por Dóris Castro e Ana Araújo
Pouca gente imaginava que a manifestação das mulheres brasileiras
no sábado passado fosse tão avassaladora. Meio milhão de
pessoas (ou bem mais?) inundaram ruas e cidades de norte a sul do país.
Nenhuma cidade importante ficou fora. Por algumas horas o Brasil ficou bonito.
Alegre, colorido, inteligente.
Com seu incisivo #EleNao as mulheres balançaram a roseira da abjeta
sociedade civil brasileira. Devolveram a política para as ruas.
Tensionaram os limites do Estado democrático brasileiro. Os efeitos
foram imediatos.
A crise voltou para as ruas. O #EleNao que contagiou a sociedade civil foi um
contundente recado político jogado na cara da protoburguesia brasileira:
não adianta ficar fazendo de conta que um novo presidente poderá
restabelecer a governabilidade deste país irremediavelmente falido.
Depois de terem aparentado, dias antes, certo desprendimento de
soluções políticas suicidas, como observado em nosso
último boletim
, as volúveis convicções da protoburguesia de Fernando
Henrique
et caterva
sofreram um giro de 180 graus. Resolveram eleger o candidato que a
revista
The Economist
definira ela mesma como a "a mais recente ameaça para a
América Latina".
Com ações incrivelmente articuladas, como uma verdadeira
quartelada, a burguesia e proprietários fundiários em peso
jogaram todas suas fichas de apoio ao #EleSim. E decidiram eleger a estranha
criatura para comandar os destinos da nação.
Acionaram propaganda super concentrada para a criatura na grande mídia,
agiram na descarada manipulação das pesquisas eleitorais Data
Folha e Ibope, renovaram emergencialmente novos ataques da ditadura do
Judiciário Aldo Moro, Supremo Tribunal Federal, etc.
O espectro da rebelião popular assustou os parasitas. Em dois dias a
franco-maçonaria burguesa mudou totalmente seus planos eleitorais. Nada
de um "Macri brasileiro". Nada de Alkmin, de Ciro, de Haddad ou
qualquer outro genérico.
Os dados de um perigoso processo foram lançados. Trata-se agora de
eleger presidente da República alguém da própria
milícia de torturadores profissionais da ordem política e social
para organizar a reação policial sobre a indefesa sociedade civil
em geral, de maneira reforçada e ideologizada ao máximo. Tudo
dentro da lei, é claro. Democraticamente. Constituição
existe para isso.
No decorrer desta última semana, com medo de mínimos sinais de
rebelião popular nas ruas, a democracia brasileira não só
definiu antecipadamente o resultado das eleições de Outubro como
mostrou melhor sua verdadeira face para sua distinta plateia de
cidadãos. Mais feia do que de costume. Com cara de "fascismo",
como caracteriza apressadamente grande parte da esquerda democrática do
país.
Mas então seria uma espécie de fascismo transgênico. Ao
contrário do fascismo natural dos integralistas "galinhas
verdes" de antigamente, seria um fascismo neoliberal, antinacional,
antiprotecionista, antissindicalista, etc. Com a cara "d'Ele", um
guardinha de esquina que está sendo promovido a presidente da
República e comandante das forças armadas nacionais.
Essa aplicação de uma cara supostamente fascistóide para a
democracia brasileira se apresenta à luz do dia no corpo de duas
impiedosas irmãs siamesas que já reinam há alguns anos na
ordem burguesa nacional violência policial na política e
"responsabilidade fiscal" na economia.
O que causa grande desconforto a essa desforme criatura é que enquanto a
burguesia faz de tudo para que as eleições de Outubro ainda
pareçam uma coisa séria, a economia nacional exaure. Enferruja.
Cronicamente inviável. E o pior, seu candidato antecipadamente eleito
pelas fajutas pesquisas eleitorais do Ibope e Datafolha diz que não
entende nada de economia!
Todas as pessoas bem informadas sabem que sem economia funcionando não
pode haver governabilidade. E os dados econômicos mais recentes
são muito elucidativos a respeito. Dados cada vez mais frágeis
para sustentar a nova ordem política que virá depois das
eleições.
Veja, por exemplo, o
relatório da produção industrial
que o IBGE publicou nesta terça (02/outubro). Queda da base
produtiva nacional pelo segundo mês seguido. Essa sequência
não acontecia desde o final de 2015. Passados oito meses de 2018, a
indústria está 1,1% abaixo do patamar de dezembro do ano passado.
