Brasil: Sem pressão das forças progressistas, Comissão da
Verdade não irá além da mera encenação
por Valéria Nader
[*]
e Gabriel Brito
[**]
Em vias de aprovação no Congresso, o projeto de lei que cria a
Comissão da Verdade, resultante de iniciativas e do esforço de
correntes políticas vitimadas pela ditadura civil-militar de 1964-1985,
sofreu incontáveis mutilações em relação a
seus objetivos iniciais. Entre as muitas aberrações, expandiu-se
o período de investigação dos crimes políticos, que
terá como data inicial o ano de 1946, quando o Brasil se encontrava sob
regimes democraticamente eleitos, ainda que com as devidas tensões e
violências políticas registradas mas nunca assumidas como
práticas oficiais do Estado.
O procurador de justiça do estado de São Paulo José
Damião de Lima Trindade concedeu longa e detalhada entrevista ao
Correio da Cidadania,
na qual foi implacável em suas críticas a pontos substanciais do
projeto. Vencedor do prêmio de Direitos Humanos João Canuto,
concedido em 2008 pela ONG carioca Humanos Direitos, Trindade faz uma
provocação que muito contribui para a compreensão do
perverso caráter conciliatório que prevaleceu na Comissão,
conforme manda a tradição brasileira: "Tenho suspeitas sobre
essa quase 'unanimidade' entre reacionários de todos os tipos no
Congresso em apoio ao projeto" referindo-se também à
base aliada do governo Lula, repleta de herdeiros e amigos da ditadura.
Ao longo de toda a entrevista, o procurador, também autor do livro
História Social dos Direitos Humanos, desnuda as típicas facetas
da classe dirigente nacional, sempre afeita às
"conciliações por cima". "A Comissão
deveria ser mais ampla e ser designada após amplíssima consulta
pública à sociedade, para garantir-se que nela não tenham
assento agentes duplos nem 'reconciliadores' pusilânimes", critica.
E entre tantas ofensas aos preceitos dos Direitos Humanos e do Direito
Internacional, destaca-se o trecho que estabelece o sigilo de dados, fatos e
documentos que o Estado (inclusive o ditatorial) tenha, no passado, catalogado
como confidenciais. Um paradoxo gritante para um projeto que se pretende (ou
pretendia) não somente a elucidar, mas a publicizar a 'verdade'.
"Se todas as informações recebidas pela comissão
não forem tornadas públicas, estaremos diante de uma mera
encenação ditada pela conveniência de comandantes militares
e policiais ou por figurões da política que prestaram bons
serviços à ditadura e pretendem manter seu colaboracionismo
trancado no armário", sentencia.
Depreende-se com evidência, da avaliação de Trindade, o
frustrante engodo em que pode se transformar uma comissão que foi criada
sob aura de muita esperança para os vitimados pela ditadura e é
comemorada com grande ufanismo pelos 'governistas'. O promotor questiona pautas
essenciais da Comissão, explicando as razões que deixam clara sua
intenção de praticar "jogo de cena para o público
internacional". Basta, neste sentido, reavivar a memória para
perceber que o governo Lula só se mexeu após a
condenação, a ser reiterada em 2012, na Comissão
Interamericana de Direitos Humanos. Além de ter nomeado a maior parte
dos integrantes do STF, que no ano passado reinventaram o Direito Internacional
ao votarem pela legitimidade da auto-anistia concedida pelos militares em 1979.
O procurador evidencia ainda uma Secretaria Nacional de Direitos Humanos
(órgão criado e elevado a ministério pelo PT) como um
"clube de segunda divisão", cujos objetivos são
rotineiramente desprezados quando confrontados com os interesses
políticos dominantes e retrógrados. Trata-se nada mais nada menos
do que "uma opção política da Presidência da
República", completa, sem poupar nenhum dos dois presidentes
petistas, muito menos aquele egresso dos movimentos democráticos e
populares.
