A vertigem democrática
O filme de Petra Costa,
Democracia em vertigem,
tem repercutido muito dentro e fora da esquerda. Os elogios superam em muito
as críticas. Não é para menos. O filme é, ao mesmo
tempo, uma bela obra cinematográfica e um relato honesto da crise que o
Brasil vive. Ainda que algumas críticas possam parecer corretas a
ausência de qualquer menção à escalada de
violência política que vitimou Marielle Franco ou à
frágil conexão entre crise política e crise
econômica a verdade é que
Democracia em vertigem
descreve muito bem a gravidade do momento que vivemos e nos faz pensar
sobre como, em poucos meses, o que parecia tão sólido pode se
desmanchar no ar.
O relato de
Democracia em vertigem
concentra-se na crise da democracia brasileira. Essa é, sem
dúvida, a face mais visível da crise que todo o arranjo
institucional criado com o fim da Ditadura Militar enfrenta hoje. É a
Assembleia Constituinte de 1988 que consolida as bases da chamada Nova
República. Mas essa República não é tão nova
assim. Ela traz consigo séculos de dominação e
violência impostas por uma elite disposta a atacar os "de
baixo" sempre que seus interesses estejam ameaçados. Foi assim com
as revoltas do período regencial, com a proclamação da
República, com o Estado Novo e com o golpe militar de 1964. Nossas
elites têm, em seu DNA, a subserviência às potências
estrangeiras e uma constante disposição de recorrer à
violência contra o povo.
Por isso as transições históricas no Brasil sempre foram
traumáticas. E é isso que o filme de Petra Costa, talvez de forma
involuntária, acaba por revelar sobre o momento que vivemos: a
desintegração do pacto social que vigorou desde 1988 vai muito
além de uma crise da democracia. Vivemos uma transição
histórica. É claro que, quando falamos de "pacto
social", não devemos imaginar uma mesa em torno da qual se sentam
os trabalhadores representados por seus sindicatos, os movimentos sociais, os
patrões, os líderes religiosos, os povos indígenas, os
movimentos de direitos humanos, os ambientalistas, os latifundiários,
etc. O "pacto social" não é propriamente um acordo
firmado livre e conscientemente por partes diferentes que compartilham
objetivos comuns com o intuito de assegurar ganhos mútuos, como
aconteceu no caso do lulismo. O pacto de 1988 expressa o limite do consenso
possível num contexto de transição para um novo modelo de
Estado. A Constituição Federal encerra, na verdade, os limites e
recuos da luta de classes num momento de transição de um sistema
autoritário para uma frágil democracia liberal.
O Estado que surge da Constituinte de 1988, para tomar emprestada a
definição de Poulantzas em seu
Estado, poder e socialismo,
expressa a "condensação material e específica de
uma determinada relação de forças entre classes e
frações de classes". Suas bases se assentam em três
elementos fundamentais. O primeiro é a garantia da
ampliação gradual e permanente de direitos sociais como forma de
combater as desigualdades. Daí a previsão constitucional da
realização de uma reforma agrária, da
criação de um imposto sobre grandes fortunas (nunca
regulamentado) e da garantia da função social da propriedade. O
segundo elemento é a garantia da economia de mercado, mas com limites
impostos pelo controle estatal de setores considerados economicamente
estratégicos. E o terceiro elemento é a
constituição de uma democracia liberal com garantias ao
pluripartidarismo e à alternância no poder, ainda que com parcos
instrumentos de participação direta.
Esses três elementos ampliação gradual de direitos,
economia de mercado e democracia liberal formavam a base do pacto social
plasmado na Constituição Federal de 1988 e foram minimamente
respeitados, mesmo nos governos neoliberais de Fernando Henrique Cardoso
(1995-2002), por exemplo, com a criação do Bolsa Escola, a quebra
da patente dos medicamentos e a introdução dos
"genéricos", e a promoção de
desapropriações de terras para fins de reforma agrária,
graças à pressão do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem
Terra (MST). Com a vitória de Lula, em 2002, a faixa presidencial foi
entregue conforme determinava a Constituição, apesar da histeria
de parte do mercado financeiro. E, nos governos petistas, a
ampliação de direitos e a diminuição das
desigualdades foi promovida respeitando religiosamente a economia de mercado,
incluindo as determinações draconianas impostas pelo
neoliberalismo nos anos anteriores, como as metas de inflação, o
superávit primário e o pagamento da dívida externa.
