Não pode haver ilusões com nenhum governo e aos trabalhadores
resta a resistência
por Paulo Passarinho
[*]
entrevistado por Gabriel Brito
Já virou praxe: toda eleição é tratada por muitos
como "a mais nivelada por baixo de todas", "a mais recheada de
ódios e ressentimentos sociais". Entorpecido, o Brasil mergulha nas
urnas no ápice do desespero coletivo, a ponto de corrermos o risco de
eleger uma chapa que não se furta de anunciar seu apreço a um
regime de força que, em último caso, prescinda de votos e demais
ritos democráticos. E quaisquer que sejam o resultados, há um
período incerto e sombrio pela frente. Sobre todo esse fiasco da Nova
República, publicamos entrevista com o economista Paulo Passarinho, que
fez uma análise das principais propostas ou ausência delas
da corrida eleitoral.
"A ilusão de que estávamos em uma rota adequada de
crescimento e desenvolvimento para as maiorias ganhou força. Contudo,
estruturalmente, a regressão industrial em relação ao
conjunto da economia, a desnacionalização do parque produtivo, a
fragilização do papel do Estado como provedor de serviços
públicos de qualidade à população, e a
manutenção do mecanismo da dívida pública como
instrumento de valorização dos capitais privados mantinham o
país, na verdade, em uma perigosa rota de fragilidades e
vulnerabilidades. Mais importante, ainda: o aparente "sucesso" da
gestão econômica lulista reforçou a metamorfose
política e ideológica do PT e a sua fidelidade às
pressões e exigências dos setores empresariais",
contextualizou.
Sobre a disputa em si, dominada pelo discurso do medo e da
negação do lado oposto, Passarinho, também colunista deste
Correio e ex-presidente do Conselho Regional de Economia do Rio de Janeiro,
lamenta o tremendo rebaixamento a que "a era das imposturas" nos
levou. Uma era que abrange todo o período de consenso neoliberal na
política e na condução do país, portanto, um
período de quase 30 anos. E contra a ameaça fascista legitimada
nas urnas, a alternativa dita progressista não traz bons augúrios.
"(sobre uma vitória de Haddad) temo que possa não ser
favorável aos setores progressistas da sociedade, pelo fato de o PT,
convenhamos, ser hoje um partido extremamente vulnerável a um conjunto
de críticas que nada dignificam um partido que possa ser considerado de
esquerda, ou mesmo progressista. Suas alianças, nessas
eleições, com setores 'golpistas' vai de vento em popa. Suas
práticas fisiológicas e de promiscuidade com políticos da
direita - e suspeitíssimos de corrupção jamais
mereceram algum tipo de autocrítica; sua inflexão política
e ideológica, igualmente, jamais foi assumida com clareza e coragem, o
que poderia ser salutar para a democracia brasileira, inclusive para dialogar e
fortalecer a sua posição centrista, em meio à
balbúrdia partidária brasileira", analisou.
Sobre o outrora obscuro deputado, cujos discursos pré-eleitorais se
blindaram ao máximo de uma exposição clara ao
público, Passarinho aponta uma radicalização do mesmo
modelo econômico, que poderia vir a ser garantida como um forte aumento
da violência estatal contra aqueles que se opuserem.
"(A vitória de Bolsonaro) abrirá uma enorme possibilidade de
avanço da agenda de contrarreformas liberais radicais, com a
ameaça de uma nova rodada selvagem de privatizações, que
poderá colocar em risco a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa
Econômica, o que nos resta do setor elétrico, além de
maiores perdas e ataques ao direito dos trabalhadores, como, por exemplo, o fim
do 13º salário e do abono de férias", identificou.
Na longa entrevista, Passarinho, além de pontuar que os setores
progressistas terão um longo caminho de reconstrução de um
projeto político amplo, concede o benefício da dúvida a
respeito da possibilidade de Ciro Gomes ser um alivio momentâneo, ainda
que sem quaisquer ilusões.
