A necessária superação da esquerda decorativa
por Daniel Correa da Silva
[*]
Hoje (31/Ago) o Brasil sofreu um golpe de Estado.
Os notórios corruptos que organizaram o malabarismo jurídico que
levou ao impedimento de Dilma e hoje tomam o poder representam tudo o que
há de mais atrasado na política brasileira. Ao menos 39 dos 81
senadores possuem a ficha suja
[1]
. É mais do que natural, ao observar os sicofantas que retomam o
protagonismo da política brasileira, o despertar de um senso de
compaixão e solidariedade com Dilma e o PT.
A despeito disso, é preciso deixar este sentimento de lado, já
que ele em nada colabora com a gigantesca tarefa que se inaugura no campo da
esquerda brasileira. Façamos, portanto, as seguintes
ponderações:
O golpe é midiático? Sim, mas não esqueçamos que a
tal "batalha da comunicação" nunca alcançou
patamar além de peça retórica dos programas de governo
petistas. O Partido dos Trabalhadores jamais pretendeu fortalecer a rede
pública de comunicação, nunca enfrentou o monopólio
midiático global e fez questão de boicotar a transmissão
do sinal da Telesur no País.
O golpe é judicial? Seguramente. No entanto, recobremos à
memória que o PT nomeou dez dos onze juízes do STF e jamais ousou
tocar na carreira do judiciário, cuja tradição
histórica é de corte antipopular. O exagerado legalismo do
Partido dos Trabalhadores, à revelia da conjuntura nacional e do clamor
popular
[2]
fez com que o partido se orgulhasse de sustentar a insígnia de ser uma
"esquerda responsável". A realidade cobra seu preço e,
atualmente, a direita brasileira prova que não tem qualquer
escrúpulo, muito menos constrangimento, para atropelar a
constituição: seja para simular um crime de responsabilidade e
sacar a presidente da República em um julgamento eminentemente
político; seja para flexibilizar o rigor do maior algoz de Dilma: a Lei
de Responsabilidade Fiscal.
[3]
O golpe é parlamentar? Sem dúvida. Dado pelos parlamentares
alimentados pelo modelo de presidencialismo de coalizão, um dispositivo
forjado pela classe política brasileira para limitar artificialmente os
poderes do executivo e endossado pelo Partido dos Trabalhadores como
único modelo viável para comandar o país. Lembremos que
Temer possui ao menos 7 nomes fortemente ligados à
administração petista boa parte deles no primeiro
escalão entre ex-ministros, ex-líderes de bancada e
presidentes de estatais
[4]
. Recordemos que Lula quis endossar a campanha de ninguém menos que
Rodrigo Maia à presidência da Câmara, para evitar que
Rogério Rosso, candidato de Eduardo Cunha, ganhasse o pleito. A velha
máxima
"o país é ingovernável sem o PMDB"
provou-se real exatamente em seu sentido oposto:
"o país é ingovernável
com
o PMDB".
O golpe é cívico? Sim, arquitetado pela "sociedade civil
organizada" (o eufemismo utilizado pelo liberalismo de esquerda e de
direita para fazer referência à luta de classes). O
latifúndio, que o PT turbinou durante sua administração,
só ofereceu guarida para a defesa petista na figura de Kátia
Abreu. Muito se diz que seu apoio se deve a uma antiga, sólida e fiel
amizade entre as duas. Nada menos certo. O voto da grileira não poderia
ser mais atravessado pelo mais puro pragmatismo. A miss motosserra rendeu
homenagens à Dilma em seu discurso no Senado por ter sido a
ex-presidente responsável pela concessão de R$ 43 bilhões
de reais em subvenções para o agronegócio, além de
ser considerada por Kátia Abreu a figura decisiva como entusiasta e
articuladora do novo Código Florestal Brasileiro, aquele que em 2012
anistiou os latifundiários pelos crimes ambientais e relaxou os limites
para a expansão da fronteira agrícola. A indústria,
principal beneficiária da "política anticíclica"
resultante da "nova matriz macroeconômica" do primeiro governo
Dilma, só bancou o romance até o momento em que se deparou com
6,2% de queda em seu produto industrial. Pressionou incessantemente por mais
renúncia fiscal e, não encontrando contrapartida no Estado
encurralado pela queda de arrecadação, bradou a plenos
pulmões que não ia pagar o pato. De fato, nunca
pagou: dos 1,5 milhão de milhões da Dívida Ativa da
União, 62% estão na conta da parasitária e
raquítica indústria brasileira. A Febraban, por sua vez, sempre
manteve cordial relação com os governos petistas, afinal
"nunca antes na história do país" os bancos ganharam
tanto. No entanto, a despeito de todos os esforços e tapetes vermelhos
estendidos pelo Partido dos Trabalhadores, a Federação nunca
reconheceu o PT como sendo "um dos seus", fazendo o possível
para manter, durante estes 13 anos e meio, um estado permanente de iminente
instabilidade econômica. Apontam, por sua natureza rentista, para o lado
que acenar com a maior taxa de juros e maior grau de
liberalização para a mobilidade de seus capitais, sem a menor
cerimônia.
