"O bolsonarismo é o neofascismo adaptado ao Brasil do
século 21"
por Manuel Loff
entrevistado por Ricardo Viel
Manuel Loff tinha nove anos quando um grupo de capitães e soldados
portugueses, cansados de serem mandados à África para uma guerra
sanguinária contra os movimentos de libertação das
colônias, derrubou uma ditadura que já durava 41 anos a
mais longeva da Europa. A lembrança mais viva que tem daquele dia 25 de
abril de 1974, quando a Revolução dos Cravos colocou fim ao
regime salazarista (fundado por António de Oliveira Salazar), é
do irmão, que tinha 14 anos, bêbado, a gritar: "Já
não vou para a guerra!".
Há pouco tempo uma amiga de infância fez Loff recordar que com 10
anos ele escreveu e dirigiu uma peça de teatro para ser encenada pelos
colegas da escola. O tema era os últimos dias de Hitler no bunker.
"A mim próprio me surpreende, não sei como cheguei
até lá com essa idade", confessa. Quando era criança,
o pai lhe contava histórias sobre a Guerra Civil Espanhola. Ainda
garoto, ia a bibliotecas tomar emprestados livros sobre as Grandes Guerras e
pedia de presente de Natal obras sobre o nazismo. Hoje, aos 54 anos, é
um dos historiadores mais respeitados em Portugal quando o assunto são
regimes autoritários, em especial como o salazarismo e o franquismo.
É autor de vários livros, entre eles
O nosso século é fascista
(2008) e
Ditaduras e revoluções
(2015) nenhum deles publicado no Brasil.
Atualmente divide o seu tempo entre Portugal, onde é professor associado
do Departamento de História e Estudos Políticos e Internacionais
da Universidade do Porto e pesquisador no Instituto de História
Contemporânea da Universidade Nova de Lisboa, e Espanha, onde realiza
parte da sua investigação. É doutor pelo Instituto
Universitário Europeu, em Florença, na Itália, e colabora
com várias universidades e centros de investigação
europeus e americanos. Também escreve com frequência para jornais
e revistas portugueses. Acompanha com atenção e
preocupação o crescimento da extrema direita no mundo. Não
hesita em classificar o governo de Jair Bolsonaro como representante do
neofascismo. "O discurso que tem sobre os movimentos sociais e
políticos que se lhe opõem, sobre as mulheres, as minorias
étnicas, a família, a nação, o Ocidente configura
um neofascismo adaptado ao Brasil do século 21", resume. Leia
abaixo a entrevista.
Você estuda há mais de 30 anos os regimes autoritários.
Quando olha para a extrema direita do século passado e a de agora, quais
diferenças vê?
Em primeiro lugar, é preciso dizer que já havia extrema direita
antes do fascismo: desde o início do século 19 havia uma extrema
direita antiliberal e contrarrevolucionária, mas era muito elitista. A
extrema direita fascista, que é mais moderna, nasce a partir do fim da
Primeira Guerra Mundial como nasce a esquerda radical também.
Depois de 1945, há um primeiro ciclo da extrema direita em que, em
grande parte dos países europeus, ela, embora presente, é
ilegalizada. Por exemplo, logo a partir de 1947 na Alemanha há partidos
da extrema direita, com vários nomes, e só um deles é
ilegalizado. É a geração dos nostálgicos e daqueles
que se organizavam, em grande parte clandestinamente, para tentar salvar da
Justiça muita gente que era procurada. Portanto, a extrema direita de
1945 até 1968, mais ou menos, é de uma geração que
viveu a Segunda Guerra Mundial, viveu os regimes fascistas italiano,
alemão e os movimentos fascistas de toda a Europa. Depois há uma
segunda geração que, como evidentemente a esquerda dos anos 60,
é diferente da anterior, que aprendeu várias das
lições do passado. Por exemplo: abandonou o discurso abertamente
racista para passar a um discurso culturalista. Desde a
libertação de Auschwitz, em 1945, o racismo perdeu um enorme
espaço, embora esteja presente, não pode ser assumido. Hoje, os
racistas dizem que a sua incompatibilidade com as minorias é de natureza
cultural.
Você concorda com a ideia de que a extrema direita vem crescendo em poder
e importância desde o começo dos anos 1970 no mundo?
Bom, a derrota do nazifascismo foi uma grande derrota da cultura
política da direita e significou, mais do que em qualquer momento
político na história, uma virada à esquerda do ponto de
vista social, da cultura política e do triunfo dos valores da esquerda
em torno da democracia e de uma versão da democracia que exigia uma
certa distribuição da riqueza e bem-estar social. Tanto que a
maioria dos Estados capitalistas do Ocidente "rico", que se chamava a
si próprio desenvolvido, adotaram essas políticas de natureza
social.