"Considero-o um político mais preparado, mais definido e mais
coerente do que Fernando Haddad, por exemplo. Chego a pensar que, para esse
campo lulista, ele poderia ter sido um candidato muito mais competitivo e
consequente do que Haddad. Contudo, isso é um tremendo exercício
especulativo, até mesmo porque o próprio PT jamais esteve aberto,
me parece, a ceder a liderança do seu campo a um político que
não fosse de total confiança de Lula e de sua burocracia",
afirmou.
A entrevista completa com Paulo Passarinho pode ser lida a seguir.
Correio da Cidadania: Antes de entrarmos nas eleições, que
balanço faz do governo Temer, principalmente no aspecto
econômico?
Paulo Passarinho:
A herança do governo Temer é a pior possível e
gravíssima para o futuro do país. Pelo lado fiscal, ficamos com a
Emenda Constitucional 95, a comprometer sobremaneira as funções
constitucionais da União por 20 anos, com impactos negativos, ainda mais
graves do que os que já estão em curso, em áreas como a
Educação, a Saúde ou a própria Segurança
Pública; as alterações na Lei de Partilha do
Pré-sal, pelos seus impactos na esfera produtiva, em
relação ao patrimônio da União e também na
área fiscal; a política de clara desestruturação do
sistema Petrobrás, com a agressiva e ilegal venda de ativos da empresa;
as mudanças na legislação trabalhista e especialmente o
incentivo e permissão das terceirizações de
atividades-fim, inclusive no setor público; e o andamento de novos
ataques à Previdência Social, através da
tramitação de proposta de Emenda Constitucional, já
aprovada em Comissão Especial da Câmara, são exemplos que
comprometem ainda mais qualquer capacidade de o Estado brasileiro comandar um
processo de reorientação do desenvolvimento econômico e
social do país, de acordo com as necessidades e exigências da
maioria da população brasileira.
Tudo isso se torna mais grave ainda quando observamos o quadro de
estagnação prolongada da economia, após a recessão
produzida em 2015 e 2016.
Correio da Cidadania: Pode-se traçar um perfil deste governo
tampão de forma descolada dos governos Dilma, dos quais Temer foi
vice-presidente?
Paulo Passarinho:
De forma alguma. A chamada "pauta regressiva", demonizada pelos
setores antigolpe incluindo o PT , teve início, a rigor, no
governo Dilma, com medidas que nos conduziram à forte recessão de
2015/16. Dilma, imediatamente após a sua vitória eleitoral de
2014, e antes mesmo do término do seu primeiro mandato, capitulou de
forma vergonhosa às exigências do setor financeiro e deu
início à escalada de restrições de direitos
trabalhistas, ao aperto fiscal e ao desmonte do sistema Petrobrás, com a
política de venda de ativos sob a direção de Aldemir
Bendine.
O próprio golpe parlamentar por ela sofrido teve como principal
razão a sua incapacidade de aprovar medidas no parlamento de interesse
do sistema financeiro, propostas inicialmente por Joaquim Levy e depois por
Nelson Barbosa. O boicote das bancadas do PSDB, do DEM, do PP, do PPS e da
banda peemedebista, sob o comando de Eduardo Cunha, deixou claro que apesar
do seu "esforço" Dilma não tinha
condições de "entregar" o que pretendia.
Essa capitulação de Dilma, que uns preferem esquecer e outros
negam, está relacionada, em minha opinião, a duas razões.
A primeira delas, de ordem conjuntural: apesar de na sua campanha eleitoral ela
ter combatido e denunciado os planos de Aécio Neves e Marina Silva, como
sintonizados à recessão e ao ajuste econômico nas costas
dos trabalhadores, a vulnerabilidade do seu governo e do seu partido às
revelações da Operação Lava Jato a fizeram procurar
o apoio desses segmentos dominantes, do setor financeiro, os principais
defensores e beneficiários desse tipo de "terapia", para
enfrentar a crise.
