O mito do Estado como "indutor do desenvolvimento"
por Demetrio Cherobini
[*]
Um grande e poderoso
mito
tem sido vendido à sociedade brasileira nos últimos anos, com
conseqüências danosas especialmente para as classes trabalhadoras no
que tange à sua capacidade de mobilização para o
enfrentamento e a superação do inimigo que, hoje,
desgraçadamente, ameaça faze-la sucumbir de maneira definitiva: o
sistema do capital
como controlador destrutivo e perdulário dos processos que regulam o
metabolismo social humano, a relação dos seres humanos entre si e
o intercâmbio destes com a natureza.
Este mito tem uma aparência multifacetada e faz uso de um discurso
deveras ardiloso: vende, em primeiro lugar, a idéia de que o Estado
é o "indutor do desenvolvimento", sem maiores
preocupações em fundamentar teoricamente sobre como se dá
tal "indução" e quem é o verdadeiro
responsável e principal beneficiário pela mesma.
[1]
Em segundo lugar, se esquece, sorrateiramente, de explicar qual é a
essência desse "desenvolvimento", sobre que conjunto
específico de relações sociais ele se assenta, quais as
suas raízes e as suas conseqüências últimas. Terceiro:
propaga a crença de que existe hoje um certo
partido político
com capacidades semelhantes às de um sujeito titânico, que se
assenhoreia da máquina pública tal como Prometeu roubando dos
deuses o fogo celeste e dando-o em seguida aos homens, para que estes, assim,
se tornem os senhores supremos da animalidade capitalista. Em quarto lugar,
finalmente: generaliza, entre a consciência dos mais humildes, a
concepção de que os parcos direitos de que dispõem
não são obra de sua própria ação, realizada
com organização e luta, mas lhes foram concedidos de cima, de
forma gratuita, generosa, desinteressada e benevolente, pelas mãos dos
grandes pais e mães dos pobres que freqüentam esse partido, o
presidente Fulano, o governador Beltrano e o deputado Sicrano, que labutam
arduamente todos os dias para que os trabalhadores não precisem se
preocupar com nada e possam, de modo tranqüilo e descansado, gozar
privadamente as dádivas inocentes e inofensivas do consumo em massa.
Não devemos, contudo, nos deixar enganar a respeito dessa mitologia
caricata:
não é,
de fato, o Estado o verdadeiro responsável pela
"indução do desenvolvimento", e sim
o próprio capital.
Quem demonstra isso de forma cabal é István
Mészáros em seu clássico
Para além do capital: rumo a uma teoria da transição
. De acordo com as palavras do filósofo (2002., 107):
"Em sua modalidade histórica específica, o Estado moderno
passa a existir, acima de tudo, para poder exercer o
controle abrangente
sobre as
forças centrífugas insubmissas que emanam de unidades produtivas
isoladas do capital
[grifo nosso], um sistema reprodutivo social antagonicamente estruturado.
[
] Tomando o lugar do princípio que regia o sistema reprodutivo
feudal, passa a existir um novo tipo de microcosmo socioeconômico,
caracterizado por grande mobilidade e dinamismo [ou seja, as unidades
produtivas do capital]. Contudo, a eficácia desse dinamismo depende de
um 'pacto faustiano com o diabo', sem nenhuma garantia de que no momento devido
apareça algum deus salvador para derrotar Mefistófeles, quando
este vier a reclamar o preço acertado. O Estado moderno constitui a
única estrutura corretiva compatível com os parâmetros
estruturais do capital como modo de controle sociometabólico. Sua
função é retificar deve-se enfatizar mais uma vez:
apenas até onde a necessária ação corretiva puder
se ajustar aos últimos limites sociometabólicos do capital
a falta de unidade [entre a
produção
e seu
controle,
a
produção
e o
consumo
e a
produção
e a
circulação
]."
[2]
Ou seja, segundo Mészáros, o capital é um sistema de
mediações de segunda ordem,
essencialmente antagônico e, em nossos dias, profundamente destrutivo.
Ele se afirma sobre as
mediações de primeira ordem
da
atividade produtiva
(ou, se se preferir, do
trabalho
). Para se perpetuar enquanto tal, o sistema do capital precisa necessariamente
explorar e acumular trabalho excedente
, e
se expandir,
evidentemente, para poder reproduzir esta sua própria dinâmica.