E havia uma ideia de que esses direitos individuais e coletivos eram um bem
adquirido que não seriam perdidos
Evidentemente. O que vemos hoje é um ataque a toda lógica
redistributiva das políticas sociais. Estão, por exemplo, as
propostas de
flat tax,
como agora chamam na Itália, de que todos pagam rigorosamente a mesma
coisa
A primeira versão de uma extrema direita com sucesso na
Europa foi na Escandinávia: antes de atacar a imigração,
focou-se contra o Estado de bem-estar social, pelo peso dos impostos. O seu
primeiro alvo foram os mais pobres, dizendo que se estava a criar uma classe de
preguiçosos que não querem trabalhar, para depois passarem a
dizer, com mais sucesso, que os imigrantes vinham para "mamar da
teta" do Estado de bem-estar social. Obviamente, invertendo tudo,
pretendendo ignorar que qualquer comunidade de imigrante, de não
nacionais, em qualquer sociedade, é em média muito mais jovem do
que a média daquela sociedade e trabalha muito mais e ganha muito menos,
portanto contribui incomparavelmente mais para a produção de
riqueza e para a segurança social.
E qual é o momento atual da extrema direita mundial?
A partir dos anos 70 e 80, sobretudo a partir da consolidação da
tese do choque de civilizações, a extrema direita toma Israel
como vanguarda do Ocidente na luta contra o Islã e abandona o
antissemitismo, que passou a ser um componente claramente minoritário no
seu discurso. O alvo passa a ser a imigração, sobretudo se ela
é muçulmana. E isso permite juntar o Sul do mundo com uma
característica que, para a extrema direita, do ponto de vista
identitário, é central, que é a religião. Porque a
extrema direita nunca abandonou uma descrição do Ocidente branco
e cristão que colonizou o resto do mundo hoje, visto como um
Ocidente judaico-cristão herdeiro das duas religiões
monoteístas do Livro Sagrado. Isso é particularmente
visível nas Américas, particularmente nos EUA e no Brasil, por
via das novas igrejas pentecostais e evangélicas que deram uma virada de
180 graus na visão que tinham dos judeus.
Edir Macedo, para essa aproximação com Israel, mudou até
de visual, adotando barba e quipá
Essa é, portanto, uma das evoluções da extrema direita.
Ela tende a abandonar a dimensão do discurso negacionista do Holocausto,
sabe que tem que o fazer, e concentrar-se no novo inimigo, o Islã. Esse
racismo culturalista permite criar uma plataforma de convergência de
todas as sensibilidades reacionárias que descrevem a
imigração, o imigrante, como "o outro", e atrai muita
gente que não partilha, ou não partilhava, muitas outras das
bandeiras da extrema direita. E depois soma-se um outro ponto, que é
muito visível no caso latino-americano e nesse sentido o
bolsonarismo é a versão mais completa e mais despudorada da
extrema direita , que é o do discurso da ditadura cultural
marxista. Nesse ponto o bolsonarismo é mais Steve Bannon [estrategista
da campanha política de Donald Trump em 2016 e conselheiro informal da
campanha de Bolsonaro] que o próprio Trump.
Por quê?
A partir da tese de que há uma ditadura cultural marxista da esquerda, a
extrema direita, numa escala internacional, avança com a
explicação de que aquela se teria imposto através da
escola pública. O que significa que a universidade e a escola
pública seriam formadoras de esquerdistas. No fundo, com essa tese, eles
atacam todas as ciências sociais, tudo quanto dizem a sociologia, a
antropologia e a história. E no Brasil levou-se isso muito mais longe
politicamente, e com mais eficácia, com o movimento Escola Sem Partido,
cuja tese é de que todas as ciências sociais são engajadas,
militantes, e portanto nenhuma delas é objetiva. Todas elas
pretenderiam, desde há décadas, minar os fundamentos da natureza,
da comunidade, da ordem social: a família, a pátria, a
nação etc. Há ainda outra coisa que é muito
visível no discurso do Bolsonaro, e também no do Trump, que
já existia com Berlusconi, que é o papel das mulheres na
sociedade. Já nem digo o universo LGBT, o mundo gay, mas particularmente
as mulheres. É a tese de que todo feminismo é radical, todo
feminismo é uma invenção da ditadura cultural da esquerda
e o único que pretende é legitimar uma "ofensiva contra
Deus", como diria o ministro das relações exteriores do
Bolsonaro. E, segundo eles, qual é a melhor forma de se agredir a Deus,
e a ordem social e a família? Transformando o papel da mulher nas
famílias e criando novas formas de família. E a extrema direita
brasileira levou isso muito mais longe, não acho que do ponto de vista
da formulação teórica, mas com muito mais sucesso do que
noutro país.
