades económicas públicas
(centro de investigação, universidades, empresas, etc) ou
privadas, ainda que a proporção da I&D que saia destes
últimos nos orçamentos totais permaneça, até o
presente, relativamente menor. Recordamos que só em 1984 uma empresas
privada foi autorizada a funcionar na República Popular e que a primeira
legislação relativa à actividade das diversas actividades
do sector privado dada de 1988. No que se refere aos anuários do NBS, as
"despesas de I&D das empresas industriais de médio e grande
porte" ainda se elevavam a menos de 6,5% do conjunto das despesas de
investigação do país em meados dos anos 2000.
E os cálculos que efectuámos na base destas séries
reconstruídas dão taxas de crescimento médias das despesas
de I&D da ordem dos +14,5% ao ano no período 1949-2015, mas
convém observar que o ritmo médio de acréscimo destas
despesas de I&D foi claramente mais forte no sub-período 1949-1978 do
que no seguinte (1979-2015). Evidentemente, os níveis
tecnológicos dos primeiros anos e os de hoje são diferente e,
além disso, o sistema de investigação pública teve
de ser construído a partir do zero o que explica em parte o
crescimento muito rápido das despesas de I&D dos primeiros anos.
Entretanto, é preciso compreender que os esforços efectuados pela
China em matéria de I&D estão longe de terem sido insignificantes
logo desde o início da revolução e que também eles
devem ser analisados como uma estratégia construída pacientemente
e continuamente que deu os seus frutos a longo prazo.
Por outras palavras, a China, cujo nível de desenvolvimento
científico e tecnológico já não tem nada a invejar
em relação aos mais avançados países
industrializados capitalistas, não começou a promover suas
actividades de investigação com a sua recente
integração na mundialização, mas sim muito antes
de facto, desde a vitória da revolução, ainda que a
natureza destas actividades se tenha refinado consideravelmente nestes
últimos anos. Em termos simples, o que dizemos é que a
estratégia de desenvolvimento da revolução dispôs as
condições para o êxito actual da economia e que este
êxito se inscreve na continuidade do passado, ao invés de estar em
contradição com ele.
Comparações internacionais
Para bem apreender que a dinâmica e a potência actuais da economia
chinesa não são simples resultantes "naturais" da
abertura à mundialização (e em particular da adesão
à Organização Mundial do Comércio, em 2001), parece
importante ver isto em termos de comparações internacionais. Para
assim fazer, utilizaremos uma fonte padrão que ninguém suspeita
de favoritismo em relação ao poder comunista: o gui das
Historically Planned Economies
do Banco Mundial. Este anuário, publicado em 1992 por P. Marer e seus
co-autores, permite comparar a China antes de 1991 com uma trintena de
países socialistas (que hoje são na maior parte antigamente
socialistas).
[12]
E o que revele a leitura deste documento é, novamente, que a economia
chinesa já esta dinâmica, no seu conjunto, em
relação aos outros países socialistas,
antes
(e em torno) da morte de Mao. Este foi o caso, por exemplo, para a taxa de
crescimento do sector industrial, que atingiu em média +7,9% por ano na
década de 1970, ou seja, o segundo lugar dos países de economia
administrada, diante da URSS (6,2%) e muito adiante de todos os outros (salvo a
Jugoslávia para a indústria). A velocidade de cruzeiro da
economia chinesa foi portanto atingida muito tempo antes da sua adesão
à OMC. No decorrer dos anos 1980, com efeito, quando o país ainda
dispunha da maior parte das instituições socialistas, ela
registava taxas de crescimento muito fortes em
todos
os sectores em comparação com os outros países ditos
"socialistas". Assim, de 1980 a 1989, a China já se
classificava no primeiro lugar deste grupo para o crescimento da agricultura
(+6,3%), da indústria (+12,6%), da construção (+12,%) e
mesmo dos serviços (+10,6%); resultados frequentemente situados
claramente adiante dos outros países.
