Meio século do Acto Institucional nº 5
O Ato Institucional no. 5, editado pela ditadura militar em dezembro de 1968,
completa nesta quinta-feira, dia 13 de dezembro, meio século. Trata-se
de recordação sombria de um instrumento autoritário que
abriu espaço para a ditadura aberta de cunho fascista, o terrorismo de
Estado, as prisões, torturas, mortes e desaparecimentos de presos
políticos, verdadeiros crimes de lesa-humanidade que até hoje
não foram punidos no Brasil. Ao completar 50 anos, é fundamental
que as novas gerações, mais de 100 milhões de brasileiros
que não viveram a ditadura, compreendam as barbaridades, a censura aos
meios de comunicações, ao teatro, ao cinema, à
música, à literatura, as perseguições
políticas, cassações de mandatos de parlamentares e
políticos em geral e o clima de terror e medo que caracterizaram o
período ditatorial. Pelos cálculos de diversos historiadores e da
Comissão Nacional da Verdade, no período da ditadura mais de 50
mil brasileiros foram presos, cerca de 7 mil foram exilados, mais de uma
centena banidos, 434 foram mortos ou estão desaparecidos e 800 foram
julgados pelos tribunais militares.
[1]
Vale ressaltar que a ditadura foi implantada em 31 de março de 1964,
quando o presidente João Goulart foi deposto, por meio de um golpe
militar que contou com apoio empresarial, objetivando salvar as classes
dominantes que estavam politicamente derrotadas pela intensa
mobilização popular da época. Por isso implantaram um
regime que subtraiu as liberdades democráticas, impôs o arrocho
salarial, ampliou a desnacionalização da economia, com maior
favorecimento ao capital internacional, e se alinhou à política
de guerra fria no interesse do imperialismo estadunidense, cujo país
forneceu as informações de inteligência, as técnicas
de tortura e apoio diplomático aos golpistas. As principais mazelas que
hoje se expressam na sociedade brasileira têm seu DNA nas medidas que
foram implantadas durante o período ditatorial, especialmente a perversa
distribuição de renda, uma economia de baixos salários,
cuja matriz perdura até hoje, e a ampliação do poder de
uma classe dominante truculenta, antidemocrática e reacionária.
É importante também ressaltar que o golpe militar de 1964
contribuiu para uma mudança de correlação de forças
na geopolítica internacional e abriu espaço para o período
de golpes militares em vários continentes. Como disse o ex-embaixador
dos Estados Unidos, o golpe no Brasil teve o mesmo impacto do Plano Marshall, o
bloqueio de Berlim ou a guerra na Coréia,
[2]
afinal o Brasil tinha a maior economia, a maior população e o
maior território da América Latina. A partir do Brasil, uma onda
de golpe militares se espraiou em várias regiões do mundo, como
em 1965 na Indonésia, onde foram mortos mais de 700 mil pessoas, entre
comunistas, democratas e progressistas em geral. Mas a região em que os
golpes militares mais prosperam foi a América Latina onde, na
década de 70 do século passado, a maioria dos países era
governada por militares, cujo poder resultara de golpes.
Nesse contexto, o Ato Institucional no. 5 foi o aprofundamento das medidas
tomadas anteriormente pelo novo regime, uma espécie de golpe dentro do
golpe, com o objetivo de consolidar o poder dos novos governantes, reordenar a
sociedade, ampliar o poder das classes dominantes e impedir as
manifestações populares. Entre 13 de dezembro de 1968 e 13 de
outubro de 1978, quando foi revogado o ato discricionário, o país
viveu os anos de chumbo com uma ditadura militar fascista aberta,
supressão das liberdades, prisões, tortura e mortes de
opositores, cassação dos direitos políticos de todos
aqueles que a ditadura considerava inconveniente ao regime,
revogação das eleições diretas para presidente,
governadores e prefeitos das capitais, censura generalizada e
construção de uma rede de espionagem que se estendia por todos os
setores da administração pública, escolas, universidades e
locais públicos. Ao mesmo tempo, o processo de
modernização conservadora construiu a ferro e fogo um modelo
econômico de acumulação predatória
[3]
que acelerou o crescimento econômico do país, ampliou a
industrialização, desenvolveu o capitalismo no campo, mas
resultou num verdadeiro apartheid social, com brutal concentração
de renda, que se aprofundou mesmo nos períodos democráticos.