O cenário para a esquerda brasileira
A partir de hoje, mais do que nunca, o principal objetivo da esquerda é:
enterrar as ilusões sobre a viabilidade do PT como partido de
representação do clamor das maiorias populares. As
coligações das eleições municipais ratificam, uma
vez mais, que o PT é um partido da ordem burguesa: orienta-se pela
lógica eleitoral e nada mais. Na medida do possível,
buscará crescimento econômico com programas sociais que
domestiquem a luta social. Assim como geriu a emersão dos mais pobres,
não vacilará em retirar as conquistas sociais em nome dos
interesses burgueses. A efemeridade da emancipação das classes
populares é tamanha que não são necessários mais do
que 6 meses para que as inéditas conquistas sociais das
administrações petistas desapareçam como fome em
banquete.
Notadamente, o segundo mandato de Dilma já se inaugurava com ataques aos
direitos sociais. Basta recordar que em fins de 2014 e início de 2015,
logo após garantir mais um ciclo eleitoral a presidente, que havia se
comprometido em campanha que não tocaria nos direitos sociais nem
que a vaca tossisse, prepara um ministério com o fino do
pensamento conservador brasileiro e apresenta um pacote de maldades com a
retirada de direitos trabalhistas e previdenciários
[5]
. A vaca, tuberculosa, veio acompanhada do maior contingenciamento
orçamentário da História do país, da ordem de R$ 80
mil milhões.
Como já era de se esperar, o contingenciamento só fez crescer a
crise brasileira. O grande problema é que a gravidade da crise
econômica não era mais compatível com o ritmo lento e
vacilante do PT em fazer as reformas necessárias em favor da
acumulação de capital. Dilma e o PT saem do governo, portanto,
não por suas virtudes na execução das
"políticas de inclusão social"; mas pelo esgotamento de
sua capacidade de condução do projeto burguês do
país.
Em sua ordem natural, o Partido dos Trabalhadores bradará o golpe aos
quatro ventos e se colocará no papel de vítima. Seus
líderes articularão a possibilidade de uma volta triunfal em
2018, na messiânica figura de Lula. Nós, que temos o compromisso
com um mundo mais justo e igualitário, não podemos mais nos dar o
direito de alimentarmos ilusões e otimismos ingênuos.
Enfim, não há tempo para viver o luto. Ainda que o mundo
pareça ter desabado sobre muitos de nós hoje, acreditemos ou
não, o sol nascerá amanhã e temos urgência em
construir o novo. Diante do nítido esgotamento do sistema
político brasileiro e sua incapacidade de se reinventar para apresentar
alternativas viáveis às maiorias, a Revolução
Brasileira torna a se apresentar não só como possibilidade, mas
como necessidade premente. Ousemos: há vida na esquerda após o
petismo.
02/Setembro/2016
[1] Disponível em
www.diariodocentrodomundo.com.br/...
[2] Rememoro aqui o episódio da proposição de uma
Assembleia Constituinte Exclusiva para a Reforma Política, emergida como
a pauta mais avançada, de longe, da reação às
manifestações de junho de 2013. Diante da ofensiva legalista dos
especialistas em Constituição, a proposta se
desmanchou no ar.
[3] Vide o Projeto de Lei Complementar 257/2016, que redefine os prazos e
termos de pagamento da dívida dos Estados federados com a União;
o Projeto de Emenda Constitucional 241/2016 que, entre outras coisas, congela
por 20 anos o aumento real nas despesas primárias da União e a
PEC 31/16, que desvincula 30% das receitas da União, estados e
municípios.
[4] Eliseu Padilha, Romero Jucá, Geddel Vieira, Henrique Meirelles,
Gilberto Kassab, Henrique Eduardo Alves e Gilberto Occhi
[5] Com a Medida Provisória 665, Dilma restringiu os acessos ao abono
salarial, seguro-desemprego, seguro-defeso, pensão por morte e
auxílio-doença.
[*]
Economista.
O original encontra-se em
www.iela.ufsc.br/noticia/necessaria-superacao-da-esquerda-decorativa
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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