[13]
Enquanto um pouco por toda a parte na academia ou nos media dominantes
lê-se e ouve-se que a "descolagem" da economia chinesa seria
devida à abertura à mundialização, de nossa parte
pensamos ser útil acrescentar o que raramente é o caso
que um tal crescimento não se tornou possível senão
graças aos esforços e realizações cumpridas sob
Mao. E só devido à condição de esta abertura ter
sido firmemente e eficazmente controlada pelas autoridades chinesas é
que ela pode ser considerada como tendo contribuído mais recentemente
para os êxitos económicos do país. É por ter sido
submetida aos imperativos internos de satisfação dos objectivos e
necessidades domésticas, e plenamente integrada numa estratégia
de desenvolvimento cuja coerência é sem equivalente nos
países do Sul, que esta abertura pôde produzir efeitos positivos
sobre a China. Sem esta estratégia, que é a obra do PCC
como esquecê-lo? a abertura ao sistema mundial capitalista, como
em tantos outros lugares no Sul e no Leste, teria inevitavelmente implicado a
desestruturação, mesmo a própria destruição,
da economia nacional.
Além dos progressos sociais e do êxito do processo de
industrialização já evocados, um elemento essencial que
também contribuiu para o desenvolvimento extraordinário da
economia foi a resposta dada à questão agrária. Queremos
aqui insistir no facto de que a China é um dos poucos países do
mundo a ter assegurado e continuar a assegurar , na lei, o acesso
à terra para a vasta maioria das massas camponesas. Este facto é
sem igual junto aos seus vizinhos asiáticos com
excepção daqueles que efectuaram uma reforma agrária
radical associada a uma revolução socialista, como no Vietname.
Múltiplas violações do direito e tentativas destinadas a
limitar este acesso têm sido observadas nos últimos anos
(nomeadamente, pelo viés de cessões indevidas de terras
públicas por autoridades locais, seguidas de expropriações
de famílias), mas face a estes casos abusivos, certamente numerosos,
ergueram-se resistências camponesas.
Estes factos dão uma ideia da importância da questão
agrária nos debates internos na liderança política
chinesa, como aqueles que atravessam a sociedade actual no seu conjunto.
Percebe-se aqui a impossibilidade de compreender as evoluções
profundas deste país sem colocar o campesinato no centro da
análise. Pois o constrangimento maior que pesa sobre a China continua o
de dever alimentar mais de 20% da população mundial com menos de
7% das terras aráveis do planeta. Isto corresponde a um quarto de
hectare de terra cultivada por habitante na China, contra o dobro na
Índia (e 100 vezes mais nos Estados Unidos). Este desafio alimentar,
imenso, não pôde ser enfrentado senão graças
à afirmação do acesso à terra para o campesinato,
que continua, até o presente, a contribuição mais preciosa
da herança revolucionária maoista.
Apesar de os modos actuais de organização, de
produção e de distribuição do sector
agrícola estarem totalmente penetrados pelos mecanismos de mercado e
já não terem grande coisa a ver com os da época maoista, a
propriedade fundiária na China ainda hoje permanece estatal ou colectiva
ainda que formas degradadas sejam frequentemente encontradas, por vezes
mesmo com um controle privado efectivo sobre certas terras. Mas é esta
persistência da propriedade pública é uma chave que permite
distinguir a situação e o êxito da China em
relação aos outros países que têm uma
dimensão continental comparável e pretensamente
"emergentes", tais como a Índia ou o Brasil, ou países
regionalmente dominantes (África do Sul) para os quais a questão
agrária está longe de ter encontrado condições,
mesmo parciais, de solução.
Identificação de uma sucessão de "crises" e
verificação da tese do Prof. Wen
Mas se o crescimento da China foi muito forte durante várias
décadas, será que tal fenómeno se realizou sem
dificuldades, sem solavancos? Para responder, retomemos a base de dados do PIB
do NBS. O que se constata? Primeiro, verificamos que desde 1952 a
evolução do PIB chinês, em preços constantes, tem a
aparência de uma curva exponencial. E se se raciocinar em escala
logarítmica, observamos uma situação situada em torno de
uma tendência linear fortemente ascendente. Mas se se encara no presente
esta dinâmica em taxa de crescimento, vêem-se surgir
flutuações, ainda que a amplitude tenda a reduzir-se com o tempo,
e para quatro períodos precisos, de taxas de crescimento negativas.
