Dívida, forma de colonização

Acusam Chávez, mas o populista é Lula

por Éric Toussaint [*]
entrevistado por Flávia Oliveira [**]

Editorial Boitempo. Historiador e cientista político, presidente do Comitê para Anulação da Dívida do Terceiro Mundo e membro da Attac (entidade que defende taxar as movimentações financeiras globais), o belga Éric Toussaint entusiasma-se com os governos de Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia), mas é implacável com Luiz Inácio Lula da Silva.

Co-autor do livro 50 perguntas e respostas sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial [***] , recém-lançado no Brasil, ele acusa o presidente de populismo por expandir o Bolsa Família ao mesmo tempo em que aplica uma política obediente ao Consenso de Washington.

Em entrevista ao Globo, por telefone, ele afirma que o momento é ideal para os emergentes imporem aos credores do Norte a renegociação de sua principal mazela, a dívida externa.


Por que a dívida externa é o principal problema dos países emergentes?

ÉRIC TOUSSAINT: A riqueza que cada país endividado está obrigado a transferir a seus credores, privados ou públicos, constitui um desvio enorme de recursos que não são utilizados para garantir os direitos humanos fundamentais. Em muitos países de América Latina, África e Ásia, os poderes públicos têm que usar de 25% a 40% do Orçamento para pagar a dívida. É uma quantidade enorme. No Brasil, o pagamento dos serviços da dívida é quase dez vezes o gasto com saúde, educação e reforma agrária. Além disso, os países endividados têm baixo controle dos credores, que usam o Banco Mundial (BIRD), o Fundo Monetário Internacional (FMI) e o Clube de Paris para pressioná-los.

Esses países têm condições de sair dessa situação?

TOUSSAINT: Efetivamente, eles poderiam liberar-se e aplicar outras políticas econômicas e sociais, sobretudo na conjuntura atual, com a alta dos preços das matérias-primas combustíveis e minerais e dos produtos agrícolas. Os países emergentes exportam esses produtos; as exportações estão subindo e as reservas em divisas, aumentando. É o caso de Brasil, Argentina, Venezuela e vários países pobres da África, como Angola, e Ásia, como Indonésia e Índia, sem falar da China. Eles têm reservas internacionais que chegam a US$ 2 milhões de milhões, enquanto os EUA têm somente US$ 37 mil milhões e a Europa Ocidental, menos de US$ 150 mil milhões. Nessas circunstâncias, os países endividados estão em condições muito fortes para impor uma negociação justa com os credores do Norte.

Isso é viável?

TOUSSAINT: Hoje é. Há dez anos, a conjuntura era menos favorável. E é bem possível que os governos do Sul, como o de Lula, deixem passar essa oportunidade. A taxa de juros internacional está subindo; os investimentos nos EUA e na Europa estão voltando a ser lucrativos; parte dos capitais das bolsas de valores do Sul está indo para o Norte; e há expectativa de redução dos preços de matérias-primas e produtos agrícolas. Se os países do Terceiro Mundo não usarem a conjuntura atual, em dois ou três anos estarão numa situação muito mais difícil.

O que acha dos presidentes Hugo Chávez (Venezuela) e Evo Morales (Bolívia)?

TOUSSAINT: Nos últimos quatro ou cinco anos, a maioria dos países da América Latina rechaçou as políticas neoliberais e elegeu de maneira democrática presidentes que poderiam pôr em prática uma política diferente do Consenso de Washington. Lula foi eleito com um programa diferente, bem como (Néstor) Kirchner (Argentina), Chávez e Morales. Os cidadãos querem governos que apliquem outras políticas. Penso que Chávez e Morales realmente buscam implementar uma política alternativa.

Kirchner e Lula não?

TOUSSAINT: Kirchner, que para nós de esquerda é um presidente peronista, na realidade aplicou uma política mais heterodoxa que Lula, apesar de Lula ser de esquerda. A política macroeconômica do Brasil é muito ortodoxa em respeito ao Consenso de Washington. Creio que Chávez e Morales são mais criativos e fazem propostas que valem a pena serem levadas em conta dentro de um marco latino-americano.

O Brasil perdeu a liderança na América Latina?

TOUSSAINT: Claro. As taxas de juros astronômicas impedem o investimento produtivo. O Brasil está totalmente aberto aos grandes movimentos de capitais, não tem instrumento para se defender em caso de ataque especulativo. Essa política é contrária ao que se deve aplicar em um modelo alternativo. Sei que, em geral, acusam Chávez de populista. Não é a realidade. Lula aplica uma política populista com o Bolsa Família. Há uma intenção clara de voto dos setores que viram seus rendimentos aumentarem um pouco. Entendo que essa gente apóie um presidente que melhore um pouco sua renda. Mas em termos estruturais, de política econômica, de reformas, Lula é tímido. Não se pode compará-lo a Getulio Vargas, Juscelino Kubitschek ou João Goulart. Lula é mais conservador.

O que o senhor apóia na política de Hugo Chávez?

TOUSSAINT: Ele propõe usar parte das reservas dos bancos centrais da América Latina para fundar um Banco do Sul. Parece-me legítimo e muito interessante usar parte das reservas para ter um banco que pode ser um instrumento de crédito da região e também uma arma de autodefesa contra ataques especulativos a suas moedas. Se o Brasil se junta à Venezuela, à Argentina, a outros países e for atacado, ele terá como enfrentar o ataque especulativo sem ter de aplicar a política ditada pelo FMI.

O senhor afirma que o Banco Mundial subestima indicadores de pobreza. Por quê?

TOUSSAINT: A intenção é muito clara. O Banco Mundial conseguiu, nos últimos 20 anos, convencer os governos de África, América Latina e Ásia a implementarem suas políticas. Então, está obrigado a demonstrar que elas são benéficas à maioria dos cidadãos em termos de redução de pobreza. Mas eu afirmo que os países que aplicaram disciplinadamente essas políticas tiveram aumento da pobreza. O banco manipula as cifras para esconder seu fracasso.

Há mobilização nos países ricos em torno do perdão da dívida externa?

TOUSSAINT: Sim. Em 2000, coletamos quase 20 milhões de assinaturas de cidadãos que exigiam a anulação da dívida dos países pobres. Encontramos um nível de compreensão bastante alto.

E nos países pobres, há capacidade de organização?

TOUSSAINT: Há todo um esforço que está sendo aplicado nos países do Sul. Um exemplo foi o “plebiscito” no Brasil em 2000. No Equador, atualmente há uma auditoria organizada pelo governo por causa da pressão dos movimentos sociais. Em países de outros continentes, como Congo, África do Sul, Filipinas, há decisões sobre a auditoria. Tudo isso é resultado de campanhas realizadas por movimentos do Sul. E nós apoiamos essas ações.

[*] Presidente do Comitê para Anulação da Dívida do Terceiro Mundo
[**] Jornalista de O Globo
[***] Damien Millet e Éric Toussaint, 50 perguntas 50 respostas – sobre a dívida, o FMI e o Banco Mundial, Editorial Boitempo , S. Paulo, 238 pgs., ISBN 85-7559-081-2.

O original encontra-se em http://oglobo.globo.com/jornal/economia/284615206.asp


Esta entrevista encontra-se em http://resistir.info/ .
09/Jul/06