Você defende a tese de que o mundo vive uma "transição
autoritária" desde o 11 de Setembro de 2011. E o Brasil, em que
ponto estaria nesse caminho até o fim da democracia?
O Brasil é dos casos mais avançados, porque a agenda
política do governo atual inclui um programa aberto, explícito,
de repressão e intimidação dos adversários,
ameaça de ilegalização do maior partido da
oposição, repressão sobre os movimentos sociais e
ameaça de detenção de dirigentes políticos da
oposição. E ainda que isso não se concretizasse
Bem,
o Lula está preso, o Fernando Haddad ainda não, mas houve uma
ameaça nesse sentido; Bolsonaro disse abertamente que ele deveria ser
preso e o PT, ilegalizado.
E disse que as alternativas eram exílio ou fuzilamento
Exatamente. As sociedades autoritárias não são
simplesmente aquelas em que o Estado é autoritário, mas
também a sociedade é autoritária. O que está a
acontecer é uma intimidação sobre os adversários
que vai reduzir a capacidade de manobra das oposições sociais e
da resistência social potencialmente é assim, agora falta
ver os dados da realidade.
Isso é próprio de um Estado neofascista?
Isso é próprio de um Estado em transição para o
autoritarismo que pode ou não reunir todas as características
clássicas do fascismo. Mas isso é como a democracia, eu pergunto:
os Estados em que nós vivemos são puramente democráticos?
O Estado português é puramente democrático? Eu tenho muitas
dúvidas em relação a isso. Quando falamos de regimes
fascistas e regimes democráticos, falamos de processos de
construção permanente da democracia e também do fascismo.
A transição autoritária começa quando se degrada a
democracia. E quando é que termina? Termina quando já não
há democracia. Falta agora estabelecer se já não há
democracia no Brasil.
Quem defende que o governo do Bolsonaro não é fascista diz que
é impossível que haja 50 milhões de fascistas no Brasil.
Exatamente, e era impossível que na Alemanha, em 1933, existissem 17
milhões de nazistas
Mas eu penso na frase que você escreveu num artigo recentemente: "O
regime fascista não se sustenta só com fascistas".
Nunca, em momento nenhum da história ele nasceu ou se consolidou apenas
com fascistas.
Portanto, no Brasil não há 50 e tantos milhões de
fascistas, mas há um percentual grande da população que
tolera, aceita ou não se levanta contra isso.
Claro. Todas as soluções autoritárias se sustentam mais
sobre o apoio, sobre a intimidação e o medo, ou a
indiferença, dos demais. Em todas as soluções
autoritárias há uma economia da violência, não se
exerce violência sobre todos. E normalmente, quando se exagera, quando se
perde o controle do exercício da violência, a reação
pode ser demasiado forte e pode provocar, por exemplo, uma guerra civil e a
derrota do regime opressor. A indiferença é tão central na
sustentação de um regime quanto é o nível de apoio.
É totalmente a-histórico e associal imaginar
soluções políticas, por mais totalitárias que elas
fossem, apoiadas por 100% ou 99% das pessoas. Elas só sobrevivem se
tiverem uma minoria muito escassa e sem apoio, ou sem suficiente apoio, que lhe
resista e sobre a qual se possa exercer essa repressão
"econômica". E precisa de ter um nível suficiente de
apoio, que até pode ser muito reduzido, desde que haja uma grande
maioria de indiferentes ou intimidados. Era entre estes que, durante a ditadura
em Portugal, se escutava a frase "a minha política é o
trabalho".
Você considera que o governo Bolsonaro tem características
suficientes para ser chamado de fascista ou neofascista?
O fascismo não se impõe, como disse, da noite para o dia: o
programa do governo Bolsonaro é socialmente tão
reacionário e, na sua tentativa de fundir os interesses das direitas
políticas e econômicas do Brasil, tão ambicioso que
deverá avaliar da necessidade de usar uma violência institucional,
paralegal, que está fora do alcance de qualquer governo
democrático. Se não hesitar em usá-la, a prática
será muito próxima da abordagem fascista. O discurso que tem
sobre os movimentos sociais e políticos que se lhe opõem, sobre
as mulheres, as minorias étnicas, a família, a
nação, o Ocidente configura um neofascismo adaptado ao Brasil do
século 21.