A segunda razão é mais grave e importante: desde o final dos anos
1990, o PT foi paulatinamente abrindo mão de uma postura crítica
e alternativamente propositiva ao conjunto de mudanças
constitucionais, normativas, patrimoniais, macroeconômicas e
administrativas realizadas no Estado brasileiro, a partir do primeiro
governo de FHC. De uma clara alternativa ao neoliberalismo tupiniquim
através do seu programa intitulado como "democrático e
popular" o PT passou a ser uma alternativa para "gerir"
esse modelo, fundado a partir da hegemonia do capital financeiro. Gerir de
forma diferente aos tucanos, de forma mais sensível às demandas
populares, mas respeitando a "moldura" construída nos anos
1990.
As privatizações, a liberalização financeira, o
câmbio flutuante, as metas de superávit primário e de
inflação, a reforma administrativa bresseriana e todo
arcabouço neoliberal construído pelos governos de FHC passaram a
fazer parte da agenda do neoPT. Isso explica a razão do governo Dilma,
pressionado pelas repercussões da Operação Lava Jato e
pelas consequências do desarranjo econômico do final do seu
primeiro mandato, ter se entregado tão docilmente às
recomendações dos banqueiros e financistas.
Correio da Cidadania: O que avalia das principais campanhas eleitorais
até aqui? Tivemos debates à altura dos desafios que o país
tem pela frente?
Paulo Passarinho:
Não. Considero o nível dos debates muito aquém do
que poderíamos imaginar como necessário para o Brasil superar a
crise atual que vivemos. Essa crise, em minha opinião, reflete todos os
equívocos do que denomino a "era das imposturas". Uma era que
teve início com o "fim da inflação", na
época do FHC, e o lançamento do Plano Real; passa pelo
"neodesenvolvimentismo" do lulismo; e desemboca nessa dita
"pauta regressiva", atribuída a Michel Temer, mas tendo sido
iniciada ao final do primeiro mandato de Dilma.
A era das imposturas é a tradução da intensa propaganda
positiva em torno das mudanças dos anos 1990, a que me referi
anteriormente, e que ganham grande impulso popular a partir dos governos de
Lula. A expressiva valorização dos preços das commodities
permitiu, já em 2003, saldos comerciais superiores aos crônicos
déficits da nossa conta de serviços, conforme pudemos observar
até 2007.
Essa vantagem, pelo lado externo da nossa economia, viabilizou a
elevação dos níveis de consumo interno, a expansão
do crédito e políticas de valorização real do
salário mínimo e de aumento dos programas de transferência
de renda aos setores de baixíssima renda.
A ilusão de que estávamos em uma rota adequada de crescimento e
desenvolvimento para as maiorias ganhou força. Contudo, estruturalmente,
a regressão industrial em relação ao conjunto da economia,
a desnacionalização do parque produtivo, a
fragilização do papel do Estado como provedor de serviços
públicos de qualidade à população, e a
manutenção do mecanismo da dívida pública como
instrumento de valorização dos capitais privados mantinham o
país, na verdade, em uma perigosa rota de fragilidades e
vulnerabilidades. Mais importante, ainda: o aparente "sucesso" da
gestão econômica lulista reforçou a metamorfose
política e ideológica do PT e a sua fidelidade às
pressões e exigências dos setores empresariais.
No fundo, a gestão petista conferiu legitimidade e apoio popular ao
modelo antinacional e antipopular dos bancos e das multinacionais, os
verdadeiros beneficiários desse modelo econômico iniciado nos anos
1990. Meu descontentamento com o nível dos debates entre os
presidenciáveis está diretamente relacionado com a incapacidade
de ouvir diagnósticos e proposições que coloquem na
berlinda esse modelo dos financistas, e não somente a chamada pauta
regressiva de Dilma e Temer.
