Falar de fascismo no Brasil
Há o medo de certas palavras. Esse medo vem na maneira com que tentamos,
até o limite, não utilizá-las. Porque seu uso acende
alertas vermelhos, nos quebra a letargia de sentir que, por mais que nossa
situação atual seja complicada, a vida corre. E corre com um
correr de quem acaba por acertar seu passo, abaixar os gritos. Bem, não
há palavra que nos leve mais a temer seu uso do que
"fascismo". No entanto, é ela que se ouve de forma cada vez
mais insistente
quando se é questão da situação brasileira atual.
Coloquemos então, de maneira direita e simples, uma questão que
vários de nós já colocou a si mesmo: Estaria o Brasil
caminhando para o fascismo?
Esta questão não se ouve apenas no Brasil. Ela se ouve na
Itália,
na Hungria
, na Polônia, nas Filipinas. Esta confluência de semblantes
perplexos a fazer o tour do mundo não é mero acaso. Ela indica
uma fenda global que parece paulatinamente crescer, fenda por onde passaria a
emergência de novas formas de governo com traços claramente
fascistas.
Mas não seriam tais governos simplesmente "populistas"?
Não é assim que se diz hoje, "governos populistas de
direita"? Sim, é assim que se diz. Mas e se este uso extensivo do
termo "populismo" fosse, na verdade, uma forma de não chamar
de gato um gato? Pois talvez os chamamos de "populistas" para
não dizer o que eles realmente são: governos nos quais uma certa
concepção de 'estado total', uma forma explícita de
implosão de qualquer possibilidade de solidariedade social com grupos
historicamente vulneráveis, uma noção paranoica de
nação e o culto da violência são a verdadeira
tônica. Mas seria isto exatamente "fascismo"? E por que
não falar em "populismo", neste caso?
Lembremos como o uso extensivo da noção de "populismo"
voltou. Há pelo menos dez anos havia ficado claro que a política
mundial tendia a se deslocar para os extremos. A incapacidade de responder ao
processo de degradação social provocado pela crise
econômica de 2008, ou seja, a inanidade das políticas neoliberais
diante da crise e sua partilha, em maior ou menor grau, por todos os principais
atores políticos, provocara uma desidentificação tal com o
poder instituído, uma frustração tal daqueles que um dia
acreditaram nas sereias da globalização, que o fortalecimento dos
extremos era uma tendência
irresistível. A democracia liberal havia tocado seu limite. Pois o
problema não era apenas econômico, ele era principalmente
político. Não havia espaço no campo político para
ações e discursos de ruptura clara com a ordem econômica
responsável pela pauperização de camadas cada vez maiores
da população.
Diante de um desejo de recusa forte dos limites de nossa vida institucional,
criou-se essa palavra mágica que faz tudo o que coloca em questão
os sistemas de paralisias e acordos da democracia liberal parlamentar parecer
"irracional", "emotivo", "fruto de
frustrações", "convite a regressões
atávicas", ou seja, "populista". Ainda de quebra, o
termo
permitia juntar os extremos, falar de um populismo de direita e de um populismo
de esquerda, anulando com isto os dois polos, fazendo-os operar em uma
balança de equivalências. Como se, no fundo, existisse apenas a
"democracia" que conhecemos e os "populismos".
Mas era claro que as diferenças entre os polos eram profundas. À
direita, via-se uma crítica à pauperização social
que colocava a conta da catástrofe nas costas dos mais desfavorecidos, a
saber, os imigrantes espoliados por relações de trabalhos
sub-humanas, os refugiados vítimas das consequências das
intervenções imperialistas em regiões de conflito perene,
como o Oriente Médio. Quando não havia grandes levas de
imigrantes, via-se a
mobilização das clivagens originárias de raça e de
gênero, em uma reedição de estratégias cuja
ressonância fascista era evidente. À direita, via-se ainda todo o
imaginário a respeito da fronteira, da imunidade do corpo social, da
invasão, do contágio retornar diretamente dos discursos mais
inflamados de Goebbels.
Ou seja, não havia proximidade alguma entre os polos. Mas
estávamos diante de uma prática de
"normalização" da extrema-direita e recuperar a
tópica do "populismo" vinha mesmo a calhar. Porque recusar
sua
normalização acabaria por levar toda a força
anti-institucional ao outro polo e com isto produzir uma ruptura sem
negociação com a ordem econômica atual.
Mas nada disto respondeu à pergunta colocada no início deste
artigo, a saber, estaria o Brasil caminhando para o fascismo? Talvez fosse o
caso de levantar alguns traços que têm a força de falar por
si mesmos.
Quando o jurista nazista Carl Schmitt procurou explicar o que era o Estado
total fascista, ele tomou o cuidado de estabelecer uma distinção.
Segundo ele, nós conheceríamos uma forma de Estado total no
interior das democracias parlamentares. Trata-se desse Estado que ouve todos os
lados da sociedade, que está presente em todos os conflitos sociais e
que produz estruturas de mediação e de legislação
em todas as esferas da vida social. Ele procura dar conta dos conflitos
trabalhistas, dos problemas de desigualdade, da violência
específica contra grupos vulneráveis, entre outros. O Estado
está assim, em todos os lugares. Ele não pode pairar acima da
sociedade e decidir, pois é apenas a emulação dos
conflitos sociais. Contra isto, dirá Schmitt, precisamos de outro Estado
total. Mas sua função será diferente: ele deverá
usar toda sua força para despolitizar a sociedade, impedir que as
escolas sejam focos de sedição e formação, impedir
que os trabalhadores pressionem seus patrões através de
obrigações legais, usar a força policial para impedir
greves, paralisias, ocupações. Assim, pode-se garantir a
única liberdade real, a saber, a "liberdade de empreender"
(que é sempre uma liberdade para alguns, ou melhor, para os de sempre).
Este era o Estado total fascista.
Por outro lado, nesse Estado, um dos poucos princípios liberais que
qualquer democracia real deveria preservar, a saber, a possibilidade de que
indivíduos sempre terão, independente de quem são ou do
que fizeram, de se defenderem do Estado quando julgados, não existia.
Pois essa possibilidade exige inviolabilidade do sistema de defesa (em bom
português, meu advogado de defesa não pode ser grampeado
[NR]
pelo juiz), exige desinteresse da parte dos julgadores (mais uma vez, em bom
português, se sou candidato a presidente, o juiz que julga meu caso
não pode me prender porque tem um projeto pessoal de poder e quer ser
ele o próprio presidente).
Por fim, e esta era uma compreensão precisa de Franz Neumann, o Estado
nazista não governa. Ele é uma associação
instável entre grupos que estão em conflito contínuo. Mas
esse conflito é uma forma de perpetuar o "movimento",
já que ele permite ao governo entrar em conflito contínuo com o
Estado, dizer sempre que nosso grande projeto não está a ser
implementado porque forças obscuras estão agindo dentro do Estado
para impedir nossa grande redenção. O estado nazista
é uma crise permanente elevada à condição de
governo. A única coisa que tenho a dizer é: junte os pontos e
diga se a cena não lhe parece demasiado familiar.
05/Julho/2019
[NR] Grampear: fazer escutas telefónicas clandestinas.
[*]
Professor de Filosofia na Universidade de S. Paulo.
O original encontra-se em
brasil.elpais.com/brasil/2019/07/03/opinion/1562176410_719446.html
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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