Para compreender a história
Para que as novas gerações compreendam o significado da ditadura
e do AI-5, é importante rememorarmos, mesmo que resumidamente, os
principais acontecimentos que levaram ao golpe e as principais medidas tomadas
pelos militares. Vale lembrar que os primeiros anos da década de 60 do
século passado foram marcados por intensa atividade política,
mobilização sindical e popular em defesa das reformas de base,
uma plataforma de reformas, entre as quais a rural e a urbana, que visava
beneficiar a maioria da população e construir um desenvolvimento
econômico com distribuição de renda. Os setores populares,
organizados no Comando Geral dos Trabalhadores (CGT), nas Ligas Camponesas, na
União Nacional dos Estudantes (UNE) e no Comitê Popular de
Cultura, incluindo também organizações de militares
nacionalistas, de artistas e intelectuais, estavam ganhando a batalha
política e ideológica, e o presidente da República
também era um apoiador das reformas. A burguesia, os
latifundiários e o imperialismo estadunidense estavam na defensiva
diante do avanço da intensa participação popular nos
debates e manifestações de rua. A maioria do povo apoiava as
reformas. Como as classes dominantes não queriam perder os
privilégios seculares, tramaram o golpe com os Estados Unidos e
implantaram a ditadura.
O golpe militar de 1964, pelas consequências que perduram até
hoje, significou a mais profunda e extensa derrota do movimento popular e
democrático no Brasil. A institucionalidade política e a
estrutura econômica montada a partir desse período são
responsáveis pela formatação dos aspectos fundamentais da
sociedade brasileira de agora. O primeiro período da ditadura, que vai
de 1964 a 1968, foi o momento de desmonte da ordem anterior e montagem da nova
ordem, mediante a edição dos chamados institucionais, que davam
poderes extraordinários aos novos mandatários. Entre abril de
1964 e novembro de 1966, o governo editou 838 leis, 5.685 decretos, 3 atos
institucionais e 24 atos complementares.
[4]
Para calar a oposição, a ditadura realizou, nos primeiros meses
após o golpe, milhares de prisões, utilizando-se até de
navios para colocar os prisioneiros. Aboliu a Constituição de
1946, cassou mandatos de parlamentares, governadores, prefeitos, vereadores,
funcionários públicos, sindicalistas e personalidades
progressistas. Estabeleceu eleições indiretas para presidente,
governadores e prefeitos das capitais, colocou o CGT e a UNE na ilegalidade,
extinguiu os partidos políticos, criou um bipartidarismo artificial
(Arena e MDB) e alterou a composição do Supremo Tribunal Federal
para conseguir maioria.
Do ponto de vista econômico e social, a construção da nova
ordem foi feita mediante um conjunto de reformas ortodoxas na área
bancária, financeira tributária, cambial e de comércio
exterior, além de legislação de estímulo ao capital
estrangeiro. Essas reformas prepararam o terreno para o chamado "milagre
econômico", no período de 1968 a 1973, quando as taxas de
crescimento cresceram a uma média anual acima de 11% ao ano. Para
viabilizar a nova ordem entre os trabalhadores, o governo realizou a
intervenção nos sindicatos e nomeou como interventores velhos
pelegos
ligados ao novo regime.
Para se entender a ofensiva contra o movimento
sindical pela ditadura basta dizer que, entre 1964 e 1979, ocorreram 1.202
intervenções em sindicatos, 810 das quais só entre 1964 e
1965, 78 destituições de diretorias, 31
intervenções em processos eleitorais dos sindicatos, com
anulação de pleitos, e 364 dissoluções de entidades
sindicais.
[5]
Essas medidas visavam desmantelar a luta sindical organizada, de forma a impor
a nova política salarial, com reajuste na maioria das vezes abaixo da
inflação, que vigorou praticamente durante todo o período
ditatorial.