Esta pauta é apenas a expressão radicalizada, em um momento de
crise, da "solução" proposta por esses setores
hegemônicos que dão as cartas na economia desde os anos 1990, e
que no período dos governos pós-2002 apenas fortaleceram as suas
posições e interesses.
Correio da Cidadania: Como avalia as propostas dos candidatos na economia?
Paulo Passarinho:
Pelo lado dos candidatos da direita, o reforço inconsequente e
irresponsável da política de arrocho em curso, ao mesmo tempo em
que tentam se diferenciar entre si com a cantilena enfadonha das virtudes de
cada um como "gestores". Uma pobreza sem limites, para a defesa do
indefensável: o maior controle do orçamento público (para
a garantia do pagamento de despesas financeiras), através do
congelamento por 20 anos nos gastos correntes e de investimento do Estado,
combinado com uma agressiva estratégia de retirada de direitos dos
trabalhadores, com o objetivo de reduzir o custo do trabalho no
país.
Alguns desses candidatos ainda admitem que possa haver alguma
flexibilização o que me parece inevitável
nos termos do congelamento de despesas prevista na EC 95, mas em linhas gerais
o que temos é o mais do mesmo do que já se encontra em curso.
Pelo lado das forças que denunciam o golpe parlamentar contra a Dilma, o
horizonte programático parece ser a revogação da agenda de
contrarreformas de Michel Temer e a equação do problema fiscal
pelo lado da receita, através de mudanças na estrutura
tributária, tornando os impostos sobre os ricos mais rigorosos. A
exceção é o PSTU que, abstraindo qualquer
restrição de ordem conjuntural ou subjetiva, defende uma
rebelião popular, como caminho para transformações
estruturais, de caráter socialista.
As propostas das forças políticas antigolpe representadas pelas
diferentes candidaturas de Haddad, Ciro e Boulos possuem uma riqueza de
detalhes que evidentemente superam a minha genérica
caracterização inicial sobre os seus respectivos programas. Entre
esses três candidatos, Ciro Gomes é o que melhor encarna e defende
um programa de natureza desenvolvimentista, denunciando o rentismo, defendendo
o papel do Estado como indutor da reativação econômica,
destacando o papel dos complexos industriais da saúde e da defesa,
denunciando o imperialismo e claramente se comprometendo em reverter os
leilões do pré-sal e as negociações em curso entre
a Boeing e a Embraer.
Contudo, junto a esse discurso, defende também zerar o déficit
primário em um período de dois anos, a adoção do
regime de capitalização para a Previdência Social
Pública e, de acordo com um dos seus principais assessores
econômicos, a privatização de estatais. Essa ambiguidade da
campanha do ex-ministro e ex-governador do Ceará revela uma das
características da sua proposta: ainda que ele defenda com vigor um
projeto desenvolvimentista, este deveria se dar a partir justamente daquela
"moldura" a que me referi no início dessa entrevista,
representada pelas "reformas" liberais dos anos 1990.
Meu ceticismo com essa estratégia está relacionado à
ausência de um claro compromisso com a desmontagem do processo de
liberalização financeira e com o restabelecimento de controles
sobre a conta de capital do país. Compreendo que não
necessariamente esses sejam temas para serem explorados e enfatizados no curso
de uma campanha eleitoral. Entretanto, vejo a divulgação de tais
propostas de agrado ao sistema financeiro, elencadas acima, como uma
espécie de sinal positivo ao chamado "mercado", especialmente
a ambiciosa e equivocada "meta" fiscal e o regime de
capitalização para salários acima de um determinado valor,
mas abaixo do atual teto do Regime Geral da Previdência, de R$ 5,6 mil.
Além disso, temos a reafirmação e apologia do
agronegócio, como uma das "locomotivas" do modelo cirista.