O caminho que até agora se insinua como o mais provável para uma
Comissão tão repleta de contorcionismos já é visto
com bastante pessimismo e desilusão por correntes de esquerda,
progressistas, humanistas e democratas. A 'Comissão do Brasil' parece,
portanto, afastar-se inexoravelmente de processos semelhantes realizados com
muito maior grau de justiça e transparência em países como
Argentina, Chile e África do Sul. A não ser que haja uma retomada
de manifestações por parte de movimentos democráticos e
progressistas e uma vigilância e pressão sobre os poucos
integrantes da Comissão, restará como uma miragem a verdadeira
reconciliação brasileira com os princípios básicos
de respeito aos direitos humanos e como uma farsa a tão repisada
alusão à 'respeitabilidade internacional' de nosso país.
"Se não cumpre os tratados internacionais de direitos humanos que
subscreveu, e se não cumpre fielmente as decisões de Cortes
Internacionais de direitos humanos a que aderiu, como o país espera ser
respeitado internacionalmente?", indaga Trindade
A entrevista completa.
Correio da Cidadania: O projeto de lei que cria a Comissão da Verdade
está em vias de aprovação definitiva no Congresso, com a
finalidade de investigar o passado político do país entre os anos
de 1946 e 1988. O que pensa da extensão do período de
investigação para além da ditadura, do número de
pessoas estabelecido para os trabalhos, ao lado do prazo proposto de dois anos
para a duração da empreitada? Há alguma possibilidade de
tal configuração confluir para uma Comissão da Verdade 'de
verdade'?
Damião Trindade:
O projeto de lei 7376/2010, encaminhado ao Congresso pelo ex-presidente Lula
em maio de 2010 e aprovado pela Câmara dos Deputados com duas emendas
aditivas em 21 de setembro último, cria na Casa Civil uma
Comissão Nacional da Verdade, composta de sete membros a serem
designados pela Presidente da República e auxiliados por catorze
assessores, com o mandato de dois anos, para investigar e apresentar um
relatório sobre as graves violações aos direitos humanos
cometidas entre 18/11/1946 e 05/10/1988. O projeto tramita agora no Senado sob
o número 88/2011.
O número de componentes dessa Comissão parece mesmo insuficiente,
assim como sua assessoria parece diminuta, dada a vastidão e
complexidade do trabalho que está à sua espera, o período
histórico muito lato a ser examinado quase 42 anos e o
mandato de apenas dois anos de duração para os integrantes da
Comissão. Mas a experiência internacional das Comissões da
Verdade criadas em quase cinqüenta países ao final de ditaduras em
todo o planeta nos ensina que, além dessas limitações
reais, há também outros fatores pelo menos mais três
deles que podem até se tornar mais importantes.
Correio da Cidadania: Quais são esses três outros fatores?
Damião Trindade:
Em primeiro lugar, importa decisivamente a composição dessas
comissões, ou seja, a qualificação dos seus integrantes
para investigar as violações, sua familiaridade com o tema e com
o período histórico abrangido e, sobretudo, a completa
independência política, a determinação e a
intrepidez moral dos seus componentes. A Comisión Nacional sobre La
Desaparición de Personas, na Argentina, teve apenas 11 integrantes e
trabalhou durante apenas nove meses, investigando os sete anos da ditadura
militar argentina, mas seus componentes eram inequivocamente comprometidos com
a defesa dos direitos humanos e ela foi presidida por ninguém menos do
que o escritor Ernesto Sábato. Já a Comisión Nacional de
Verdad y Reconciliación, constituída no Chile por decreto do
Presidente Patricio Ailwin para investigar os 17 anos da ditadura de Pinochet,
teve 8 membros e 60 assessores, mas quatro dos membros nomeados eram antigos
apoiadores da ditadura, que tentaram de tudo para emperrar os trabalhos
só não o conseguiram porque era monstruoso o volume e a
profundidade das atrocidades encontradas. Na África do Sul, após
vários meses de audiências públicas, foi constituída
uma Comissão da Verdade e Reconciliação com 16
integrantes, sob a presidência do arcebispo Desmond Tutu, com o suporte
de 300 assessores e quatro escritórios regionais distribuídos
pelo país, para investigar, durante dois anos e meio, as
violações cometidas ao longo dos 45 anos de apartheid.
No Brasil, ainda não sabemos se, antes de designar os membros da
comissão, a Presidenta da República estará disposta a ser
permeável a consultas públicas democráticas. Se a
comissão sair apenas da algibeira do Palácio do Planalto, em meio
a pressões da "base aliada" conservadora e a recados remetidos
por generais, tudo poderá estar comprometido logo à partida.