Mesmo com todas essas medidas e uma brutal repressão contra as
manifestações de rua, o movimento estudantil se reorganizou,
reconstruiu a UNE mesmo na clandestinidade e promoveu
manifestações de massa pelo país a fora, especialmente em
1968. Nesse ano, as forças da repressão invadiram o restaurante
Calabouço, onde os estudantes pobres normalmente faziam suas
refeições, e matou o estudante Edson Luis de Lima Souto, o que
gerou uma comoção nacional. Foram realizadas passeatas de
protestos em todo o país, sendo que a mais famosa foi a passeata dos 100
mil, realizada no Rio de janeiro, da qual participaram não só
estudantes, mas profissionais liberais, artistas e populares, colocando em
cheque o regime. Também em 1968 foram realizadas duas grandes greves
operárias: na região de Contagem, que paralisou as principais
fábricas da região, em Minas Gerais, e Osasco, em São
Paulo. Esta última paralisou praticamente todas as fábricas dessa
cidade industrial paulista, fazendo com o exército realizasse uma
intervenção na cidade, reprimisse brutalmente os trabalhadores e
prendesse os dirigentes dos sindicatos para sufocar o movimento. No campo
político-parlamentar, o deputado Marcio Moreira Alves fez um discurso
condenando o golpe militar, o que foi considerado ofensivo pelas Forças
Armadas. Eles exigiram a cassação do deputado, mas o Congresso se
recusou. Então, os militares encontraram um pretexto para editar o Ato
Institucional no. 5 (AI-5), que fechou o Congresso e consolidou o regime como
uma ditadura fascista.
Os anos de chumbo e o terror fascista
O AI-5 significou a radicalização da ditadura e consolidou o
poder da chamada linha dura militar, abrindo um período claramente
fascista na história do país. O Ato foi editado no final do
governo do ditador Costa e Silva, que viria logo depois a morrer e ser
substituído brevemente por uma junta militar e, posteriormente, pelo
ditador Emílio Garrastazu Médici, que governou de 1969 a
março de 1974. Para se ter uma ideia da barbárie institucional,
basta relembrar as principais medidas contidas nessa legislação
de exceção. Entre outros pontos podem-se destacar os seguintes:
fechamento do Congresso Nacional, passando os poderes para o presidente da
República, suspensão do habeas corpus, censura prévia aos
meios de comunicação, teatro, cinema, música e artes em
geral, suspensão das garantias constitucionais, dos direitos
políticos e cassação de parlamentares,
proibição de manifestações populares,
autorização de demissões sumárias na
administração pública e transferência de julgamento
das ações políticas que eles denominavam crimes contra a
segurança nacional para tribunais militares. Estavam assim
constituídas as bases legais e ilegais para aquilo que ficou
popularmente conhecido como os anos de chumbo. Ressalte-se que, um dia antes, o
regime já realizava centenas de prisões de oposicionistas, o que
se generalizou após a promulgação do AI-5.
O regime, contestado nas ruas e fustigado pela guerrilha urbana, estruturou uma
poderosa máquina de espionar e matar, aliada a uma máquina de
alienar. Uma parte da máquina repressiva já estava estruturada no
Serviço Nacional de Informações (SNI), criado logo
após o golpe e nos antigos Departamentos de Ordem Política e
Social (DOPS), que existiam em vários Estados, especialmente em
São Paulo, onde também foi criada pelos militares a
Operação Bandeirantes, um órgão operacional da
repressão financiado por grandes empresas. Posteriormente, a ditadura
reorganizou e centralizou todos os órgãos de repressão a
partir de dois instrumentos básicos: os Centros de
Operações de Defesa Interna (CODI) e os Destacamentos de
Operações Internas (DOI), duas organizações que se
especializaram nas prisões, tortura institucionalizada, coleta de
informações, desmantelamento dos grupos guerrilheiros e
perseguição a todos que fizessem oposição à
ditadura. Grande parte desses agentes da repressão foi treinada pela
CIA, especialmente os oficiais, na Escola das Américas, e também
por forças de inteligência do exército inglês e
francês. Um conhecido agente da CIA, Dan Mitrione, deu aulas
práticas de tortura no Brasil, tendo como cobaias presos
políticos, e se gabava de ensinar a tortura científica:
"aplicar a dor na dose certa, com a intensidade exata, no local mais
apropriado, para extrair a maior quantidade de informações".
Foi capturado no Uruguai pelos guerrilheiros Tupamaros e executado em agosto de
1970.