O programa de Haddad, por sua vez, procura recuperar as linhas gerais do que
foi denominado, no segundo governo de Lula, como
"neodesenvolvimentismo". É na verdade, também, uma
espécie de "namoro" assim como Ciro entre o
neoliberalismo dos anos 1990 e a adoção, dentro de estreitas
possibilidades, de mecanismos indutores ao desenvolvimento a partir do Estado e
de seus bancos públicos. Em relação a Ciro, suas propostas
não são tão enfáticas na defesa de uma
estratégia "desenvolvimentista", mas também não
cai na tentação de apresentar "novidades" para a
Previdência Pública ou para a área fiscal.
Porém, o grande problema das propostas formais de Haddad é a
patente vulnerabilidade do PT, o seu partido, frente às sempre presentes
pressões do mercado financeiro. A história recente não nos
permite ser ingênuos em relação ao que o PT entende como
"governabilidade" e a forma como, em nome desta, os seus compromissos
programáticos são abandonados.
Por fim, Guilherme Boulos, candidato da aliança PSOL/PCB/MTST, tem um
claro compromisso em inverter as atuais prioridades do Estado, promovendo e
incentivando o protagonismo das classes populares e, ainda que de forma
tímida, denunciando as "reformas" liberais dos anos 1990.
Defendendo uma ampla reforma do sistema tributário, visando
"aumentar a equidade e a eficiência na arrecadação e
seu caráter regulatório", apresenta uma série de
propostas importantes para sepultar a regressividade da atual estrutura
tributária.
Na área fiscal, além do compromisso de encaminhar para consulta
popular a revogação da Emenda Constitucional 95, defende a
revisão da Lei de Responsabilidade Fiscal, o abandono das metas de
superávit primário e a mudança no perfil da Dívida
Pública Federal, com a redução do pagamento de juros, e a
"realização de uma auditoria para evitar novos contratos
lesivos ao povo brasileiro junto a instituições
financeiras". São contribuições importantes que, dada
a pequena força eleitoral de sua coligação, poderão
ser relevantes para procurar influenciar as negociações em torno
da candidatura do campo antigolpe possivelmente a de Haddad em um
possível segundo turno das eleições presidenciais.
Correio da Cidadania: Como analisa a estratégia do PT de segurar a
candidatura Lula até o limite dos prazos e depois a escolha da dupla
Haddad-Manuela D'Ávila?
Paulo Passarinho:
Sob o ponto de vista de Lula e da burocracia petista, foi uma
estratégia coerente com o objetivo de manter Lula no centro do debate
presidencial até onde era possível, e explorar ao máximo,
e no menor espaço de tempo, a possibilidade de transferência de
votos do ex-presidente para Haddad.
Porém, é uma estratégia que incentiva a
oposição de direita ao lulismo, favorecendo a
acusação ao ex-prefeito de São Paulo de ser um mero
fantoche a serviço do próprio Lula, hoje "um
presidiário". Considerando o clima "anti-PT", criado
contra essa legenda e contra o próprio Lula especialmente pelos
meios de comunicação, por setores do Ministério
Público e da própria Justiça , isso favorece a essa
polarização, PT x Anti-PT, de interesse eleitoral da direita.
Correio da Cidadania: O que seria do Brasil numa eventual
polarização Haddad-Bolsonaro para o segundo turno e também
após as eleições?
Paulo Passarinho:
Temo que possa não ser favorável aos setores progressistas
da sociedade. Em primeiro lugar, pela razão exposta na resposta
anterior. Em segundo lugar, pelo fato de o PT, convenhamos, ser hoje um partido
extremamente vulnerável a um conjunto de críticas que nada
dignificam um partido que possa ser considerado de esquerda, ou mesmo
progressista. Suas alianças, nessas eleições, com setores
"golpistas" vai de vento em popa. Suas práticas
fisiológicas e de promiscuidade com políticos da direita - e
suspeitíssimos de corrupção jamais mereceram algum
tipo de autocrítica; sua inflexão política e
ideológica, igualmente, jamais foi assumida com clareza e coragem, o que
poderia ser salutar para a democracia brasileira, inclusive para dialogar e
fortalecer a sua posição centrista, em meio à
balbúrdia partidária brasileira.