Acontece que esse pacto entrou em crise. Primeiro, com os impactos da crise
econômica e a disputa que se impôs sobre o fundo público. De
um lado, o capital, tentando usar o Estado como tábua de
salvação, reivindicando crescentes desonerações
fiscais, um pesado ajuste nas contas públicas e a retirada de direitos
trabalhistas e previdenciários. De outro, o mundo do trabalho, cobrando
do Estado a proteção dos mais vulneráveis, a
manutenção dos investimentos públicos e medidas que
estimulassem a produção em detrimento da
valorização especulativa do capital. Tentando se equilibrar nessa
disputa, Dilma Rousseff buscou contemplar parcialmente ambos os lados.
Assegurou pesadas desonerações fiscais e impôs um duro
ajuste nas constas do Estado ao mesmo tempo em que iniciava um programa de
privatizações de estradas, portos e aeroportos. Aos trabalhadores
assegurou a defesa dos direitos consagrados na Consolidação das
Leis Trabalhistas (CLT) e a política de valorização do
salário-mínimo.
Mas era tarde. O capital queria mais. A chamada "Ponte para o
Futuro", programa apresentado pelo PMDB no auge da crise econômica e
que depois se tornaria a plataforma de Michel Temer no governo, defendida um
verdadeiro "choque de austeridade" no Brasil, atacando direitos
sociais e ambientais, desmontando as empresas públicas e apertando ainda
mais as contas do Estado. Sem condições de assumir o "pacto
social" imposto pela nova correlação de forças, Dilma
caiu. Mas para isso outra base do pacto de 1988 teve de ser violada: a garantia
da alternância de poder e a soberania da vontade popular. O golpe de
abril de 2016, como demonstra de forma cristalina o filme de Petra Costa,
representou uma clara ruptura com a Constituição Federal e,
portanto, com uma das bases fundamentais do pacto social firmado em 1988. As
outras duas bases seriam atacadas posteriormente por Temer, através da
Emenda Constitucional 95 que congela os investimentos públicos e
interdita a possibilidade de ampliar direitos, e por Bolsonaro, que pretende
instituir um capitalismo selvagem ao estilo
laissez-faire.
Há ainda outro elemento que acelerou a crise do pacto social de 1988: a
Operação Lava Jato. No início a operação
revelou as relações ilícitas entre agentes do Estado,
partidos políticos e grandes empresas. O pano de fundo era o famigerado
financiamento empresarial de campanhas, que alimentava uma rede de
relações de "toma lá, dá cá", que
tinha suas origens na Ditadura Militar. Com o tempo, porém, a
operação revelou-se arbitrária e partidarizada. Ela
reforçou a ideia de que a corrupção é o mais grave
problema do país (e não a desigualdade) e concentrou nos agentes
públicos a responsabilidade pelo fenômeno. Com isso, a
criminalização da política alcançou patamares
inimagináveis, gerando uma enorme rejeição do
cidadão comum aos partidos e instituições do Estado.
Utilizada para inflamar a sociedade contra os erros do governo de Dilma
Rousseff, a Lava Jato criou o ambiente para o golpe de 2016 e a
arbitrária prisão de Lula. Enquanto o ex-presidente cumpre pena,
outros réus na sua maioria empresários estão
em liberdade, mesmo após condenação em segunda
instância, atestando o caráter político da prisão de
Lula.
O que
Democracia em vertigem
demonstra, portanto, é que as bases que garantiram o pacto social
consignado na forma de uma Constituição do Estado brasileiro
erodiram. A pergunta que fica é: afinal, do que eram feitas essas bases?
Voltemos a Poulantzas. Se o Estado expressa uma relação entre
classes sociais, sua Constituição seria uma espécie de
medida do equilíbrio das forças em conflito. Como uma fotografia
da luta de classes num determinado momento. Quando o mundo do trabalho
avança, novas leis são criadas e o ordenamento jurídico
ajusta-se à nova correlação de forças. O mesmo
acontece quando o capital ganha terreno, retirando direitos e enfraquecendo a
capacidade do Estado de expressar os interesses dos trabalhadores e
excluídos. Quando o equilíbrio de forças se altera
radicalmente, como aconteceu no Brasil nos últimos anos, sem que existam
saídas por dentro do sistema por exemplo, uma nova Constituinte
ou por fora uma revolução a crise se instala.
