Brasil: uma classe dominante truculenta, reacionária e entreguista
Antes de tudo, é necessário enfatizar que não existe
classe dominante boazinha em nenhuma parte do mundo capitalista. Todas elas
buscam a maximização dos lucros e o controle do poder
político na sociedade para exercer o seu domínio. Também
não têm escrúpulos: quando seu poder está em jogo,
não hesitam em se utilizar de qualquer meio, método, ilegalidade
ou brutalidade para manter o controle social e político. Não
podemos esquecer que a "esclarecida" burguesia alemã recorreu
ao nazismo para restabelecer plenamente a dominação, da mesma
forma que as burguesias italianas e japonesas recorreram ao fascismo para se
manterem no poder e disciplinar os trabalhadores.
Na América Latina também é bom lembrar que as burguesias
da região apoiaram Somoza, Pinochet, Videla e a ditadura brasileira,
além das torturas, assassinatos e desaparecimento de presos
políticos. Portanto, o parâmetro que define o comportamento das
classes dominantes em qualquer momento e em qualquer país é a
correlação de forças na disputa política e a luta
de classes. A organização revolucionária que não
compreender essa dinâmica e realizar alianças com o inimigo,
pagará um preço muito alto por suas ilusões de classe.
Essa tem sido a história e a tragédia dos partidos e
organizações que optaram por esse caminho.
Mas as classes dominantes brasileiras têm uma singularidade que as torna
mais truculentas, preconceituosas e autoritárias que as outras:
são filhas legítimas da Casa Grande e do desrespeito permanente
aos trabalhadores ao longo de nossa história. Esse fenômeno
é resultado de um histórico de dominação e
impunidade que vem desde os tempos da colônia, com a escravidão.
Os mais de 300 anos de trabalho escravo no Brasil (foi o último
país a abolir a escravatura) deixaram marcas profundas na sociedade
brasileira e, especialmente, nas classes dominantes.
Nenhuma sociedade passa impune diante de mais de três séculos de
escravidão, nos quais os africanos e seus descendentes foram tratados
como sub-raça. Como eram propriedade dos senhores de engenhos e donos
das terras, trabalhavam e viviam nas mais terríveis
condições: eram humilhados, torturados ou assassinados se
contrariassem as ordens dos proprietários. Os senhores de engenho e das
terras eram donos da vida e da morte de cada um dos africanos escravizados.
Até os bichos de estimação das fazendas e engenhos tinham
tratamento melhor que os escravos.
Essa tradição autoritária alimenta o imaginário das
classes dominantes brasileiras, fato que se consolida através dos tempos
com a permanente impunidade dos ricos e poderosos que detêm o poder no
Brasil. Além disso, o país não realizou uma
revolução burguesa clássica, sua
industrialização ocorreu muito tardiamente, e o desenvolvimento
econômico e social foi estruturado a partir dos interesses e
padrões dos países centrais e de uma elite
recém-saída do período escravocrata. A isso se acrescenta
um processo de reprodução do capital típico de uma
burguesia subordinada que realiza permanentemente a
superexploração do trabalho. Mesmo em pleno século XXI, a
classe dominante brasileira ainda se comporta de maneira semelhante aos velhos
senhores escravocratas, evidentemente com modos mais refinados de mandonismo.
Para consolidar essa tradição, as classes dominantes realizam um
permanente trabalho de manipulação ideológica junto
à população, através de seus aparatos da
superestrutura, especialmente o monopólio das
comunicações, de forma a que a grande maioria da
população e, especialmente os trabalhadores, a juventude e o povo
pobre das periferias não consigam perceber claramente o processo de
exploração, mandonismo e rapina das classes dominantes, bem como
a maneira predatória com que se apossam dos recursos do fundo
público, da riqueza produzida por todos e como se subordinam de maneira
servil aos interesses do capital internacional.
Na crise, a burguesia mostra a sua cara
Essas reflexões introdutórias estão ligadas ao fato de que
a crise brasileira está sendo mais uma vez pedagógica no sentido
de compreendermos o papel das classes dominantes brasileiras e, principalmente,
da chamada burguesia nacional. Em nosso país estamos vivendo aquele
intervalo gramsciniano
em que um ciclo está morrendo e outro está nascendo, mas ainda
não se consolidou. Justamente nesse intervalo aparecem os monstros,
expressos nas manifestações mais bizarras e nos comportamentos
políticos mais desvairados. Como as crises são momentos da
verdade para todas as classes, a crise brasileira também está
servindo para que as classes dominantes mostrem sua verdadeira face.
No Brasil, essas classes dominantes sempre procuraram dissimular suas
intenções e objetivos das mais variadas formas. Até muito
recentemente todos se envergonhavam de serem considerados de direita. Eram
raras as manifestações típicas de extrema direita. Todos
preferiam parecer de centro ou mesmo partidários da democracia. Por
isso, o partido de Maluf se chama
Partido Progressista,
o das oligarquias regionais é denominado
Democratas,
o da direita neoliberal se chama
Social-Democrata
e assim por diante.