Penso, assim, que essa polarização que já
está em curso tenderá a jogar ainda mais para a direita as
posições de Haddad, buscando não se isolar de partidos
desse campo, refratários à liderança de Bolsonaro. Esse
possível movimento de Haddad buscará também criar melhores
condições de "governabilidade" após as
eleições, caso naturalmente ele venha a se tornar o
próximo presidente do país.
Contudo, o que mais temo é que haja uma espécie de disputa, em
torno dessas candidaturas, entre o legado da ditadura e o legado da Nova
República. Levando-se em conta que os "mal feitos" e
frustrações desta última estão mais próximos
e presentes! e que a tragédia da ditadura, além de
mais distante no tempo, jamais foi suficientemente passada a limpo e punida com
rigor uma das mais graves heranças da tal
"transição democrática" que tivemos temo
por um tipo de disputa dessa natureza. A forma desinibida, impune e descarada
com que o próprio Bolsonaro e seus partidários agem, inclusive
através de oficiais das Forças Armadas, mostra muito bem o que
temos pela frente.
Correio da Cidadania: Em caso de vitória da chapa petista, como imagina
o antipetismo novamente na oposição do governo federal?
Não teríamos chance enorme de uma repetição da
ruptura que houve com Dilma ou de um golpe de forma até mais
inequívoca?
Paulo Passarinho:
Tudo dependerá da forma com que Haddad vier a se comprometer nas
eleições do segundo turno. Como acredito que Haddad, o PT e os
seus aliados tenderão a aprofundar os seus compromissos com setores da
direita, inclusive por força da lógica eleitoral, tudo
dependerá da forma como Haddad irá resistir ou não
às pressões da plutocracia e de seus partidos, para
aceitar dar continuidade ao programa de contrareformas iniciado com Dilma/Levy
e em curso com Michel Temer.
Novamente, o PT estará colocado frente ao dilema de respeitar o seu
programa eleitoral, enfrentar a plutocracia, saber lutar e derrotar uma maioria
parlamentar hostil a esse seu programa, ou, em nome da famosa
"governabilidade", "correlação de
forças", ou o que quer que seja para a sua sobrevivência,
deixar de lado as suas propostas e, mais uma vez, capitular. A
reedição da operação realizada por Lula em
2002/2003, promovendo um governo de "conciliação", de
garantia de ganhos e vantagens "para todos", respeitando as
contrareformas de FHC e ao mesmo tempo atendendo com políticas
compensatórias e de inclusão os setores mais pobres da sociedade,
desta feita não mais será possível.
Não mais temos a extraordinária expansão da demanda
asiática e chinesa, que nos favoreceu na primeira década do
século 21, e ao mesmo tempo temos um grave problema de
estagnação econômica, após a forte recessão
de 2015/16 e suas consequências no nível do emprego, da renda e do
endividamento das famílias, das empresas e dos estados e
municípios. Penso que a instabilidade com desdobramentos, hoje,
imprevisíveis - será a principal característica que
nos aguarda para 2019, seja qual for o próximo governo
Correio da Cidadania: E um governo Bolsonaro? Tiro fatal em nossa já
limitada democracia e suas instituições?
Paulo Passarinho:
Muito provavelmente. Um governo Bolsonaro terá consequências
imprevisíveis nas esferas econômica, social e política.
Não ouso fazer qualquer prognóstico mais definitivo, mas
certamente teremos fortes turbulências que poderão
considerando o tipo de gente que cerca e apoia o candidato oferecer
enormes riscos a nossa limitada e precária democracia.