Não satisfeitos com esses instrumentos paralegais da repressão, o
regime também criou centros clandestinos de tortura e morte de
militantes, como a Casa da Morte, em Petrópolis, a Boate Querosene, no
interior de São Paulo, os mais tristemente famosos, além de
outros sítios. Nesses locais eram levados os presos que eles
consideravam mais perigosos, os quais tinham poucas opções
além de trair ou morrer. Eram torturados por 10, 15, 20 dias
ininterruptos da forma mais bárbara possível. O objetivo era
"virar" os presos, ou seja, transformá-los em agentes da
repressão para depois se infiltrarem em suas antigas
organizações e delatar os companheiros. Na Casa da Morte, por
exemplo, de todos que passaram por lá, sobreviveu apenas uma
prisioneira, Inês Etienne Romeu. Assim mesmo, um dos chefes dos
torturadores, o coronel Paulo Malhães, disse em depoimento na
Comissão da Verdade que ela sobreviveu porque seus colegas não
souberam fazer o serviço direito. Na Boate Querosene praticamente todos
morreram, a não ser os que traíram, como o agente Vinicius
(Severino Teodoro Melo, membro do Comitê Central e militante desde 1935),
traidor do PCB e responsável pela delação e morte de mais
de dois terços dos integrantes do Comitê Central assassinados na
tortura, e o agente Camilo, na verdade Natanael de Moura Girardi (guerrilheiro
treinado em Cuba), responsável pela morte e desbaratamento de
praticamente todo o Molipo (Movimento de Libertação Popular),
dissidência da ALN organizada em Cuba. Quase todos foram mortos quando
regressaram e foram presos no Brasil.
[5]
Um dos pouquíssimos sobreviventes dessa organização
é o ex-ministro da Casa Civil do governo Lula, José Dirceu.
Os algozes da repressão brasileira tinham uma lei macabra: todos aqueles
que fizeram treinamento de guerrilha em Cuba, nos países do Leste ou na
China, os banidos (trocados no sequestro de embaixadores) que retornassem ao
país ou os acusados de crimes de morte estavam marcados para morrer.
Praticamente todos os que foram presos nessa categoria foram assassinados. Os
métodos utilizados pelos algozes para obter informações
não ficavam nada a dever aos nazistas: pau-de-arara, choques
elétricos na boca, testículos, ouvidos, afogamentos com
água e também com urina, privação do sono,
exposição a altas e baixíssimas temperaturas, espancamento
dos mais variados tipos, palmatória na sola dos pés, das
mãos e nas costas, "telefones" (pancada com as duas
mãos no ouvido que provocava o rompimento dos tímpanos), soro da
verdade, isolamento prolongado com sons estridentes nas celas escuras,
privação de água e comida, estupros, entre outras
atrocidades. Para encobrir as barbaridades, os algozes inventavam uma
série de dissimulações, "teatrinhos",
notícias falsas, tais como "morreu em confronto com a
polícia", "foi atropelado quando tentava fugir",
"nunca esteve nas dependências da polícia", dentre
outras falsas alegações.
Para completar os horrores, e como os mortos eram muitos, a repressão
decidiu desaparecer com os corpos dos torturados e mortos. Para tanto, muitos
eram jogados em rios ou no mar, sem antes, como declarou cinicamente o coronel
Malhães, um dos torturadores da Casa da Morte em depoimento,
arrancar-lhes os dentes, parte dos dedos para encobrir as impressões
digitais, além de colocar cimento ou pedras em seus estômagos para
que não boiassem. Muitos corpos também eram esquartejados e
enterrados em locais diferentes para dificultar a identificação,
outros eram enterrados em valas comuns para indigentes, como na conhecida Vala
Clandestina de Perus, no cemitério Dom Bosco, na zona Norte de
São Paulo, onde foram encontradas várias ossadas de prisioneiros
mortos (a última encontrada recentemente foi a do líder sindical
bancário e da VPR, Aluísio Palhano). Não se pode esquecer
também que havia médicos que assinavam atestados de óbitos
com causa mortis falsas, de acordo com as conveniências dos torturadores.
Um dos legistas mais conhecidos nessas práticas foi o médico
Harry Shibata, um verdadeiro Dr. Mengele brasileiro.