Nesse processo, automático e ininterrupto, os "microcosmos" do
sistema (isto é, suas unidades produtivas) são reféns,
muitas vezes, de "forças centrifugas" (ou seja, eles entram
"em conflito ou oposição" consigo mesmos: perdem, pois,
a sua
coesão
), e requerem, para a sua
momentânea harmonização,
a ação de um determinado corretivo.
Ora, o elemento que promove
a retificação
dos "microcosmos antagonicamente estruturados" do sistema do capital
é, justamente,
o Estado.
É nesse sentido que o Estado moderno compõe uma "estrutura
de comando fundamental e
sui generis
" (ibid., 120) dentro da ordem de reprodução
sociometabólica vigente. Por isso mesmo, tal instituição
pertence à "materialidade do sistema do capital" (ibid., 121),
visto que corporifica a
dimensão coesiva
das suas exigências estruturais orientadas para a expansão,
acumulação e extração do trabalho excedente. Diz
Mészáros: "É isto que caracteriza todas as formas
conhecidas do Estado que se articulam na estrutura da ordem
sociometabólica do capital" (ibid., 121). O Estado não
está, portanto, além ou à parte dessa estrutura material
mais ampla que é o capital. Ele constitui um dos seus elementos
fundamentais e participa ativamente no
deslocamento das contradições
inerentes a esse sistema.
O autor de
Para além do capital
afirma, então, que é equivocado considerar o Estado como uma
superestrutura
que se ergue sobre um conjunto determinado de forças e
relações de produção. Ao contrário, ele deve
ser entendido como momento constituinte da própria
base
do sistema. A "base material do capital" consiste, pois, num
complexo de mediações
que controlam a reprodução sociometabólica humana
o intercâmbio dos homens entre si e com a natureza -, sendo o Estado,
dentro dessa dinâmica, um dos elementos mais importantes. O Estado
é, pois,
a estrutura de comando político que o sistema usa para dar coesão
aos seus microcosmos,
nos momentos em que estes entram em antagonismo e ameaçam comprometer
a viabilidade do complexo total. O Estado desloca esses antagonismos e
"harmoniza", momentaneamente, a processualidade expansiva do capital.
[3]
É correto, portanto, dizer que
o capital, para extrair trabalho excedente, usa o Estado.
No sistema de "capitalismo privado", esta mediação
específica tem como tarefa precípua
facilitar
a exploração do trabalho excedente que "se desdobra
espontaneamente". Isto é, assim, algo bastante diferente da
idéia de que o Estado controla "de fora" o capital, que
é a que se tenta veicular ao se divulgar e ideologia da
"indução do desenvolvimento".
Desmistificada, dessa maneira,
tal concepção, resta ainda uma reflexão a ser feita: qual
o papel do Estado dentro de uma práxis social e política
verdadeiramente alternativa, revolucionária? Devem os socialistas, uma
vez tomada ciência desse fato, virar meramente as costas para o Estado e
deixar de lado a luta que se dá
no interior
dessa instância específica? De forma alguma, diz o
filósofo húngaro. É preciso, aqui, saber coadunar a
formação das
mediações extraparlamentares
com uma prática de reestruturação radical da
instituição estatal. Como isso deve se dar?
Para Mészáros, a
forma da atividade revolucionária necessita ser radicalmente
crítica,
isto é, ser capaz de articular
negação
e
afirmação
com vistas a atingir a "transcendência positiva da
auto-alienação do trabalho". A conjugação de
negação e afirmação é que vai definir a
proposta da
ofensiva socialista
do filósofo húngaro. No plano da práxis crítica
radical, a
negação
consiste neste ponto específico da sua teoria política
na atuação que se dá
ainda no âmbito do Estado
. Aqui, pois,
negação
é sinônimo de
defensiva.
A defensiva
não deve ser desprezada
para os objetivos político-sociais emancipatórios dos
trabalhadores. O grande problema, no entender de Mészáros,
não é o de se levar a cabo atividades defensivas por
exemplo, lutar no interior do parlamento pela manutenção de
direitos conquistados historicamente , mas o de
somente
se estabelecer na prática tais ações.
Isto porque elas devem ser
complementadas
pela
formação de mediações que estejam além do
Estado,
que sejam, como diz o filósofo,
extraparlamentares.
A
ofensiva socialista
é esta conjugação de ação negativa e
afirmativa, de práxis que se dá
também no plano do Estado
, mas que ocorre
fundamentalmente fora dele,
a fim de se levar a efeito a formação das devidas
mediações materiais que conduzirão os trabalhadores rumo
à "nova forma histórica", a comunidade humana
emancipada.