Além disso, sua vitória abrirá uma enorme possibilidade de
avanço da agenda de contrarreformas liberais radicais, com a
ameaça de uma nova rodada selvagem de privatizações, que
poderá colocar em risco a Petrobrás, o Banco do Brasil, a Caixa
Econômica, o que nos resta do setor elétrico, além de
maiores perdas e ataques ao direito dos trabalhadores, como, por exemplo, o fim
do 13º salário e do abono de férias.
Para se levar um programa dessa natureza à frente, pela forte
resistência que certamente um projeto desse tipo irá provocar,
somente um regime baseado na força, na violência e
repressão aberta aos movimentos sociais organizados poderá
alcançar os seus objetivos.
Correio da Cidadania: Ciro Gomes presidente poderia ser um alívio em
meio a tal contexto?
Paulo Passarinho:
Talvez. Embora considere hoje o Ciro uma expressão do campo
lulista justamente por essa sua tendência, em minha
opinião, de sustentar uma visão dita
"desenvolvimentista", mas de respeito às reformas dos anos
1990 -, sua origem e trajetória não vêm da esquerda. Isso
talvez pudesse lhe dar um pouco mais de margem de manobra para negociar com
adversários e com uma maioria parlamentar de
oposição.
Pessoalmente, o considero um político mais preparado, mais definido e
mais coerente do que Fernando Haddad, por exemplo. Chego a pensar que, para
esse campo lulista, ele poderia ter sido um candidato muito mais competitivo e
consequente do que Haddad. Contudo, isso é um tremendo exercício
especulativo, até mesmo porque o próprio PT jamais esteve aberto,
me parece, a ceder a liderança do seu campo a um político que
não fosse de total confiança de Lula e de sua burocracia.
Correio da Cidadania: Como analisa a campanha de Guilherme Boulos? O PSOL
está fracassando na tentativa de se apresentar como alternativa ao PT
pela esquerda?
Paulo Passarinho:
Acredito que sim. O início da caminhada de Boulos, como candidato
à presidência, se confundiu com a campanha pela
libertação de Lula e por ela por essa campanha o
próprio Boulos se deixou confundir. Acredito que uma coisa seja a
posição crítica que qualquer democrata e socialista deva
ter em relação a uma condenação absolutamente
questionável como a que Lula recebeu, por duas vezes! - e
obedecendo a uma lógica instrumental da Justiça, com
propósitos de natureza política e eleitoral. Uma verdadeira
vergonha para um país que se pretenda civilizado.
O episódio onde o juiz Sergio Moro, nas vésperas de uma
manifestação de oposição à Dilma sendo
convocada por uma emissora concessionária pública de TV, a TV
Globo, libera uma fita de gravação telefônica, realizada
sem amparo legal, para essa própria emissora, envolvendo a conversa da
presidente da República, é um crime que não poderia
ocorrer, sem uma gravíssima punição a Moro. O fato de
praticamente nada ter acontecido contra o irresponsável magistrado,
mostra os absurdos de uma Justiça que se encontra aparelhada.
Contudo, a posição de Boulos foi muito além de uma mera
posição de repúdio a essa pseudo-Justiça. Em
vários momentos, a impressão que se tinha é que Boulos
alimentava a ingênua ilusão de ser sagrado por Lula como o seu
indicado para substituí-lo, caso ele mesmo Lula não pudesse vir a
ser candidato. Um duplo equívoco. Primeiro, pela ilusão de o
candidato a ser apoiado pelo PT poder não ser de suas próprias
fileiras. E segundo e mais grave: para vir a ser uma alternativa "pela
esquerda" ao PT, não é possível conciliar, apoiar ou
se confundir com o que é hoje o PT. A crítica substantiva
à herança lulista, à herança de uma equivocada
política de conciliação, deve ser implacável, sem
ser sectária. Além das ilusões da
conciliação, a estratégia lulista mostrou a sua
inconsequência e insustentabilidade.