Outro fator relevante é que o marco legal sob o qual trabalha a
comissão faz toda a diferença. Na Argentina, foi revogada a
anistia que a ditadura se auto-concedeu, e as informações e
testemunhos recolhidos pela Comisión foram fundamentais nos julgamentos
dos generais. No Chile, mesmo com idêntica lei de auto-anistia, o Poder
Judiciário encontrou os meios jurídicos para levar às
barras dos tribunais os militares assassinos e torturadores. No Brasil, estamos
em situação pior: o Supremo Tribunal Federal cuja maioria
de Ministros foi indicada pelo Presidente Lula já lavou as
mãos quanto à infame auto-anistia da ditadura, mesmo após
o Brasil haver sido condenado na Corte Interamericana de Direitos Humanos, que
reiteradamente julga como inválidas tais leis de auto-anistias das
ditaduras.
Por fim, se faltar autonomia financeira à comissão, ela pode
estar condenada a caminhar o tempo todo com o pires na mão. O exemplo
tragicômico a esse respeito foi a Comisión Nacional de La Verdad y
la Justicia, do Haiti: após trabalhar sob inacreditável
penúria financeira durante 10 meses, seu relatório final, de
fevereiro de 1996, teve cópias distribuídas para
organizações de defesa dos direitos humanos assim mesmo,
após todo um ano de pressões. Nunca foi efetivamente publicado,
pois o Ministro da Justiça do país à época
"explicou" que o preço da publicação era
"proibitivo". O resultado foi que o relatório passou
praticamente despercebido pela população e somente algumas de
suas recomendações foram implementadas anos depois, e
somente por conta da pressão internacional.
Correio da Cidadania: O que o senhor pensa do fato de tal comissão poder
vir a ter a participação de militares?
Damião Trindade:
O artigo 7º, parágrafos primeiro e segundo, do projeto em
tramitação, admite expressamente que servidores públicos
civis ou militares, de qualquer das esferas de Poder, poderão ser
designados para integrar a Comissão Nacional da Verdade o que
deixa abertas as portas para o ingresso na Comissão, por exemplo, de um
oficial militar ou de um policial, coisas assim. Por outro lado, o artigo
2º veda a participação na Comissão daqueles que
estejam no exercício de cargos públicos em comissão ou
função de confiança, ou daqueles que "não
tenham condições de atuar com imparcialidade no exercício
das competências da Comissão". Ou seja: sopesando os dois
tipos de dispositivos, se a Presidenta da República quiser nomear para a
Comissão um militar ou um policial, bastará escolher entre os que
não estejam ocupando cargo de comando ou de assessoria, que não
hajam mantido laços muito óbvios de colaboração com
a ditadura, nem defendam em público posições de
extrema-direita...
Todavia, se tivermos em mente, tanto o forte espírito de corpo
predominante entre militares e policiais, como a ideologia autoritária
que está longe de haver se dissipado nessas corporações, o
que poderíamos esperar de uma nomeação desse tipo? Mas,
perguntemos: não haveria militares e policiais verdadeiramente
democratas, convertidamente interessados em abrir o ventre imundo da ditadura,
mesmo à custa de granjear antipatia entre seus pares, mesmo sob o risco
de sofrer depois retaliações hierárquicas? Eu desejo
sinceramente que haja. Mas ignoro se e quais foram os "entendimentos"
previamente estabelecidos para que os altos comandos militares não
"vetassem" o encaminhamento do projeto ao Congresso.
E tenho suspeitas sobre essa quase "unanimidade" entre
reacionários de todos os tipos no Congresso em apoio ao projeto.
Estará a Presidente da República disposta a correr o risco de,
logo de partida, desmoralizar a Comissão perante a opinião
pública com uma designação indefensável?
Correio da Cidadania: Como o senhor avalia a possibilidade de, aparentemente, o
projeto de Comissão da Verdade admitir que sejam investigados militantes
de lado a lado, torturados e torturadores, tal como pediram os setores mais
conservadores?