Quando a guerrilha urbana já estava derrotada, o regime militar se
voltou contra o Partido Comunista Brasileiro (PCB), a única
organização que não aderira à luta armada e que
tinha elaborado, ainda em 1967, no seu VI Congresso, a estratégia de
frente democrática para derrotar a ditadura e que possuía fortes
vínculos orgânicos com o movimento operário e a juventude.
Para o novo ditador e seus estrategistas a chamada abertura lenta e gradual
não poderia ser realizada com a emergência de um PCB forte e
vinculado às massas. Por isso, autorizaram o massacre do PCB,
através da Operação Radar, que tinha como objetivo
eliminar os principais dirigentes do Comitê Central e desbaratar a
organização. Um documento do comando da inteligência
militar, denominado "Neutralizar o PCB" apontava quais as
instâncias e os responsáveis por elas que deveriam ser eliminados,
uma vez que na prática neutralizar significava matar. Nessa ofensiva,
entre os anos de 1974, 1975 e início de 1976 foram assassinados na
tortura um terço do Comitê Central, muitos com
injeções de matar cavalo, como o secretário
político da Juventude Comunista, José Montenegro de Lima, outros
com as mais selvagens torturas. Seus corpos desfigurados, sem dentes e sem
digitais, com pedras amarradas ao estômago jazem em algum rio da
região da Grande São Paulo. Praticamente todos os integrantes das
direções regionais foram presos, bem como e cerca de dois mil
militantes, a grande maioria torturados.
Geisel e a autorização para matar
Para se compreender a selvageria, é importante citar dois casos
simbólicos: quando retornava do exterior, o dirigente do PCB, Davi
Capistrano, foi preso na fronteira do Rio Grande do Sul e levado para a Casa da
Morte. Torturado durante vários dias, Capistrano não deu nenhuma
informação aos seus algozes e foi assassinado. Seu corpo foi
esquartejado e pendurado em ganchos como gado, conforme anotações
recolhidas postumamente de um agente da repressão e transformadas em
livro pela jornalista Tais Moraes.
[7]
Depois, os restos mortais de Capistrano foram levados e jogados nos fornos da
Usina Cambahyba, em Campos, no interior do Rio de Janeiro, onde também a
repressão cremou os corpos de vários militantes de outras
organizações assassinados naquela casa macabra.
[8]
O outro caso simbólico é o do dirigente do PCB, Elson Costa.
Torturado brutalmente durante mais de 20 dias, em frangalhos e todo
desfigurado, os torturadores jogaram álcool em seu corpo e lhe deram
duas opções: se transformar em policial ou morrer. Como
permaneceu firme em sua disposição de manter os segredos do
Partido e não trair sua organização, os facínoras
atearam fogo em seu corpo, matando-o lentamente.
[9]
Ao contrário do que as pessoas podem imaginar, essas mortes não
foram resultados de acidentes ou de sadismo desse ou daquele torturador (o que
também existia), mas de uma ofensiva seletiva da repressão para
matar os principais dirigentes do PCB. Recente documento revelado pela
Agência Central de Inteligência dos Estados Unidos (CIA) informa
sobre uma reunião dos chefes do CIE (Centro de Informações
do Exército), com Ernesto Geisel, que estava assumindo o comando da
ditadura naquele momento. Na reunião, os comandantes da
inteligência apresentaram um balanço do trabalho e dos
métodos utilizados pelos órgãos da repressão
até aquela data (quando já se contabilizavam 104
execuções) e queriam saber se poderiam continuar matando atuando
da mesma forma. Geisel pediu um tempo para pensar e dias depois autorizou os
assassinatos políticos, com duas condições: só
seriam mortos os chamados elementos mais perigosos e todas as
execuções deveriam passar pelo crivo do chefe do SNI, João
Batista Figueiredo.
[10]
Esse documento é a prova cristalina de que a barbárie realizada
nos porões da repressão não era de iniciativa dos
desequilibrados ou sádicos lá presentes, mas um processo que
tinha o aval dos principais comandantes e do ditador da República.