Tem que crescer bastante neste último quadrimestre do ano para recuperar
aquele patamar do ano passado, quer dizer, apenas para ficar patinando no mesmo
lugar. O pior, mais uma vez, é que não há nenhum
indício para apostar que isso será conseguido.
É bom lembrar que no Brasil os capitalistas não têm a
mínima autonomia para fazer política econômica
anticíclica. Isso é só para economia dominante. Por isso a
economia patina. Por enquanto. Quando estourar o próximo choque global,
o mergulho será profundo. Mas nem estamos considerando esse choque
global nas observações deste boletim. Já temos material
abundante.
Aliás, enquanto burguesia dominada na ordem imperialista, os economistas
da "responsabilidade fiscal" são convictamente contra qualquer
política anticíclica, qualquer política econômica de
defesa da economia nacional frente as turbulências do mercado mundial.
Limitam-se a seguir a cartilha do FMI. Bovinamente. Contentam-se, como
comportados cucarachas da economia do imperialismo, com um regime capitalista
produtor predominantemente de juros e renda fundiária, incapaz de
produzir lucro, como nas economias dominantes do sistema.
Entretanto, com essa passividade política, nos próximos anos os
problemas sociais só tenderão a acumular. A níveis
insuportáveis para a governabilidade política. Neste sentido,
em
outro relatório recente do IBGE
é relatado que no trimestre de junho a agosto de 2018, havia
aproximadamente 27,5 milhões de pessoas desempregadas ou subutilizadas
no Brasil.
Dados oficiais. Tratando-se de governo Temer essas estatísticas podem
estar falseadas. Esses números podem ser muito mais elevados. De todo
modo, já são números suficientemente assombrosos para
qualquer análise política da situação.
A miséria aumenta. A fome absoluta e imediata é uma ameaça
concreta para grandes contingentes do exército industrial de reserva
brasileiro. Os capitalistas negam à população trabalhadora
o direito de participar do mercado e trocar sua força de trabalho por um
salário, por menor que seja. A fome absoluta ameaça imediatamente
quase trinta milhões de pessoas. Repita-se, são
estatísticas oficiais.
O desespero aumenta. O desemprego dos mais pobres sobe e seus salários
reais caem. A vida nas favelas, onde se amontoam multidões de
proletários é o próprio inferno na terra.
Os jovens proletários amontoados nas favelas brasileiras procuram
sobreviver do jeito que der. Fugir da polícia militar. E dos tanques do
exército. De alguma "bala perdida". Caso contrário vira
mais um número dos recordes brasileiros estampados nas
estatísticas mundiais de homicídios.
Estou aqui de passagem, sei que adiante, um dia vou morrer de susto, de bala ou
vício.
Se a fome, as doenças de todas as formas e a violência policial
é o maior problema dos trabalhadores que habitam guetos urbanos como o
Complexo do Alemão, no Rio de Janeiro, Capão Redondo, em
São Paulo, etc a segurança dos bairros capitalistas e o
"combate ao banditismo" por todos os cantos das cidades tornou-se a
grande cruzada da burguesia e demais parasitas do regime.
As cidades mais violentas do mundo estão no Brasil. Dentre as vinte mais
violentas do mundo, sete (35% do total) são brasileiras. Ganha disparado
de países vizinhos como Venezuela, Colômbia, Argentina, etc.
O número de pessoas mortas de forma violenta no Brasil é
semelhante ao de países em guerra. É o que revelam os
números do
Atlas da Violência 2018
, publicação do Instituto de Pesquisas Econômica Aplicada
(Ipea) em parceria com o Fórum Brasileiro de Segurança
Pública, divulgado em junho/2018.
Segundo o documento, 553 mil pessoas foram assassinadas no país nos
últimos 11 anos. O total de mortos é um pouco maior que o
ocorrido na Síria, país árabe que enfrenta sete anos de
conflito armado (inclusive com armas químicas de
destruição em massa, utilizadas principalmente pelos aliados de
Washington e Tel Aviv) e já contabiliza um saldo de 500 mil mortos, de
acordo com estimativa da Organização das Nações
Unidas (ONU).
Outra comparação dimensiona a explosão da repressão
armada em território nacional. Os poucos mais de 553 mil mortos
são mais da metade do número de soldados ingleses, franceses e
italianos que perderam a vida na 2ª Guerra Mundial (1945-1949).