Damião Trindade:
Quanto ao risco de a Comissão Nacional da Verdade vir vergar-se a
pressões espúrias de saudosistas da ditadura e perder-se numa
nova caça às bruxas contra os que combateram aquela ditadura,
penso que isso dependerá da envergadura moral dos seus integrantes, de
sua convicção democrática, de sua clareza
histórica, de sua hombridade pessoal, de sua independência e
coragem. Equiparar os golpistas de 1964 aos que resistiram ao golpe seria o
mesmo que equiparar o exército de ocupação nazista aos
guerrilheiros franceses que heroicamente o enfrentaram.
Ademais, as atividades dos combatentes contra a ditadura já foram
sobejamente "reveladas" foram extorquidas sob tortura, muitas
vezes seguida de morte. O que ainda faz falta é revirar e revelar as
"atividades" dos agentes da ditadura, as variadas e sempre
dilacerantes práticas de tortura e de crimes hediondos que cometeram
contra milhares de presos políticos, incluindo estupros contra meninas
capturadas, execuções, "desaparecimentos",
ocultação de cadáveres etc.
O projeto de lei em tramitação é muito aberto quanto ao
objeto de trabalho da futura comissão, havendo, sim, o risco se
os integrantes da comissão forem tíbios ou desfibradamente
"reconciliadores" de ela descambar para a
investigação de supostas "violações"
assacadas contra os que resistiram à ditadura, como querem as
forças mais reacionárias, só interessadas em embaralhar o
assunto, como, de fato, aconteceu em boa medida com a comissão chilena,
e em alguma medida com a comissão sul-africana.
Penso que só a pressão da sociedade, uma pressão
organizada e insistente, com a multiplicação de seminários
e debates por todo o país, com manifestações coletivas ao
menos em todas as capitais, com o engajamento dos movimentos estudantil e
sindical, dos artistas e intelectuais etc, poderá suscitar um sentimento
de indignação e de exigência capaz de neutralizar as
pressões das forças da escuridão que, com toda certeza,
trabalham no sentido de tornar a Comissão Nacional da Verdade em
não mais que uma encenação para a platéia
internacional.
Correio da Cidadania: E quanto ao sigilo de dados estabelecido no projeto de
lei que criou a Comissão, não se trata de um paradoxo gritante
para um projeto que se pretende (ou pretendia) não somente a elucidar,
mas a publicitar a 'verdade'?
Damião Trindade:
Será crucial a mais completa transparência e publicidade dos
trabalhos da comissão. Todavia, há dispositivos, no projeto em
tramitação no Senado, que admitem a realização
sigilosa de atividades da comissão (artigo 5º) e que até
obrigam a comissão a manter o sigilo dos documentos e
informações que o Estado, de antemão, houver classificado
como sigilosos (artigo 4º, parágrafo segundo). Isso configura,
evidentemente, uma aberração risível. Se o
propósito for revelar a verdade sobre as violações de
direitos humanos daquele período, como respeitar "sigilos"
previamente estabelecidos?
A comissão brasileira se prestará ao papel de censurar
informações em seu relatório final ou,
quiçá, de produzir um relatório "misto", em que
uma parte poderá ser franqueada ao público e outra parte
permanecerá sob chaves? Se todas as informações recebidas
pela comissão não forem tornadas públicas, estaremos
diante de uma mera encenação ditada pela conveniência de
comandantes militares e policiais ou por figurões da política que
prestaram bons serviços à ditadura e pretendem manter seu
colaboracionismo trancado no armário.
Na África do Sul, as sessões da Comissão eram transmitidas
ao vivo pela rádio estatal durante quatro horas por dias, todos os dias.
Na Argentina, o relatório final da Comisión foi publicado na
íntegra, sem qualquer censura, e após cerca de 30
reimpressões, já soma quase 500 mil exemplares vendidos.
Correio da Cidadania: No que diz respeito à ausência de poder de
punição da Comissão, que poderá no máximo
indicar caminhos a serem seguidos pelo Estado brasileiro, trata-se de
critério aceitável mediante os preceitos judiciais brasileiros?