À parte estes períodos, todos os outros anos registam um
crescimento positivo do PIB, mais ou menos pronunciado. Estes quatro
períodos com valores negativos são identificáveis para
sete anos (dos 64 incluídos a amostra estudada [1952-2015], ou seja,
apenas mais de 10% do tempo: de 1960 a 1962 (com respectivamente -1,3%, -27,8%
[para o ano de 1961, de longe o mais forte recuo sofrido pelo país em
seis décadas] e -9,2%), associados ao choque da ruptura de
relações com a URSS; depois em 1967-68 (-4,4$ e -2,9%), o que
corresponde ao início da Revolução Cultural; em 1976
(-2,0%), data da morte de Maio; e finalmente em 1989 (-4,3%), no momento dos
acontecimentos de Tiennamen. Podemos portanto identificar "a olho
nu", e num contexto de tendência ascendente da taxa de crescimento
económico, quatro períodos de "crises" no sentido
tradicional do termo, ou seja, caracterizadas por uma taxa de crescimento
negativa, portanto por uma diminuição do PIB em preços
constantes (sem inflação): 1960-62, 1967-68, 1976 e 1989.
Entretanto, esta abordagem é insuficiente para dar conta das
dificuldades atravessadas ao longo das seis décadas decorridas desde o
início da revolução. Vamos aqui para além das
aparências. Para aprofundar a análise, e complexificar o conceito
de "crise", optamos por recorrer a indicadores da taxa de lucro para
a China. O método consistente em calcular taxas de lucro é
habitual entre os marxistas para estudar as dinâmicas de
acumulação do capital que caracterizam países
capitalistas, mas não, em geral, países "socialistas",
ou cujas autoridades políticas se reclamam favoráveis ao
socialismo. Ora, é inteiramente possível utilizar taxas de lucro
em economia socialista, se a sua construção, ainda que a sua
construção e interpretação sejam bem distintas das
dos países capitalistas.
[14]
Construímos portanto vários indicadores da taxa e lucro do
sector industrial chinês entre 1952 e 2015, a partir das nossas
séries anteriores de stocks de capital físico. Estes indicadores
relacionam, no numerador, um lucro ou excedente, correspondente á
diferença entre o PIB e as remunerações dos trabalhadores
(directas e indirectas) e, no denominador, o capital avançado, isto
é, quer o capital fixo tal como o havíamos definido, quer este
mesmo capital ao qual é acrescentado um capital circulante calculado a
partir de uma estimativa da velocidade de rotação do capital
(graças aos
inventories
).
Pode-se então proceder, utilizando um método de filtragem, a uma
decomposição técnica da taxa de lucro em tendência
de longo prazo e ciclos de curto prazo. Duas observações podem
ser feitas. A primeira é a detecção de uma tendência
à baixa das taxas de lucro chinesas de 1952 a 2015, seja qual for o
indicador adoptado. Se se efectuar agora uma decomposição
económica das taxas de lucro, por cálculo destinado desta vez a
distinguir as evoluções respectivas da composição
do capital, da produtividade do trabalho e da parte dos lucros, vê-se que
o fenómeno mais determinante na explicação da baixa da
taxa de lucro é a alta da composição orgânica do
capital (ou seja, a relação entre as partes constante e
variável do capital).
A segunda observação refere-se aos ciclos de curto prazo que
pontuam as evoluções destas taxas de lucro. Repara-se numa
alternância regular de flutuações para a alta e para a
baixa e constata-se que estas variações cíclicas
reduzem-se claramente entre os anos 1950 e o início da década de
2000, mas que a magnitude dos ciclos tende sensivelmente a acentuar-se
novamente no fim do período ou seja, desde o fim dos anos 2000 e
o período actual.