No entanto, o agravamento da crise está fazendo a burguesia mostrar-se
sem máscaras. Muitos setores burgueses já não têm
mais vergonha de se declarar publicamente de direita, outros setores
estão flertando abertamente com o fascismo. Suas ações se
tornam cada vez mais ousadas. Essa nova cara da extrema direita burguesa
explica a campanha pela volta da ditadura militar, o ódio contra
minorias e os pobres em geral, a criminalização dos movimentos
sociais, a agenda aberta contra os direitos e garantias dos trabalhadores, o
assassinato dos sem terra, a justificativa das mortes da juventude pobre e
preta da periferia, a campanha contra a esquerda em geral.
Já não conseguem se utilizar do tema da corrupção
para levar centenas de milhares às ruas como há dois anos, mas
mantêm uma luta ideológica e uma ação
política permanente em todas as áreas, inclusive nas redes
digitais, onde advogam abertamente a publicação de
fake news
como método de propaganda. É só lembrar que, durante a
greve dos caminhoneiros, um movimento justo contra a política de
preços da administração ultraliberal do ex-presidente da
Petrobrás, a direita procurou de todas as formas transformar o movimento
numa manifestação pela intervenção dos militares na
vida do país. Além do fato de que o principal monopólio
das comunicações, as organizações Globo, manipulam
diariamente os acontecimentos e envenenam a população com os
valores conservadores.
Os ingênuos ou desatentos a uma leitura mais rigorosa da realidade podem
dizer que esses setores são minoritários, que não
representam o conjunto da burguesia. Isso pode até ser verdade nesse
momento, afinal em todas as classes sempre há setores mais radicais e
outros mais moderados em determinado momento da conjuntura. Mas não se
pode desconhecer que está se verificando uma mudança de qualidade
no entendimento da burguesia sobre as saídas para a crise. À
medida que a crise se agrava, fruto do fracasso e desmoralização
do golpe, da estagnação da economia, da continuidade do
desemprego, à medida que a burguesia não encontra um candidato
que a unifique, então cada vez mais setores amplos dessas classes
dominantes estão se voltando para a candidatura de Bolsonaro.
Não se trata ainda de um acordo formal, mas os recentes episódios
dos seminários promovidos por empresários industriais e da
área financeira com os candidatos e os aplausos às propostas do
candidato da extrema direita deve chamar a atenção de todos. Vale
lembrar ainda que em 1989 a burguesia não estava conseguindo se unificar
em torno dos candidatos tradicionais e foi buscar um desconhecido senador
alagoano (Collor) para derrotar Lula. Deu no que deu. Não será
surpresa que, diante das dificuldades e da falta de unidade, a burguesia
faça qualquer tipo de opção para manter seus
privilégios, inclusive apoiando Bolsonaro.
Ao lixo com os escrúpulos
O que ocorreu nesses seminários empresariais? Na reunião com
cerca de dois mil empresários, na Confederação Nacional da
Indústria, Bolsonaro foi aplaudido pelo menos seis vezes durante sua
explanação, quando defendeu que vai colocar generais nos
ministérios, que a mídia deve parar de ver os empresários
como bandidos e que "os trabalhadores têm que decidir entre ter
menos direitos e emprego para todos, ou todos os direitos e nenhum
emprego". E continuou: "tem que fazer valer a vontade dos
senhores", referindo-se aos empresários.
Bolsonaro se comprometeu ainda a continuar as reformas realizadas por Temer e
ampliar as privatizações, uma agenda que lhe é ensinada
pelo seu assessor econômico, Paulo Guedes, um ultraliberal e privatista
ensandecido. A "civilizada" "burguesia nacional" aplaudiu
Bolsonaro quando este falou contra a "ideologia de gênero" ou
ainda quando fez piadinhas tais como: "Hoje estão tirando a nossa
alegria de viver. Não se pode mais contar piadas sobre afrodescendentes,
cearenses ou goianos". A radicalização da burguesia
está se consolidando ao ponto em que um dos candidatos que também
participou do seminário foi vaiado porque disse que iria rever a reforma
trabalhista.
Mas não é só a burguesia dita produtiva que está
flertando com Bolsonaro. Os sofisticados banqueiros, investidores e gestores do
mercado financeiro, em evento fechado para a imprensa, promovido pelo Banco
Pactual
(19o. CEO Conference),
com a presença de 2.500 deles, também aplaudiram de pé
as propostas neoliberais e conservadoras do candidato, principalmente quando
ele disse que metralharia a favela da Rocinha para resolver o problema da
segurança. "Mandaria um helicóptero derramar milhares de
folhetos na favela e daria um prazo de seis horas para os bandidos se
entregarem. Encerrado o tempo, metralharia a Rocinha", no que foi
aplaudido pela entusiasmada plateia. Mais ainda: teve que permanecer mais meia
hora no recinto porque as doidivanas do mercado financeiro queriam tirar
selfies
com o candidato fascista.