Damião Trindade:
A Comissão Nacional da Verdade, como todas as comissões
congêneres dos demais países, não é um
órgão jurisdicional, punitivo. Sua competência é
apurar a verdade, toda a verdade, e entregá-la por completo, sem censura
de qualquer espécie, à sociedade brasileira e ao Estado. A
jurisdição constitucional para processar e punir pertence ao
Poder Judiciário.
O problema é que, como já apontei, o Poder Judiciário
brasileiro, por meio de sua Corte mais alta (insisto: cuja maioria de membros
foi indicada pelo Presidente Lula), já decidiu que os crimes cometidos
pelos agentes da ditadura estão cobertos pela auto-anistia que a
ditadura concedeu a si mesma, malgrado toda a jurisprudência em sentido
contrário emanada das Cortes internacionais de direitos humanos.
Em 2012, a Corte Interamericana de Direitos Humanos voltará a examinar a
conduta do Estado brasileiro quanto ao cumprimento da sentença
condenatória que exigiu a punição dos crimes da ditadura.
E, mais uma vez, o Brasil será chamado às suas responsabilidades,
sob pena de colocar-se como um Estado que prefere ficar à margem da
comunidade internacional.
Correio da Cidadania: Como o senhor posicionaria a presidenta Dilma Rousseff
nesse processo, especialmente à luz do fato de ter sido uma
vítima notória da ditadura e de seu discurso de início de
mandato, com forte ênfase na não tolerância de nenhuma
espécie de violação aos direitos humanos?
Damião Trindade:
Em política, não se pode avaliar uma pessoa apenas por seu
passado e, muito menos, por seus discursos. Conta mais a sua prática, as
opções que adota a cada circunstância. Fiquemos atentos
à conduta que ela adotará e logo teremos a resposta a essa
pergunta.
Correio da Cidadania: Acredita que, mesmo enfraquecida e ao gosto dos militares
e herdeiros da ditadura (políticos, empresários e
órgãos de mídia), como se viu na repercussão do
assunto, a Comissão da Verdade terá alguma serventia à
elucidação, da história do país e ao estancamento
das práticas autoritárias que ainda persistem em nosso sistema
penal e judiciário? Em suma, ela pode colaborar minimamente para uma
transição democrática ainda não concluída
por aqui?
Damião Trindade:
A resposta a essa indagação depende da conjugação
de vários fatores políticos que ainda estão em
desdobramento. Portanto, ainda não é possível oferecermos
uma resposta cabal e segura. Depende das modificações que o
Senado vier a introduzir no projeto de lei e devemos temê-las,
pois o Senado está sob controle muito maior das classes dominantes
conservadoras do que a Câmara dos Deputados. Se assim for, nenhum acerto
de contas farão em relação ao nosso passado. Depende
também dos eventuais vetos que a Presidente da República estiver
disposta a contrapor ao texto final. Depende, ainda, do conteúdo do
decreto presidencial que vier a regulamentar a lei ele poderá
facilitar ou dificultar os trabalhos da comissão. Também depende
muito, muito mesmo, da composição que a Comissão Nacional
da Verdade vier a ter o que, por sua vez, depende da pressão que
as forças democráticas e progressistas forem capazes de mobilizar
na sociedade.
E depende, por fim, de outro fator ainda mais imponderável: um processo
de busca da verdade, uma vez deflagrado, pode acabar escapando do controle dos
seus planejadores, pode acabar transbordando de limites previamente
"combinados". Um fato puxa outro, um depoimento acaba incriminando
quem deveria ficar acobertado, e assim por diante. A caixa de Pandora pode,
até inadvertidamente, ser destampada. Se a Comissão for
idônea e politicamente independente, e se de fato desfrutar de
independência operacional, poderá colocar o dedo em feridas
sérias e acabar jogando luzes sobre o que "deveria" permanecer
nas sombras, malgrado seu número pequeno de membros e de assessores, e
apesar do prazo exíguo para as investigações.