Voltando à questão do ataque aos movimentos feministas, essa
resposta abertamente machista, de um discurso de retomada de poder, é
uma das características desse novo fascismo?
Há uma evidente falocracia e um neopatriarcalismo em tudo isto. A
extrema direita raramente assume abertamente a defesa da desigualdade social e
política entre homens e mulheres: limita-se a defender o que era a
família tradicional. Muitos dos discursos que a extrema direita tem
desde 1945 são discursos que transformam o perpetrador numa
vítima. Por exemplo, os ex-combatentes de guerras ofensivas perpetradas
por vários países ocidentais em vítimas da própria
guerra; no Brasil, transformaram os militares que torturaram em vítimas
da guerrilha da esquerda, da mesma forma como nos EUA transformaram os
combatentes da Guerra do Vietnã em vítimas dos vietnamitas. A
mesma coisa é feita com os homens hoje, como se faz com o patrão
que é vítima do empregado que não trabalha e está
poderosamente defendido por um sindicato, o patrão esmagado pelo Estado
que lhe rouba os impostos. Reinventa a organização da sociedade e
inverte tudo: o homem, afinal, é que é vítima das mulheres
feministas, o empregador é vítima do empregado
E desta
forma recupera como vítimas da contemporaneidade, da
democratização das relações sociais, aqueles que
eram/são os grupos dominantes.
Se na Europa a extrema direita usa a "ameaça" da
imigração para fomentar o discurso do medo e ganhar votos, no
Brasil o demônio é o comunismo, embora eles aparentemente nem
sabem muito bem o que é e quem seja comunista.
Mas sabem porque usam o comunismo. É muito revelador no bolsonarismo,
logo desde a sua primeira versão antipetista, como recuperaram toda a
linguagem anticomunista dos anos 60 e 70. O Brasil tem dois partidos
comunistas, o velho Partidão e o PCdoB, que são comparativamente
menores em relação a outros países, e foram aliados
menores do PT no poder. Será tudo, menos razoável, dizer que
há uma "ameaça comunista" no Brasil ao
contrário do que aconteceu em Portugal, em que estiveram no poder, na
França, até na Espanha, em que em determinadas regiões
governaram. E ainda assim, eles recuperam diretamente o velho discurso
anticomunista. É, também, uma questão de memória, e
isso tem um significado particular porque eles sabem que ainda funciona.
E esse ataque às universidades também não é uma
coisa nova, verdade?
Todos os Estados autoritários atacam as universidades. Todas as
fórmulas políticas, e sobretudo quando se transformam em Estado,
querem ter os seus instrumentos de formação e de enquadramento
e as escolas e universidades são alguns deles e querem
ter, ao mesmo tempo, uma bolsa de intelectuais orgânicos que consigam
formular, com um discurso relativamente erudito e outro, mais aberto, voltado
às massas, aquilo que é a sua ideologia. Se lermos as
intervenções espontâneas do Bolsonaro, e mesmo os discursos
redigidos, aquilo é de uma grande pobreza de construção.
Pode ter um grande sucesso dizer coisas como "Brasil acima de tudo, Deus
acima de todos", é verdade, mas é pobre.
É importante, portanto, controlar o pensamento crítico nas
escolas e universidades
O que hoje a extrema direita faz atacando a universidade e a escola
pública já tem 200 anos, existe desde as revoluções
liberais no final do século 18, início do 19, quando se criam os
sistemas públicos de educação. Foi quando o Estado veio
dizer que a educação é uma tarefa do Estado e dever dos
cidadãos, retirou o monopólio da pouca educação que
havia das mãos das igrejas e entrou diretamente num campo, o da
formação moral doutrinária, que as igrejas tinham para si
próprias. Antes de as extremas direitas do século 20 atacarem a
educação pública, já a Igreja havia atacado a
educação pública no século anterior. As direitas
descreveram o Estado da forma como as igrejas sempre fizeram, acusando-o de
querer doutrinar as crianças e roubá-las das famílias
depois de as igrejas terem querido ensinar às crianças
tudo sobre a família, sobre identidade de gênero, sobre
sexualidade, ordem e obediência. Essa disputa de hegemonia através
da educação entre os Estados liberais, e depois
democráticos, e as igrejas hoje é reproduzida pela extrema
direita que acusa todas as ciências sociais, todas as humanidades de
terem uma versão abertamente ideológica. Diga-se de passagem que
isso só tem sucesso porque uma grande parte da sociedade também
pensa dessa forma. Eu vivo rodeado de gente que entende que o que disserem as
ciências tecnológicas e exatas é mais ou menos
indiscutível, mas o que diz a ciência social não é
especializado; que o que eu, um historiador, disser, ou um antropólogo
ou sociólogo, é sempre opinião.
