Brasil: O processo golpista em curso
"Se as pessoas más fossem mortas, ficariam apenas as boas,
não?". A pergunta foi feita a Mafalda, o genial personagem do
cartunista argentino Quino, por Manolito, um amiguinho dela. Mafalda respondeu
com uma lucidez cortante: "Não. Ficariam apenas os assassinos".
Pois a sugestão de Manolito parece estar sendo posta em prática
pelos bolsonaristas: matar as pessoas supostamente más. Só que os
alvos são os pobres, negros e jovens, moradores de favelas ou periferias
das grandes cidades. Entre janeiro e agosto, só no Rio de Janeiro, cinco
pessoas foram mortas a cada dia pela polícia. A fonte dessa
informação impressionante é a Secretaria de
Segurança Pública.
Em todo o país, as polícias militares estão sendo
estimuladas a humilhar, espancar e matar pobres. Nas 27 unidades da
federação, contam com cerca de 500 mil integrantes, armados e
cada vez mais fascistizados, e têm armamentos altamente letais, como
fuzis e equipamentos como os
caveirões
, que espalham medo e terror entre os pobres. São uma gigantesca reserva
para a extrema direita.
O episódio ocorrido semana passada na favela de
Paraisópolis
, na capital paulista, quando foram assassinados nove moradores pela PM de
São Paulo, é ilustrativo. A defesa que, no primeiro momento,
autoridades estaduais e o governo Bolsonaro fizeram do comportamento dos
policiais envolvidos é vergonhosa. Deixa claro o incentivo para o
assassinato de pobres. Só quando essa posição se mostrou
insustentável trataram de amenizar o discurso. Mas ninguém
acredita que essa mudança terá alguma consequência
prática.
Para assegurar o alinhamento e o apoio político das polícias,
Bolsonaro as compra de duas maneiras: por meio de uma vasta
distribuição de benesses materiais e pela proteção
aos que usam a farda para cometer crimes. É algo parecido com o que faz
com as Forças Armadas,
Assim, num momento em que o sistema de previdência pública
elemento essencial numa sociedade civilizada é desmantelado,
deixando os trabalhadores comuns sem qualquer cobertura, as vantagens de
policiais e militares (assim como as de juízes e outras categorias
privilegiadas) são ampliadas ao extremo. Para eles não vale o
discurso de austeridade.
A bajulação não para por aí. Propostas como o tal
"excludente de ilicitude" para policiais ou integrantes da
Forças Armadas são um claro estímulo à
violência e ao assassinato de pobres em geral.
Ela é, na prática, uma licença para matar que se assemelha
ao "direito" que, na literatura de ficção, encontra
similaridade com as prerrogativas do famoso agente James Bond, o 007, uma
criação do romancista inglês Ian Fleming. Bond fazia parte
de um seleto grupo de agentes secretos britânicos cujo número em
código começava com dois zeros. Estes significavam que aqueles
agentes tinham licença para matar quem se atravessasse no seu caminho.
A bandeira do combate à violência estimulando a letalidade das
ações policiais é um dos carros-chefes da direita.
Aproveitando-se da justa preocupação das pessoas com a
criminalidade urbana cujas raízes principais estão na
exclusão social, nunca é demais dizer a direita
protofascista prega o extermínio dos que classifica como bandidos, ou,
na hipótese mais branda, um rigor ainda maior no Código Penal
para os que escaparem vivos.
Interessante é que essas mesmas pessoas se mostram inteiramente
lenientes e com uma suspeita compreensão no que diz respeito aos crimes
praticados pelas milícias ou por policiais a elas associados. Basta ver
que o
plano de combate à criminalidade, apresentado pelo ministro Sérgio Moro
no início deste ano, praticamente não trata do combate às
milícias. E nem o Ministério Público, nem a Polícia
Federal, conseguem encontrar o miliciano Fabrício Queiroz, amigo
íntimo da família do presidente.
É bom que não se perca de vista que, embora tenha passado pelo
Exército onde, aliás, teve uma carreira pífia e de
onde saiu pela porta dos fundos , Bolsonaro tem uma cabeça muito
mais de miliciano do que de militar.
O fato é que está se conformando mais e mais no Brasil um Estado
policial. As polícias fascistizadas e as milícias tornam-se o
braço armado da extrema direita. São uma tropa de choque que pode
ser mobilizada para golpes de estado ou assassinatos políticos, tal como
ocorreu na morte da vereadora Marielle Franco. O recente golpe na
Bolívia, que depôs Evo Morales, teve nessas polícias e nos
seus amigos paramilitares o seu motor, cabendo ao Exército apenas a
omissão e a "sugestão" ao presidente para que
renunciasse.
Dessa forma, no Brasil, esses contingentes são uma reserva de tropa de
choque para a direitização do país, talvez, mais adiante
para a quebra da institucionalidade e a implantação de uma
ditadura.
Na legitimação e no apoio político a uma saída
desse tipo jogariam papel importante igrejas neopentecostais, cuja
influência é crescente, e emissoras de rádio e TV voltadas
para uma programação popularesca. Tanto umas, como outras,
já tiveram papel importante na busca de apoio para a contrarreforma da
Previdência.
Quando Bolsonaro e os porta-vozes mais próximos entre os quais os
filhos boquirrotos acenam repetidamente com uma reedição
do AI-5 não estão cometendo destemperos verbais. Não se
trata de coincidência, mas da criação das
condições políticas para uma tentativa de
implantação de uma ditadura.
Da mesma forma, são também preparação do terreno
para um fechamento do regime os ataques do núcleo central do
bolsonarismo a instituições conservadores e até
mesmo reacionárias, mas não necessariamente golpistas, como o
Congresso, o Judiciário ou certos veículos da grande imprensa,
como as que integram as Organizações Globo ou a
Folha de S.Paulo.
Assim, o processo golpista pode ou não chegar ao seu objetivo final, mas
já começou a ser desencadeado.
Que ninguém se iluda.
06/Dezembro/2019
[*]
Jornalista
, professor e autor dos livros
Hélio Luz, um xerife de esquerda
(Relume Dumará, 1998),
Gracias a la vida
(José Olympio, 2014) e
Reflexões rebeldes
(José Olympio, 2016) e
Estado policial, como sobreviver
. Organizou, ainda, a coletânea
Meio século de 68 Barricadas, história e política
(Mauad, 2018), juntamente com Felipe Demier.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
|