Poderá, por exemplo, resolver focar seus trabalhos essencialmente no
período da ditadura militar, entre 1964 e 1985, o que já
reduziria para 21 anos o período investigado, até pela
impossibilidade de investigar adequadamente todos os 42 anos previstos no
projeto de lei. Ou, ao contrário, se seus membros forem politicamente
pusilânimes, empenhados muito mais em "reconciliar" do que em
desnudar verdades, poderão propositalmente diluir a
investigação pelos 42 anos e esquivar-se de investigar fatos e
denúncias que, eventualmente, possam vir a comprometer militares ou
figurões da República. Os rumos da Comissão também
poderão ser expressivamente influenciados pelo jogo de pressões e
contrapressões que ela seguramente receberá durante todo o tempo
de funcionamento.
Estarão as forças do progresso social e político
amadurecidas para se unir, somar e coordenar esforços, ocupar
espaços e exercer uma mobilização aguerrida e uma
cobrança de resultados sem qualquer comiseração de
natureza partidária? Porque as forças das sombras, dos
armários trancados, dos arquivos escondidos, e dos crimes ignominiosos
que ocultam, essas forças conhecem muito bem quais são os seus
interesses, e reconhecem muito bem os momentos em que devem se unir e se
acobertar mutuamente.
Correio da Cidadania: O senhor tem uma opinião já formada sobre a
atual Secretaria Nacional dos Direitos Humanos (SNDH), ligada diretamente
à presidência? Como o senhor a avalia, à luz da
atuação do ministro anterior, Paulo Vannuchi, o primeiro ocupante
dessa secretaria, com status ministerial, criada no governo Lula?
Damião Trindade:
Passa a impressão de que a Secretaria Nacional dos Direitos Humanos,
não importa o status legal de que desfrute, continua sendo um
órgão de segundo escalão, um clube relegado à
segunda divisão, que não tem força ou respeitabilidade
para, em momentos cruciais, convencer o governo federal de suas
posições.
Bastam alguns exemplos. O Congresso Nacional editou a lei 10.559/02 que, dentre
outras matérias, obrigou o Estado a indenizar as vítimas ou seus
familiares pelos crimes cometidos por agentes públicos durante a
ditadura. Em decorrência, o Estado vem indenizando os sobreviventes e as
famílias dos mortos/desaparecidos, isto é, vem reconhecendo,
nesses casos bem documentados, que o Estado tolerou/promoveu condutas
criminosas de seus agentes, condutas essas que estão agora gerando
efeitos financeiros contra o próprio Estado. Esse dinheiro das
indenizações saiu e continua a sair do erário. A rigor, a
União estaria juridicamente obrigada, ela mesma, a ingressar diretamente
com ações judiciais contra os agentes criminosos identificados,
para compeli-los a repor ao erário esses valores que, por culpa deles, o
erário está sendo obrigado a desembolsar. Esse tipo de
procedimento ocorre todos os dias, em todas as esferas da
Administração Pública, contra servidores que causam
prejuízos à Administração.
Por que o governo federal não aplicou o mesmo critério no caso
das indenizações políticas? Por que a própria
União não processou os agentes da ditadura para que ressarcissem
ao erário as despesas com as indenizações pagas? Pois foi
necessário o Ministério Público Federal tomar essa
iniciativa, na defesa do patrimônio público federal. O MP federal
ajuizou, em 2008, uma ação contra dois ex-comandantes do DOI-CODI
de São Paulo, para responsabilizá-los financeiramente (não
penalmente) por cerca de 60 indenizações pagas pela União
relativas a mortos/desaparecidos naquele centro de horrores durante o
período em que aqueles dois militares o dirigiram. Ou seja: a
ação foi em defesa do patrimônio da União. Os
réus são os dois militares, não a União. Chamada a
pronunciar-se no processo, a União, representada por sua Advocacia
Geral, deveria ter endossado a iniciativa do MP. Mas, para assombro e
estarrecimento dos próprios meios jurídicos do país, a
AGU... defendeu os réus! Colocou-se contra o próprio interesse
patrimonial da União! Na ocasião, o Secretário Nacional de
Direitos Humanos pronunciou-se em público no sentido de que o Presidente
da República deveria determinar à AGU a mudança de
posição. E ele tinha inteira base jurídica e processual
para defender isso. Mas o Presidente da República não se moveu e
a AGU manteve sua posição horrível.
Mais recentemente, houve o vergonhoso episódio das
amputações no III Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH).