Em síntese: a proposta
de transição ao socialismo de Mészáros é
esta que, no seu
movimento ofensivo
de formação das referidas mediações
extraparlamentares de atuação sócio-política
,
engloba
a práxis
defensiva
que se desenrola no plano do Estado e, evidentemente, a transcende.
É por isso que o filósofo húngaro afirma que nossa tarefa
é "simultaneamente 'negar' o Estado e atuar no seu interior"
(ibid., 597). Todos esses imperativos devem ser conduzidos na
direção de uma
progressiva distribuição do poder de decisão
aos "produtores livremente associados", para que estes, cada vez
mais, se co-responsabilizem pela regulação consciente dos
processos sociometabólicos a partir de uma forma
horizontal
superando, assim, a divisão
hierárquica
do trabalho conformada pelo capital e promovam progressivamente o
fenecimento do Estado
que deve se tornar obsoleto.
Desse modo, o movimento de
transformação socialista, que deve abarcar todos os aspectos
constitutivos da inter-relação entre capital, trabalho e Estado,
é concebido como um modo de
reestruturação completa e radical das mediações
materiais herdadas
. A formação dessas novas mediações, na
visão de Mészáros, não significa
gradualismo
ou
reformismo,
o que seria uma contradição em termos. O capital não
pode ser controlado, não compartilha poder, não pode ser
reformado. É ele que controla o sociometabolismo humano e usa as
mediações que conformam seu sistema de acordo com os imperativos
de expansão, acumulação e exploração do
trabalho excedente. Nesse contexto, a única alternativa viável
é a
superação
dessa ordem, e não a tentativa de fazê-la submissa a algum tipo
de "rédea".
O projeto
político-social que Mészáros propõe para a
transição ao socialismo exige, pois, atuar em ambas as frentes,
no interior do Estado e fora dele. Envolve, necessariamente, o momento
negativo atuação
defensiva
que pode se dar no interior do parlamento, etc, mas que deve buscar aí
ser já
afirmativa,
por meio da reestruturação completa de tais
mediações, no objetivo de promover a democracia substantiva
, mas vai
além dele,
isto é, dirige-se para a
ofensiva,
para a criação de mediações materiais
extraparlamentares
capazes de regular conscientemente o metabolismo social.
Saudemos, pois, essas
idéias radicais e estimulantes. E quando os mistificadores de
plantão que só combatem o "governo FHC" e o
"neoliberalismo", mas esquecem completamente de criticar seu
fundamento,
o capital
vierem tentar nos convencer a dar um voto de confiança para suas
propostas reformistas e de conciliação entre as classes,
estaremos amparados pela boa e velha
arma da crítica
marxista, que deveremos fazer se transformar, com o passar do tempo, em
crítica das armas.
Notas:
1.
A verborragia sobre o "choque de liquidez", a
"ampliação dos investimentos públicos", a
"desoneração dos investimentos privados", a
"proteção social aos mais vulneráveis", etc,
não passa, nesse contexto, de pura falácia, porque não vai
às raízes do processo que determina o desenvolvimento em
questão: a relação entre capital, trabalho e Estado.
2.
Mészáros afirma que, nessas três situações,
ocorre uma ausência de unidade (ou uma
fragmentação
) que leva frequentemente à formação de
antagonismos sociais
. É com a finalidade de corrigir essa ausência de unidade e evitar
tais antagonismos que age o Estado moderno. Ele é, de fato, a
"única estrutura" corretiva capaz de realizar tal tarefa.
3.
Mas é equivocado pensar que a relação entre capital e
Estado é perfeitamente harmoniosa. Na verdade, apresenta tremendas
contradições em seu âmago. Um exemplo dado por
Mészáros sobre a "dissonância" entre capital e
Estado reside no fato dos
capitais nacionais
que, muitas vezes, entrelaçados
aos seus respectivos Estados nacionais,
entram em conflito com
outros
Estados nacionais e seus capitais nativos. O capital "global", nesse
movimento, tende a se integrar, ao passo que é incapaz de, nesse mesmo
movimento, alcançar uma forma política estatal global, fato que
por si só constitui uma grande e explosiva
contradição.
Referência:
MÉSZÁROS, István.
Para além do capital: rumo a uma teoria da transição.
São Paulo: Boitempo, 2002.
[*]
Cientista social, mestre em Educação (Universidade Federal de
Santa Catarina Brasil).
Este artigo encontra-se em
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