O relatório do Atlas da Violência confirma que no ano de 2016 o
país bateu novo recorde de homicídios, com 62.517 mortes, o que
traduz em uma taxa também recorde de 30,3 mortes para cada 100 mil
habitantes 30 vezes a taxa de homicídios da Europa.
Em 2007 essa taxa nacional era de 25,5.
Em 2013 pulou para 28,6.
Em 2016 já alcançava 30,3.
Mas isso não é tudo. O que mais comprova atualmente a enorme
fratura política e social no Brasil é que as vítimas mais
afetadas pelos homicídios no país é a juventude perdida no
turbilhão desta ordem estatal de repressão armada.
Segundo o Atlas da Violência, entre as vítimas, os mais afetados
são os jovens entre 15 e 29 anos. De 2006 a 2016, aproximadamente
324.967 pessoas dessa faixa etária morreram de forma violenta.
Fazendo outra pertinente comparação com outros históricos
conflitos armados, o número é quase sete vezes o total de 47.434
soldados estadunidenses mortos em ação em 20 anos da Guerra do
Vietnã (1955-1975).
A inimaginável taxa de homicídios da população
jovem (65,5 mortos por 100 mil habitantes) também é o dobro da
média nacional e mais de seis vezes a taxa média mundial de
homicídios de jovens (10,4), segundo a Organização Mundial
da Saúde.
Estou aqui de passagem, sei que adiante, um dia vou morrer de susto, de bala ou
vício.
As taxas dessa carnificina capitalista no Brasil não param de crescer.
De maneira inversamente proporcional àquela queda da
produção da economia nacional e aumento do desemprego e
subutilização da classe trabalhadora, como observado pelos
números dos relatórios do IBGE acima destacados.
Discorremos longamente sobre essas tenebrosas relações porque
isso tem que necessariamente ser levado em conta em qualquer
avaliação política do que vem pela frente na luta de
classes no Brasil. Quer dizer, o problema político insuperável da
burguesia brasileira é que ela não é capaz de resolver
esse grave encadeamento de estagnação da economia, de um lado,
explosão do desemprego dos trabalhadores, de outro, e, fechando o
triangulo da morte, a matança generalizada executada pelas forças
armadas do capital sobre a classe proletária espalhada por todo o
território nacional.
Essa é a base material que comanda os acontecimentos políticos
nacionais, incluindo as eleições gerais marcadas para este
domingo (7).
A governabilidade no fio da navalha. Qualquer movimento de rebeldia mais
incisivo da sociedade civil brasileira sobre esta base material putrefata do
Estado nacional, que ilustramos com alguns poucos dados, causa grandes e
incontornáveis transtornos para as classes proprietárias.
A democracia brasileira não tem mais suficiente elasticidade para
suportar qualquer manifestação de rua da sociedade civil. Foi o
que ficou demonstrado uma semana antes das eleições deste
mês de outubro com a poderosa manifestação das mulheres
brasileiras. Um criativo abalo na fragilíssima paz dos cemitérios
da política nacional. Uma ameaça à segurança
nacional!
A burguesia foi obrigada a se mexer. E o fez tirando em definitivo sua
máscara de abstrata imparcialidade democrática e mostrando sua
verdadeira cara policial. Os dados foram lançados. Abriu-se (ou
consolidou-se) uma nova etapa na luta de classes no país, com
características institucionais absolutamente novas.
A decisão do conjunto das classes parasitas brasileiras de eleger
Boçalnaro presidente da República e torná-lo seu novo
dirigente com a missão precípua de aprofundar a violência
policial na política e a "responsabilidade fiscal" na economia
vai intensificar simultaneamente a luta de classes e a ingovernabilidade dessas
mesmas classes proprietárias e de grandes fortunas.
Esta reveladora decisão dos parasitas da ordem e do progresso de
aumentar a militarização da violência política
(estatal) e aprofundar a carnificina social, os homicídios sobre o
proletariado, é antes de tudo a demonstração da sua enorme
fragilidade política atual.
Os parasitas de todas as plumagens infringiram inadvertidamente uma antiga
regra de poder político teorizada brilhantemente pelo
Grand Empereur
e que ficou definitiva na ciência politica em geral: nenhum soberano
pode se manter em equilíbrio por muito tempo sentando-se só na
ponta do fuzil.
Hic Rhodus, hic salta.
05/Outubro/2018
O original encontra-se em
criticadaeconomia.com.br/eleicoes-brasileiras-de-susto-de-bala-ou-vicio/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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