Bastou os comandantes militares torcerem o nariz, a ala conservadora da Igreja
protestar, o agronegócio reclamar e os monopólios da grande
mídia denunciarem ameaças à "liberdade de
imprensa", e o III PNDH, mesmo após debatido e votado
democraticamente por milhares de pessoas e de entidades reunidas em
conferências por todo o país, foi unilateralmente amputado pelo
Presidente Lula de pontos importantíssimos. A Secretaria Nacional dos
Direitos Humanos, que era contra essas amputações, foi novamente
derrotada.
Por fim, os arquivos militares secretos sobre o período da ditadura,
cuja abertura a SNDH sempre defendeu, continuam lacrados e escondidos.
Aliás, quanto a isso, como a futura Comissão Nacional da Verdade
saberá quais informações deverá requisitar
às Forças Armadas, uma vez que não saberá quais
informações aqueles arquivos contêm? Como a Comissão
poderá requisitar informações que, estando classificadas
como sigilosas, ela não faz a menor idéia do que tratam? Na
realidade, a coisa toda está toda invertida, pois, primeiramente, os
arquivos deveriam ser abertos. Mas, em se tratando de assuntos assim
"sensíveis", a SNDH não consegue fazer valer suas
posições. É um órgão que vem sendo mantido
em posição de fraqueza o que, é claro, configura,
nada mais, nada menos, do que uma opção política da
Presidência da República.
Correio da Cidadania: O senhor fez referências a alguns processos de
transição democrática mundo afora, os quais, em analogia
com nosso país, parecem deixá-lo em uma categoria de muito maior
pusilanimidade. Como deve ficar a imagem do Brasil no exterior?
Damião Trindade:
A pergunta já embute uma resposta óbvia. Se não cumpre os
tratados internacionais de direitos humanos que subscreveu, e se não
cumpre fielmente as decisões de Cortes Internacionais de direitos
humanos a que aderiu, como o país espera ser respeitado
internacionalmente? Se esse processo de vacilações de passos em
falso e de contorcionismos, para não desagradar comandos militares e
figurões da política e da alta finança, não for
revertido, esse constrangimento internacional do Brasil só
crescerá.
O que temia o Presidente Lula, o que tem a temer a Presidenta Dilma? Um novo
golpe de Estado? Não há o menor ambiente político ou
social para isso. Quando está em jogo completar o processo de
transição democrática, o medo, ainda mais o medo deslocado
da realidade, é o pior dos conselheiros. A menos que não se trate
apenas de medo, mas da reincidência da atávica
vocação de nossas classes dominantes e de nossos dirigentes
políticos de sempre conciliar pelo alto, de colocar panos quentes nas
questões "delicadas", de modo a não perturbar a
continuidade da dominação.
Correio da Cidadania: Consideradas as atuais circunstâncias
históricas e políticas do país, como deveria ser, na
opinião do senhor, uma verdadeira Comissão para elucidar e tomar
providências a respeito dos chamados crimes contra a humanidade,
imprescritíveis e impassíveis de auto-anistias, nos moldes dos
preceitos consagrados pelo direito internacional?
Damião Trindade:
A Comissão deveria ser mais ampla e ser designada após
amplíssima consulta pública à sociedade, para garantir-se
que nela não tenham assento agentes duplos nem
"reconciliadores" pusilânimes, capazes de torcer ou de conter
as investigações por medo de desagradar aos poderosos de ontem e
de hoje. A comissão deveria contar com ao menos o dobro ou o triplo de
assessores e com retaguarda financeira e administrativa assegurada na
própria lei. Também deveria ter a sua missão definida mais
claramente na lei: investigar e tornar públicas as
violações de direitos humanos cometidos por agentes do Estado com
farda e sem farda, e por seus comparsas civis, durante os 21 anos da ditadura
militar, com todos os arquivos militares e policiais daquele período
previamente abertos à sociedade.
Todos os trabalhos da Comissão deveriam ser transparentes e
públicos, amplamente divulgados, sem qualquer possibilidade de
sessões secretas ou de cumplicidade com sigilo documental. E, para dar
conseqüência às revelações a que a
Comissão chegasse, deveríamos poder contar com um Poder
Judiciário disposto a cumprir sua responsabilidade de oferecer aos
criminosos da ditadura que forem identificados exatamente o que eles negaram
às suas vítimas: acusações penais justas, isto
é, não baseadas em "provas" extorquidas sob tortura,
com garantia de amplo direito de defesa, o devido processo legal assegurado e,
por fim, sentenças judiciais com direito a todos os recursos previstos
na lei processual.