O que o documentário ilustra é a imposição de um
novo "pacto social" que expressa a hegemonia do capital financeiro e
sua disposição de redesenhar a Constituição para
adaptá-la às novas necessidades que a crise de
valorização impôs a países da semiperiferia do
sistema, como o Brasil. Em vez de um modelo de Seguridade Social financiado por
patrões, trabalhadores e Estado, o capital financeiro quer instituir a
capitalização; no lugar de um Sistema Único de
Saúde, querem impor a mercantilização do atendimento de
saúde via planos privados; ao invés de proteção
trabalhista, criam a negociação direta e a lei das
terceirizações. Isso tudo deveria ser produto de um novo arranjo
institucional, mas as elites não estão dispostas a correr
qualquer risco. A democracia, mesmo que limitada como no Brasil, se tornou um
estorvo.
A ofensiva do capital sobre o trabalho e a tentativa de impor sua
dominação tem como pano de fundo a formação de uma
nova hegemonia. Durante os últimos trinta anos o neoliberalismo foi
bem-sucedido ao introduzir, lentamente, mecanismos que foram minando a
capacidade de proteger as conquistas asseguradas na Constituição
de 1988. Nesse período quase uma centena de emendas constitucionais
foram aprovadas, em geral retirando direitos ou adaptando o Estado às
necessidades da gestão neoliberal. Ao mesmo tempo, o capital desatou uma
ofensiva ideológica que teve como objetivo desfazer os laços
comunitários que sustentavam a relação da classe
trabalhadora e dos excluídos com suas organizações. O
cerco jurídico-repressivo contra as greves, a
criminalização dos movimentos sociais e a
canalização de toda a insatisfação para as urnas,
enfraqueceu os partidos e as organizações que representavam o
mundo do trabalho.
A correlação de forças foi piorando, os partidos foram se
adaptando à ordem e o individualismo ganhou terreno. As comunidades
eclesiais de base, o sindicalismo combativo e independente e as
associações de moradores foram cedendo espaço a novas
formas de sociabilidade. Os próprios governos petistas estimularam a
noção de prosperidade individual, difundindo a
convicção de que a possibilidade de viajar para fora do
país ou adquirir um carro novo eram sinônimos de justiça
social. A chamada "inclusão pelo consumo" foi uma armadilha
que entranhou ainda mais a ideologia do inimigo entre os mais pobres. As seitas
neopentecostais, ancoradas na "teologia da prosperidade", cresceram
enormemente alimentando-se desses valores.
Esses exemplos demonstram que na base da degradação da nossa
democracia ou do pacto social de 1988 está uma piora aguda
da correlação de forças na sociedade e no Estado entre
dois campos em permanente conflito. Os anos de crescimento econômico sob
os governos petistas mascararam essa realidade. O ovo da serpente, portanto,
não foi gestado em junho de 2013 tampouco na aliança com o PMDB.
Ele tem origem na absoluta subestimação da luta de classes, que
em 1988 assegurou direitos graças ao ascenso do movimento de massas ao
longo de uma década. A única saída, portanto, é
reequilibrar o jogo de forças na sociedade.
Por tudo isso,
Democracia em vertigem
é um relato honesto e verdadeiro da crise que o Brasil vive. Mas
expressa apenas uma das vertentes da crise do pacto social de 1988 a
democrática. Sem compreender que a vertigem não é
só da democracia, mas de todo o sistema criado pela luta de classes dos
anos 1980, e que a nova República caminha para uma crise terminal,
não seremos capazes de compreender e agir no novo ciclo que se inicia.
28/Junho/2019
[*]
Historiador e presidente do PSOL. Organizou, junto com Gilberto Maringoni,
Cinco mil dias: o Brasil na era do lulismo
(Boitempo e Fundação Lauro Campos e Marielle Franco, 2017).
O original encontra-se em
blogdaboitempo.com.br/2019/06/28/a-vertigem-democratica/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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