O projecto esgotado de reforma agrária
por João Pedro Stedile
[*]
entrevistado por Guilherme Evelyn e Leandro Loyola
[**]
O líder do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST),
João Pedro Stedile, coloca sobre a mesa uma pasta de plástico, na
qual está colado o adesivo com um quadrinho da Graúna, personagem
do cartunista Henfil de grande sucesso nos anos 70. Ajeita ao lado dela seu
relógio de bolso. Começa a discorrer sobre conceitos como
"mobilização das massas", "combate ao
neoliberalismo" e "plano estratégico nacional".
São símbolos do passado, mas Stedile fala do futuro. De acordo
com ele, o movimento tem de derrotar o sistema econômico em vigor se
quiser atingir seu objetivo. "O projeto de reforma agrária que o
MST passou 20 anos lutando para implantar se esgotou", afirma.
"Será preciso um novo tipo de reforma agrária."
ÉPOCA No congresso do MST, o senhor disse que a reforma
agrária com que o movimento sonhava não é mais
possível. Por quê?
João Pedro Stedile
A reforma agrária clássica foi feita na maior parte dos
países da Europa, nos Estados Unidos, no Japão, depois da Segunda
Guerra Mundial. É um projeto que está combinado com um projeto de
desenvolvimento da indústria nacional para desenvolver um mercado
interno. O Brasil perdeu quatro oportunidades históricas de fazer esse
tipo de reforma agrária: no fim da escravidão, na
implementação da industrialização pela
Revolução de 30, em 1964 e no governo Sarney, quando havia um
clima favorável no PMDB para viabilizar um projeto de desenvolvimento
nacional. Da década de 90 para cá, nosso país e as elites
brasileiras abandonaram o projeto nacional. O que está em curso é
um projeto popularmente conhecido como neoliberalismo, que subordina a economia
brasileira ao capital internacional e financeiro. O projeto pelo qual o MST
lutou 20 anos se esgotou porque as elites brasileiras deixaram de defender um
projeto de industrialização nacional. Hoje, a não ser o
vice-presidente José Alencar, não há forças
nacionalistas em nossa burguesia industrial.
ÉPOCA Qual seria o novo modelo defendido pelo MST?
Stedile
Para viabilizar uma nova reforma agrária, será preciso antes
derrotar o neoliberalismo. O primeiro fundamento desse novo tipo de reforma
agrária é a democratização da propriedade da terra,
que não é uma bandeira socialista, mas republicana. O segundo
é a reorganização da produção
agrícola. Hoje, as transnacionais vêm aqui e controlam a
produção, o comércio, o preço. Isso está
errado. A produção agrícola precisa ser organizada em
primeiro lugar para atender o mercado interno e o povo brasileiro. O terceiro
aspecto é repensar novas técnicas agrícolas, porque as
usadas pelas transnacionais são insustentáveis do ponto de vista
do meio ambiente. O quarto aspecto é levar a educação
formal e o conhecimento para o campo para formar o cidadão
camponês. O quinto aspecto é levar as pequenas
agroindústrias ao interior para gerar emprego lá.
ÉPOCA O que o MST está fazendo para se adaptar a esses
novos tempos?
Stedile
Estamos mudando. Vou dar um exemplo: nós nos demos conta de que nas
faculdades de Agronomia os caras só sabem sobre monocultura ou
agrotóxico. Então, o MST está montando uma rede em
parceria com universidades federais para formar novos agrônomos.
Já temos um curso de Agronomia no Pará para o bioma da
Amazônia, outro em Sergipe para o semi-árido, um terceiro em Mato
Grosso para o Centro-Oeste e um quarto no Paraná para o clima frio e
temperado. Para quê? Para formar novos agrônomos que dominem
técnicas de agroecologia e possam nos assessorar. Vamos anunciar uma
parceria com o Greenpeace. Estamos brigando com o governo para botar mais
dinheiro da educação no meio rural.
ÉPOCA Por que a correlação de forças
políticas se tornou desfavorável à reforma agrária
justamente no governo Lula?
Stedile
A própria eleição do Lula só foi possível
porque ele se aliou com parte da burguesia neoliberal. Ela aceitou apoiar a
candidatura Lula que eles nunca engoliram. Além disso, as lutas sociais
se movem em ondas. E estamos numa onda de descenso do movimento de massas desde
1989. A ascensão do Fernando Collor e do Fernando Henrique Cardoso foi
uma derrota política grave para o povo brasileiro.
ÉPOCA Mas esse movimento social não se animou nem com a
eleição do Lula?
Stedile
Nós do MST apostávamos que a simples vitória eleitoral do
Lula reanimaria as massas. Nós nos reanimamos, tanto que, em 2003,
botamos 200 mil famílias acampadas, mas o resto do povo não se
mobilizou.
ÉPOCA O que o senhor chama de neoliberalismo não é,
na verdade, o resultado de um processo de mudanças inevitáveis na
economia mundial, como a globalização e as
inovações tecnológicas?
Stedile
Claro que o capital está numa fase de querer circular em todos os
países do mundo, mas governos nacionais existem para cuidar dos
interesses de seu povo, não é? Vários países do
mundo mantiveram políticas nacionalistas, como Irã, Índia
e China. A taxa de câmbio da China é historicamente
sobrevalorizada, mas os chineses não mudam porque assim há
produtos baratos em dólar para todos.
ÉPOCA O governo diz que sua política econômica
reforça o mercado interno.
Stedile
Todos os dados empíricos mostram que continua a haver
concentração da renda nacional nas mãos de uma minoria. O
que houve no governo Lula, com a política de aumento real do
salário mínimo e do Bolsa-Família, foi uma
distribuição mais equânime da renda entre os assalariados.
Mas a economia nacional não se mede apenas entre os assalariados.
ÉPOCA O Bolsa-Família tirou militantes do MST?
Stedile
Não. Os 10 milhões beneficiados pelo Bolsa-Família
são gente que está lá em baixo na pirâmide, que
não tem consciência nem capacidade de mobilização.
São os párias da sociedade. O Bolsa- Família é um
programa humanitário. Salva vidas, mas não distribui renda.
ÉPOCA Qual é sua avaliação do governo Lula?
Stedile
Em sua composição atual, o governo Lula está ainda mais
à direita que no primeiro mandato. O governo fez uma opção
unicamente por uma maioria parlamentar e se aliou com gente que inclusive era
contra ele. É ridículo ver o Michel Temer (presidente nacional do
PMDB) apoiando o Lula, quando todo mundo sabe que ele fez campanha para o
Geraldo Alckmin.
ÉPOCA O MST não passa por uma crise de identidade por
não saber se faz oposição ou se apóia o governo
Lula?
Stedile
Nossa atitude em relação ao governo sempre foi de autonomia. Nos
jornais, ora somos acusados de arrefecer por causa do Lula, ora de nunca termos
feito tantas invasões, de nunca ter desrespeitado tanto a lei.
Continuamos fazendo ocupações de terra. O governo é que
está em crise porque ficou parado.
ÉPOCA Por que o MST é contra a parceria com os Estados
Unidos para desenvolver um mercado mundial de álcool combustível?
Stedile
Esse programa do etanol só interessa ao grande capital internacional.
Se os EUA têm problemas para abastecer seus carros, isso é com
eles. Temos de resolver os problemas do Brasil: distribuição de
renda e emprego. Defendemos outra forma de produzir o álcool, de uma
maneira mais equilibrada e sustentável para o meio ambiente.
[*]
Dirigente do MST
[**] Da revista brasileira
Época
Transcrito da mailing list
http://listas.chasque.net/mailman/listinfo/boletin-prensa
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|