O discurso do governo atual no Brasil é de que a formação
deve seguir uma lógica utilitária e que cursos como filosofia e
sociologia não trazem retorno para a sociedade.
Em Portugal, até o final da ditadura salazarista, não havia
sociologia, antropologia ou psicologia na universidade. Em todos esses casos
só havia curso nas escolas de formação de
funcionários coloniais. Uma visão utilitarista. Aliás, as
primeiras ciências sociais do século 19 nascem para ajudar a
dominação, para o conhecimento dos povos colonizados. Aconteceu
também no Brasil, era para conhecer os indígenas. De repente,
quando a ciência passou a ser um instrumento de
emancipação, os detentores da ordem passam a não gostar
dela e entender que ela é pecaminosa, blasfema ou, na sua versão
no século 20/21, militante. Desde Galileu foi assim. Ou seja, tudo o que
eu investigo, interpreto e concluo com uma metodologia científica da
interpretação da realidade é simplesmente um discurso que
sustenta uma ideologia.
A velha batalha fé versus ciência.
Para esta extrema direita religiosa, o que conta é o texto sagrado,
é uma descrição da natureza feita a partir do sagrado, e
que é imutável. Esse debate tem milhares de anos. E, portanto,
este ataque não é novidade nenhuma, e digamos também que
não é exclusivo da extrema direita. Mas é muito grave o
que se está passando agora: o neoliberalismo começou a reverter
uma política de investimento na educação que vinha desde
os anos 40, desde o fim da Segunda Guerra, em vários países
ocidentais, e entra no discurso de que a universidade tem que se ligar ao mundo
do trabalho que é o mundo da empresa, na verdade , de que a
universidade e a escola em geral deve mostrar o seu
caráter prático, e que portanto é um desperdício de
bens públicos formar essa gente. E pior ainda se são um
"bando de vermelhos".
O bolsonarismo é uma fórmula que pode se espalhar pela
América Latina?
Acho que tem algumas características que lhe permitiriam claramente
expandir-se. O bolsonarismo é, sobretudo, uma somatória de
nostalgia da ditadura militar, com demagogia anticorrupção e um
discurso político centrado na questão moral. Na questão
puramente moral, dois dos líderes das direitas clássicas que
subiram ao poder com o apoio da extrema direita, Silvio Berlusconi e Donald
Trump, são homens que não podem reclamar probidade alguma na sua
vida profissional tributária e familiar. Isso não impede que, em
ambos os casos, possam fazer discursos profundamente reacionários sobre
a família. Com uma "cara de pau", como vocês brasileiros
dizem, um despudor, que não tem nome. O Berlusconi fazia discurso sobre
a família depois de publicamente meter a mão nas mulheres. O
Trump é a mesma coisa. Portanto, o bolsonarismo é simplesmente o
somatório dessa nostalgia da ditadura, discurso sobre a
corrupção portanto demagogia moralista , a que se
soma depois uma ligação ao mundo evangélico. E se essas
três condições existirem em outras sociedades
latino-americanas, o bolsonarismo poderia se expandir, conseguiria se replicar.
E creio que há características muito semelhantes na direita
venezuelana, mexicana, argentina e chilena, para que isso aconteça.
Você é capaz de arriscar uma previsão para o futuro
próximo? A extrema direita ainda continuará a crescer pelo mundo
ou já chegou no teto?
Do ponto de vista estritamente eleitoral, creio que ainda não atingiu
teto na maioria dos casos. O problema, contudo, não creio ser eleitoral:
a extrema direita não chegou nunca sozinha ao poder, nem chegará
no futuro. O seu triunfo depende da capacidade de contaminar as
políticas do Estado por via das suas alianças com o resto das
direitas, que ocupam facilmente o poder, e por via dos apoios muito
substanciais que têm dentro dos grupos sociais dominantes, dentro do
próprio aparelho de Estado, sobretudo nas forças armadas e
policiais, nos serviços de informação, na própria
magistratura. O perigo para a democracia não é exterior ao Estado
e aos sistemas de representação, ele está no seu interior.
29/Julho/2019
O original encontra-se em
apublica.org/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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