À máquina de matar, também se aliava a máquina de
alienar, de forma a construir um clima de normalidade e estabilidade no
país. Como se dizia na época, o Brasil era uma "ilha da
tranquilidade, numa conjuntura internacional de conflitos". Buscava-se
criar uma espécie de unanimidade nacional forçada, na qual todos
aqueles que não apoiassem o regime eram considerados suspeitos ou
inimigos. Enquanto se comemoravam os êxitos do "milagre
econômico" e nos porões se moíam os militantes e se
punham cartazes nas ruas com os retratos dos revolucionários procurados,
a Agência Especial de Relações Públicas (AERP)
massificava propaganda patrioteira nos meios de comunicação com
slogans tipicamente fascistas, tais como "Brasil, Ame-o ou Deixe-o",
"Brasil, terra que Deus abençoou", visando criar um clima de
nacionalismo artificial, inclusive aproveitando-se do fato de que o Brasil fora
campeão de futebol do mundo em 1970. Começaram também a
aparecer os cantores chapa branca, como Dom e Ravel, com os hits "Eu te
amo meu Brasil", "Ninguém segura a juventude do Brasil" e
marchinhas como "Prá frente Brasil", entre outras. Nas
universidades implantavam-se as aulas de educação moral e
cívica, implementava-se o acordo MEC-USAID e, com o decreto 477, os
reitores estavam de mãos livres para expulsar qualquer aluno que em sua
visão estivessem desenvolvendo atividades ditas subversivas.
A censura à cultura, às artes e a perseguição
à ciência
A censura à cultura em geral, ao cinema, à música, ao
teatro, à literatura, às artes plásticas, aos meios de
comunicação, como a imprensa, a televisão, o rádio,
bem como a perseguição à ciência ampliaram o
controle da ditadura sobre praticamente toda a vida social. A ditadura queria
controlar tudo, dificultar a circulação de ideias
contrárias ao regime, censurar a criatividade e prender os artistas que
não se enquadrassem na nova ordem. De acordo com levantamento realizado
pelo jornalista Zuenir Ventura, no período de vigência do AI-5,
mais de 500 letras de música, 500 filmes, 450 peças de teatro e
200 livros foram vetados ou cortados em parte pela famosa Divisão de
Censura de Diversões Públicas, organismo a partir do qual eram
realizadas as operações de sufocamento da cultura e das
liberdades democráticas. O rigor e a bizarrice dos censores, que
não tinham as mesmas condições intelectuais que os
artistas criadores, muitas vezes levavam a certos recalques e pequenas
vinganças contra os artistas, chegando a situações
risíveis como proibir a divulgação do poema de Mario de
Andrade, "Ode ao burguês", só porque tinha essa
palavrinha mágica.
Com relação à imprensa escrita, desde a
edição do AI-5 os censores passaram a se instalar dentro das
redações, onde tinham uma mesa a partir da qual censuravam todas
as matérias que consideravam contrárias ao governo. Jornais como
O Estado de São Paulo
e
Jornal do Brasil,
diante da impossibilidade de colocar textos novos no lugar dos censurados,
tiveram que recorrer a estratégias como publicar receitas de bolo,
condições climáticas, poemas de Camões, o que
também era uma forma indireta de protestar contra a censura. Jornais
progressistas como
O Pasquim
e
Opinião
eram censurados com rigor especial e muitas vezes tinham que fazer um volume
de matérias correspondente a duas ou três edições
para que pudessem publicar apenas uma. Até mesmo as revistas em
quadrinhos eram censuradas, como o
Fradim,
de autoria de Henfil. A televisão e o rádio eram alvos especiais
dos censores, em função da popularidade desses dois meios de
comunicação. Os telejornais eram censurados e até as
novelas foram proibidas, como o Bem Amado, de Dias Gomes, que só foi
exibida dez anos depois de censurada. Autores como Cassandra Rios, Rubens
Fonseca e até Eça de Queiroz (O crime do padre Amaro) não
escaparam ao crivo dos censores. O teatro também foi muito censurado e a
peça Roda Viva, de Chico Buarque, foi atacada pelo Comando de
Caça aos Comunistas, tendo o cenário depredado e os atores
espancados. O cinema, particularmente os autores do Cinema Novo, tiveram
dezenas de filmes censurados, muito dos quais só foram exibidos
após a abertura e a anistia. Até mesmo a ciência foi muito
perseguida pela ditadura: 471 cientistas foram perseguidos, perderam seus
empregos ou se exilaram, setores inteiros do Instituto Manguinhos da Fiocruz
foram desmantelados e ocorreu demissão em massa na Universidade de
Brasília.