Há de se desnudar toda a impostura de um suposto
"neodesenvolvimentismo" que conviveu e aprofundou a regressão
industrial do país, a desnacionalização do parque
produtivo, a fragilização do Estado e a
financeirização da economia, quatro aspectos que contrariam
qualquer pretensão genuinamente desenvolvimentista. Afora isso, tivemos
os gritantes problemas de ética desse neoPT, sem que haja até
hoje nenhum tipo de autocrítica.
Como ser admissível ou tolerante com esse tipo de desvio? E aqui
não se trata de ser moralista, udenista ou qualquer bobagem do
gênero. Quem sempre defendeu uma "nova ética na
política" e o compromisso com mudanças estruturais na
economia e na sociedade brasileira, durante duas décadas, foi o antigo
PT. Como ser leniente ou mesmo cúmplice dessas imposturas?
O PSOL, além de suas notórias diferenças internas,
terá agora, me parece, de ter de se desvincular desse tipo de
contaminação política que acaba lhe confundindo como um
partido do campo lulista. Para uma esquerda brasileira que precisa de clareza
estratégica, visão nacional dos nossos problemas e uma
tática que a faça uma autêntica representação
de luta do povo brasileiro, a crítica radical ao lulismo é
fundamental.
Correio da Cidadania: O que o próximo governo, a seu ver, teria de fazer
para tirar o país da crise e oferecer perspectivas de melhorias aos
trabalhadores e à economia?
Paulo Passarinho:
Não tenho ilusões com qualquer que seja o próximo
governo. Para os trabalhadores, o que nos resta será a
resistência. Entretanto, acredito que essa resistência
deverá acumular forças para, a um só tempo, derrotar a
herança nefasta das "contrareformas" de Temer e todo aquele
arcabouço que nos governa, desde os anos 1990.
Correio da Cidadania: O que vislumbra para o Brasil e seu projeto de democracia
nos próximos momentos?
Paulo Passarinho:
Muita tensão, muita instabilidade e, tomara, muitas lutas de
resistência popular. Contudo, acredito que precisemos pensar uma
estratégia de longo prazo para as lutas populares.
O Estado brasileiro precisaria estar à frente de um processo de
reconstrução nacional, voltado para a superação da
dependência econômica e do nosso consequente subdesenvolvimento. A
ideia do desenvolvimentismo genuíno
industrialização acelerada, sob o controle de empresas nacionais,
induzida pela ação do Estado e guarnecido por um sistema
financeiro imune às vulnerabilidades externas seria um objetivo
adequado, sob o ponto de vista econômico, para o início de um
processo de independência real do país e a afirmação
de nossa soberania.
Entretanto, em nossa história, jamais tivemos a oportunidade de
experimentar um processo dessa natureza. Nossas classes dominantes nunca
tiveram interesse em um projeto desse tipo. Com a brutal
internacionalização de nossa economia, com a
inserção subalterna que temos hoje no jogo global, e com o atual
controle dos bancos e multinacionais sobre as decisões do Estado
brasileiro, é uma possibilidade hoje totalmente inviável.
Somente um novo bloco histórico de forças, constituído
especialmente a partir das lutas e da organização das classes
trabalhadoras, poderá viabilizar tais transformações.
Essa, eu espero, será uma tarefa a ser cultivada, construída, a
partir da própria esquerda que sobreviveu e sobrevive à
capitulação do PT como um instrumento de libertação
do nosso povo.
Chego a pensar que o futuro da democracia no Brasil dependerá da
capacidade dessa esquerda superar a suas ilusões, o seu apegado recurso
ao doutrinarismo ideológico ou ao mero oportunismo eleitoral, e
reencontrar um caminho próprio de construção de uma
estratégia que seja, ao mesmo tempo, nacionalista, revolucionária
e popular.
05/Outubro/2018
[*]
Economista
O original encontra-se em
www.correiocidadania.com.br/...
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
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