Na amostragem completa (1952-2015), uma sucessão regular de momentos de
variações negativas das taxas de lucro pode assim ser assinalada.
Os anos de recessão descobertos pelas taxas de lucro, marcados por
crescimentos das componentes cíclicas das taxas de lucro com valores
negativos, são observados uma trintena de vezes no decorrer dos 64 anos
estudados. Mais precisamente, um sinal negativo é assinalado em 1952,
1957, 1960-1963, 1968, 1978-1982, 1985-1987, 1990-1991, 1998-2003, 2009 e
2012-2015. Assim, vemos que já não são apenas quatro
períodos que estão identificados (como sugeria o estudo
rápido anterior da taxa de crescimento do PIB), mas 10 períodos
com valores negativos, registados desta vez pela taxa de crescimento das
componentes cíclicas das taxas de lucro, cobrindo no total cerca da
metade da amostragem temporal examinada.
Reconhece-se, através destas sequências recessivas, as
desacelerações que sucessivamente afligiram a história
económica da China desde a fundação da República
Popular e que o Prof. Wen Tienjun tem razão em denominar as
"dez crises".
[15]
Depois das enormes dificuldades que o povo chinês teve de enfrentar
após 1949, devidas essencialmente às destruições
causadas pelas guerras e convulsões que o país havia atravessado
nas décadas que antecederam a Revolução, reencontramos o
traço da recessão de começa em 1952 e cujo ponto
baixo foi 1957. A grave crise do início dos anos 1960 a pior sob
a era maoista, perceptível sobretudo em 1961 provinha dos efeitos
combinados da interrupção da ajuda da URSS após a
degradação do conflito sino-soviético, do fracasso
relativo do Grande Salto Em Frente e de catástrofes naturais. O ano de
1968, outro ponto baixo, coincide com o endurecimento da
Revolução Cultural, lançada dois anos antes. Os problemas
enfrentados entre 1978 e 1982 traduzem as dificuldades da
transição pós-Mao e da implantação das
reformas estruturais de "abertura". O período 1985-1986
é um dos pontos de viragem rumo à economia de mercado,
nomeadamente com a execução da reforma fiscal de 1984. Depois, no
momento da queda do bloco soviético, foi tentada uma breve
experiência que se pode qualificar de "neoliberal", cujo
resultado foi o recuo brusco da economia em 1990-1991, acompanhada de uma
explosão da corrupção. Finalmente, num contexto de forte
dinamismo do PIB chinês, os declínios dos componentes
cíclicos das taxas de lucro a partir de 1998 são cada vez mais
atribuíveis ao impacto de choques exógenos importados, ligados
à difusão dos efeitos de crises regionais ou globais sofridos
pela China: crise "asiática" (1998-1999), depois crises da
"nova economia" e "pós 11 de Setembro" (2001-2003),
crise "financeira" dita "dos subprimes" em 2008 (na
realidade crise sistémica do capitalismo), cujos efeitos foram
ressentidos na China em dois tempos: em 20089 e, novamente, de modo mais
durável e profundo, a partir de 2012 e até os nossos dias.
[16]
Estes 10 momentos de "crises" são mais frequentemente
identificáveis, paradoxalmente, no próprio momento em que o
crescimento do PIB atingia simultaneamente taxas elevadas e por vezes
muito elevadas, como é o caso por exemplo, em contextos diferentes, nos
anos 1963, 1978, 1986, 1991 e 2003. Por outras palavras, no caso chinês
crescimento não quer necessariamente dizer ausência de
dificuldades e, inversamente, crise não significa forçosamente
recessão do PIB. Num país como a China, caracterizada por
contradições poderosas, não nos pareceu necessário
recorrer a um conceito mais amplo de "crise" para dar conta de
períodos no decorrer dos quais surgiam dificuldades estruturais
isto, apesar das aparências de um forte crescimento do PIB podendo fazer
crer que tudo vai bem.