Mas a Música Popular Brasileira (MPB) e seus principais autores
mereceram uma atenção especial da censura. Autores como Milton
Nascimento, Raul Seixas, Taiguara tiveram dezenas de músicas censuradas.
Outros autores como Rita Lee, Belchior, Tom Jobim, Vinícius de Moraes
também foram censurados e até alguns cantores-compositores,
considerados bregas, como Odair José, foram vítimas da censura.
Caetano Veloso e Gilberto Gil não só tiveram várias de
suas músicas censuradas, como foram presos e depois obrigados a se
exilar em Londres. Mas os inimigos principais da ditadura na área
musical eram os cantores-compositores Geraldo Vandré e Chico Buarque de
Holanda. O primeiro, com sua música "Prá não dizer
que não falei de flores", que se tornou uma espécie de hino
contra a ditadura, teve que se exilar na Europa. Já Chico Buarque de
Holanda, que também se auto-exilou na Itália durante um
período, foi provavelmente o mais perseguido pela censura. Chegou a um
ponto tal em que Chico precisou usar o pseudônimo de Julinho de Adelaide
para poder ter as músicas liberadas e driblar a censura, uma vez que era
o cabeça de uma lista de compositores perseguidos pelo regime.
Também Taiguara usou do mesmo artifício para ter suas
composições liberadas. Quando o governo se deu conta, passou a
exigir RG e CPF dos compositores.
O ato Institucional no. 5 foi revogado em dezembro de 1978 quando o movimento
social, a partir das greves do ABC, dava os seus primeiros passos e
posteriormente se transformaria no principal polo de resistência à
ditadura. Depois veio a anistia, instrumento que possibilitou a
libertação dos presos políticos e a volta dos exilados,
mas que ao mesmo tempo anistiava também os torturadores, o que tem sido
o principal pretexto das forças conservadoras para que não se
punam os crimes de lesa-humanidade cometidos pelos torturadores e seus
mandantes. No início da década de 80 o movimento
democrático avançava, enquanto a ditadura perdia forças e
iniciativa política, até que foi substituída por um
governo civil, num arranjo negociado entre militares, setores
democráticos e as elites, gerando compromissos que impediram o ajuste de
contas da sociedade com esse período sombrio.
Cinquenta anos depois as novas gerações precisam conhecer a
verdade sobre aqueles tempos sombrios para não serem enganadas ou
embarcarem em aventuras autoritárias. Nada como conhecer o passado para
não se repetir tragédias no futuro!
[1] Relatório da Comissão Nacional da Verdade, criada para apurar
os crimes da ditadura.
[2] Filho, L. V. O governo Castelo Branco. Rio de Janeiro: Jose Olympio, 1974.
[3] Costa. E. A política Salarial no Brasil. São Paulo: Boitempo,
1977.
[4] Revista Desenvolvimento e Conjuntura, citada em Araújo, N. A Crisis
e Lucha de Clases em Brasil 1974-1979. Tese de doutoramento. UNAM,
México.
[5] Moreira Alves, M. H. Estado e oposição no Brasil
1964-1984. Vozes, 1984.
[6] Godoy, Marcelo. A casa da vovó Uma biografia do DOI-CODI
(1969-1991), o centro de sequestro, tortura e morte da ditadura militar.
São Paulo: Alameda, 2014.
[7] Morais, T. Sem Vestígios. São Paulo: Geração
Editorial, 2010.
[8] Guerra, C. Memória de uma guerra suja. Depoimento em forma de livro
aos repórteres Marcelo Neto e Rogério Medeiros. Rio de Janeiro
TopBooks, 2012.
[9] Godoy. M. op. cit.
[10] Documento elaborado pelo diretor da CIA, Egan Colby em 1974 e
endereçado ao secretário de Estado Henry Kissinger e tornado
público pelo governo dos EUA. Foi descoberto pelo pesquisador Matias
Spektor, da Fundação Getúlio Vargas.
12/Dezembro/2018
[*]
Secretário geral do Partido Comunista Brasileiro (PCB)
O original encontra-se em
pcb.org.br/portal2/21634/meio-seculo-de-ai-5-ditadura-nunca-mais/
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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