Enquanto isso não acontecer, estaremos "fazendo de conta" que
aqueles crimes também não aconteceram, ou que, mesmo após
revelados, devem ser "esquecidos" o que, além de ser
por si mesmo abominável, configura um estímulo poderoso, e
renovado todos os dias, para que as detenções extrajudiciais, a
tortura dos presos pobres e seu assassinato se reproduzam interminavelmente nos
dias de hoje. A impunidade dos criminosos da ditadura funciona como uma
espécie de "garantia" de impunidade para a violência
policial de hoje. Isso já foi demonstrado até em trabalhos
acadêmicos.
Correio da Cidadania: Finalmente, por que motivos, políticos ou outros,
o governo não seguiu neste rumo, em sua visão? Acredita que a
presidente Dilma ainda possa retomá-lo?
Damião Trindade:
O atual projeto de lei sobre a Comissão Nacional da Verdade é
fruto da correlação de forças políticas
estabelecida no interior do governo Lula e da sua "base aliada" no
Congresso, que incorporou, inclusive, setores reacionários da sociedade
e antigos colaboradores e simpatizantes da ditadura. E, talvez mais importante
que isso, o projeto é fruto do débil grau de convencimento
daquele e deste governo em relação à necessidade
histórica de desvendar-se todos os crimes e criminosos da ditadura.
Fosse esse convencimento maior, e o governo Lula teria adotado essa e outras
medidas arejadoras já no início do seu governo, e não
apenas no último ano do seu segundo mandato presidencial. Fosse esse
convencimento maior, e a atual Presidenta já haveria retirado o projeto
do Congresso para consultas à sociedade, visando ao seu
aperfeiçoamento. Fosse esse convencimento maior, e Lula ou Dilma
já teriam determinado a completa abertura dos arquivos públicos
referentes à ditadura como, aliás, fizeram há vinte
anos os governos de São Paulo, Rio Grande do Sul e de outros estados em
relação aos arquivos dos respectivos DOPS.
Na Argentina, apenas uma semana após tomar posse, o Presidente
Raúl Alfonsín, que estava longe de ser de esquerda, já
criou, por decreto mesmo, a Comisión Nacional sobre La
Desaparición de Personas. No Chile, o Presidente Patricio Ailwin, que
também nunca foi de esquerda, só demorou um mês e meio
após sua posse para também criar sua Comisión Nacional de
Verdad. Na África do Sul, o Presidente Nelson Mandela demorou pouco mais
de um ano para criar a sua Comissão. Sob esse ponto de vista, Lula ficou
muito aquém desses líderes que eram meramente liberais. Faltaram
ao governo Lula convicção e vontade política para adotar
rapidamente uma atitude que, além de ser uma aspiração de
todas as forças democráticas, além de ser uma necessidade
histórica para superarmos realmente os resquícios da ditadura,
era também uma promessa eleitoral. Abrir todos os arquivos, esclarecer e
tornar públicos os crimes da ditadura e punir judicialmente os seus
criminosos são pontos que sempre constaram de todos os programas do
partido capitaneado por Lula.
Vê-se, como sempre, que se conhece melhor o homem e seu partido
quando chegam ao poder. Assim, não há como apagar a
impressão de que o governo Lula só se animou a remeter esse
projeto ao Congresso, mesmo com as limitações apontadas, quando
ficou evidente que o Brasil estava na iminência de ser condenado na Corte
Interamericana de Direitos Humanos, o que de fato aconteceu meses depois, no
final de 2010. Quanto à Presidente Dilma, também não
demorará para sabermos se, nessa questão, haverá ou
não convergência entre discurso e prática.
07/Outubro/2011
Ver também:
PCdoB perdoa os assassinos de todos os que lutaram contra a ditadura!
[*]
Economista, editora do
Correio da Cidadania
;
[**]
Jornalista.
O original encontra-se em
www.correiocidadania.com.br/...
Esa entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
|