Para quem imaginava uma burguesia limpinha e cheirosa ou estava com planos de
alianças em nome da unidade nacional, esta é uma realidade
constrangedora. Se até o último dia para o registro eleitoral a
burguesia não conseguir encontrar um candidato menos boçal e
troglodita, jogará seus escrúpulos na lata do lixo e
entrará com malas e bagagem para o comboio do candidato da extrema
direita. Não importa se Bolsonaro faz homenagem a um torturador como
Brilhante Ustra, se é racista, misógino, preconceituoso ou contra
os direitos humanos e das mulheres. Falam mais altos seus interesses
econômicos e o controle político da máquina governamental,
como aconteceu em 1964 e ao longo da ditadura. Para os órfãos da
burguesia nacional, esse é um momento muito difícil.
Constatar as opções da burguesia num momento de grave crise
é saudável e pedagógico para as forças
revolucionárias. No entanto, depois dessa constatação
ainda querer realizar alianças com esses setores dominantes aí
já é masoquismo. Até porque as classes dominantes
brasileiras historicamente sempre estiveram perfiladas com o que há de
mais atrasado e reacionário na história brasileira desde o
período colonial. Ninguém que queira realizar as
transformações em nosso país tem mais o direito de errar
diante de uma questão objetiva como esta. O exemplo recente da
experiência do PT e suas alianças com o grande capital e as
oligarquias regionais foi bastante dramático para não se cometer
o mesmo erro novamente.
Construir o campo popular
Numa sociedade como a brasileira (o país é a oitava economia do
mundo), com um capitalismo maduro, as classes sociais devidamente
constituídas, a ordem institucional burguesa funcionando de acordo com
os interesses dos de cima, não há espaço para
alianças com a burguesia ou as oligarquias em geral para se realizar
qualquer mudança. Pelo contrário, essas alianças já
foram derrotadas no passado e agora significam o cemitério para as
forças que continuarem insistindo nesse erro. O mais grave disso
é o fato de que uma parcela muito expressiva de forças de
esquerda continua insistindo nessa estratégia como se nada tivesse
acontecido no passado recente.
Os exemplos do apoio ao discurso de Bolsonaro no seminário da
Confederação da Indústria e no dos engravatados do mercado
financeiro é um sinal muito forte do caráter da burguesia
brasileira, tanto a chamada burguesia produtiva quanto a financeira. Essa
conversa fiada de ficar separando o capital produtivo e financeiro no Brasil
é outro sofisma para justificar o injustificável. O capital
produtivo brasileiro ganha também muito dinheiro no mercado financeiro.
Tem departamentos especializados para aplicar em títulos e no mercado
futuro. Uma parcela expressiva dos seus lucros vem exatamente da
especulação financeira. Portanto, as contradições
entre capital produtivo e financeiro são apenas pontuais: em
essência, todos são truculentos, autoritários e
entreguistas.
As reuniões recentes de Bolsonaro com os principais executivos da
área produtiva e financeira são uma demonstração
cristalina de que não se deve esperar desses setores nenhuma
ação no sentido de qualquer mudança no país. Pelo
contrário, a burguesia brasileira está aliada até o tutano
com as forças do capital internacional. São os principais
inimigos do povo brasileiro, especialmente dos trabalhadores, da juventude e do
povo pobre das periferias. Não tem nenhum papel a cumprir em qualquer
processo de mudanças. Estarão sempre ao lado das causas mais
reacionárias, conservadoras e entreguistas da sociedade brasileira.
Estão entregando agora o Pré-Sal, a Embraer, colocando veneno na
mesa da população. Realizaram o ajuste fiscal por 20 anos, a
reforma trabalhista, a lei das terceirizações e por pouco
não conseguiram aprovar a reforma da previdência. Portanto,
qualquer aliança com esses setores será mais uma tragédia
para quem continuar optando por esse caminho.
Para quem quer realizar as transformações no Brasil, a
política de alianças deve ter como centro o campo popular (o
conjunto dos assalariados, suas famílias e aliados em
contradições com o grande capital nacional e internacional), que
não só representa a grande maioria da população
brasileira, mas também é o único campo capaz de aglutinar
e construir um programa que seja capaz de contemplar os interesses desta
maioria e colocá-la em movimento pelas transformações
sociais. Essa é a nossa tarefa agora: construir a frente política
e social classista e transformar a grande insatisfação que existe
na sociedade contra as classes dominantes, contra a corrupção e
as precárias condições de vida de nosso povo em movimento
organizado pelas grandes mudanças, sob a direção do campo
popular.
9/Julho/2018
[*]
Secretário-geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
O original encontra-se em
pcb.org.br/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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