À guisa de conclusão
Neste artigo, quisemos sublinhar a importância da análise de
período longo para compreender os motores profundos do desenvolvimento
económico da China desde há mais de 60 anos: os progressos
sociais, a industrialização ou a resposta à questão
agrária. Para aprofundar a reflexão sobre as dificuldades
encontradas pela economia chineses, para além do forte crescimento do
seu PIB, propusemos fazer o exame desta última à luz das taxas de
lucro industriais, que construímos a partir de séries originais
de stocks de capital físico chinês e considerado como indicador
chave do nosso raciocínio. Ao observar as evoluções destas
taxas de lucro ao longo de mais de seis décadas, percebemos que a
trajectória de crescimento económico da China, excepcional tanto
pela sua forma como pela sua escala, não se operou sem dificuldades.
Esta é a razão porque escolhemos qualificar de "crises"
períodos paradoxais, caracterizados por variações
negativas das taxas de lucro, mas também por taxas de crescimento do PIB
positivas, por vezes muito elevadas.
04/Abril/2018
[1] Ler: Lau K.C. and Ping H. (eds), 2003,
China Reflected
. Hong Kong: ARENA Press.
[2] Maddison A., 2001,
The World Economy: A Millennial Perspective
, Paris: OECD Development Centre Studies.
[3] Marer P.
et al.
, 1992.
Historically Planned Economies: A Guide to the Data
. Washington D.C.: World Bank.
[4] World Bank, various years,
World Development Indicators
. Washington D.C.: World Bank.
[5] National Bureau of Statistics of China, various years,
China Statistical Yearbook
, NBS, Beijing.
[6] Ver: unstats/un.org/unsd/nationalaccount/sna2008.asp.
[7] Long Z. and R. Herrera (2016), "Building Original Series of Physical
Capital Stocks for China's Economy: Methodological Problems, Proposals of
Solutions and a New Database,"
China Economic Review
, 40(9), 33-53.
[8] Ver: Penn World Tables (www.rug.nl/research/ggdc/data/ptw) ou Chow G.
(1993), "Capital Formation and Economic Growth in China,"
Quarterly Journal of Economics
, 108(3), 809-842.
[9] Exemplo: https://ptw-sas.upenn.edu. Para a versão 8.1, mais
recente : www.rug.nl/research/ggdc/data/ptw.
[10] Long Z. et R. Herrera (2018), "Contribución a la
explicación del crecimiento económico en China,"
Spanish Journal of Economics and Finance (Elsevier, London)
, 41(115), 1-18.
[11] A título de exemplo, a base de dados Barro e Lee é de
qualidade, mas ela começa apenas em 1970 e tem uma frequência de
apenas cinco anos, o que está longe de ser suficiente para as
exigências da análise económica. Quanto a elas, as
estatísticas divulgadas pelos PTW subestimam exageradamente os
níveis educativos da população chinesa. Ver: Barro R. and
J.-W. Lee, 2012,
Educational Attainment Dataset
, disponível em: www.barrolee.com.
[12] Marer P.
et al.
(1992), p. 52.
[13]
Idem
, pp. 50-51.
[14] Herrera R. and Z. Long (2017), "Capital Accumulation, Profit Rates
and Cycles in China's Economy from 1952 to 2014,"
Journal of Innovation Economics and Management
, online, 2(23).
[15] Wen T. (2009),
The 'San Nong' Problem and Institutional Transition
. Beijing: China Economic Press.
[16] Herrera R. et Z. Long (2017), "Elementos de reflexión sobre el
crecimiento económico de China en el largo plazo: 1952-2014,"
Temas de Economía Mundial (CIEM, Havana)
, II(32).
[*]
Investigador do Centre national de la Recherche scientifique (CNRS), Centre
d'Économie de la Sorbonne, Paris.
[**] Professor assistente na Escola de Marxismo da Universidade Tsinghua de
Pékin, Beijing, República Popular da China.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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