A que chamamos paz?
Estou totalmente encantada por receber o Prémio da Paz de Sydney. Mas
devo aceitá-lo como um prémio literário que honra uma
escritora pelos seus escritos, porque ao contrário das muitas virtudes
que me são falsamente atribuídas, não sou uma activista,
nem a dirigente de algum movimento de massas, e não sou certamente a
voz dos sem voz. (Sabemos, é claro, que não existe
tal coisa como os sem voz. Há apenas os deliberadamente
silenciados, ou os preferivelmente não ouvidos).
Sou uma escritora que não pode alegar representar outra coisa senão a si
própria. Assim, mesmo que gostasse, seria presunçoso da minha
parte dizer que aceito este prêmio em nome daqueles que estão
envolvidos na luta dos impotentes e dos despossuídos contra os
poderosos. Posso, contudo, dizer que o aceito como a expressão da
solidariedade da Fundação da Paz de Sydney com um certo tipo de
política, uma certa visão do mundo, que milhões de
nós em todo o mundo subscrevemos?
Pode parecer irônico que a uma pessoa que passa muito do seu tempo
pensando em estratégias de resistência e conspirando para
perturbar a paz aparente, lhe seja dado um prêmio da paz. Lembrem-se que
venho de um país essencialmente feudal e há poucas coisas
mais inquietantes do que uma paz feudal. Às vezes há verdade nos
velhos clichês. Não pode haver paz verdadeira sem justiça.
E sem resistência, não haverá justiça.
Atualmente, não é apenas a justiça em si, mas a
própria idéia de justiça que está sob ataque. O
assalto contra sectores frágeis e vulneráveis da sociedade
é ao mesmo tempo tão completo, tão cruel e tão
astuto tudo abrangendo e contudo alvejando especificamente,
descaradamente brutal e contudo inacreditavelmente insidioso que o seu
atrevimento absoluto corroeu a nossa definição de justiça.
Forçou-nos a baixar os olhos e a diminuir as nossas expectativas. Mesmo
entre os bem intencionados, o expansivo, magnífico conceito de
justiça tem sido gradualmente substituído pelo reduzido e muito
mais frágil discurso dos direitos humanos.
Se pensarmos bem, trata-se de uma mudança alarmante de paradigma. A
diferença é que as noções de igualdade e de
paridade têm sido esvaziadas e retiradas da equação.
É um processo de atrito. Quase inconscientemente, começamos a
pensar em justiça para os ricos e em direitos humanos para os pobres.
Justiça para o mundo corporativo, direitos humanos para as suas
vítimas. Justiça para os americanos, direitos humanos para
afegãos e iraquianos. Justiça para as castas mais altas da
Índia, direitos humanos para os dalits e adivasis (quando muito).
Justiça para os australianos brancos, direitos humanos para os
aborígenes e imigrantes (a maioria das vezes nem isso).
Está ficando cada vez mais claro que a violação dos
direitos humanos é uma parte inerente e necessária do processo de
implementação de uma estrutura política e econômica
coerciva e injusta no mundo. Crescentemente, as violações contra
os direitos humanos são mostradas como a falha infeliz, quase acidental,
de um sistema político e econômico que, de outro modo, é
perfeitamente aceitável. Como se essas violações fossem um
pequeno problema que pode ser varrido do mapa com um pouco mais de
atenção de parte de algumas organizações não
governamentais.
É por isso que em áreas de grandes conflitos na Caxemira e
no Iraque, por exemplo os profissionais de direitos humanos são
vistos com um certo grau de suspeita. Muitos movimentos de resistência de
países pobres, lutando contra grandes injustiças e questionando
os princípios subterrâneos do que é chamado de
libertação e desenvolvimento, vêem
as organizações não governamentais de direitos humanos
como missionários contemporâneos que vieram aparar as arestas mais
feias do imperialismo. Para neutralizar a ira política e manter o status
quo.
Foi apenas há algumas semanas que uma maioria de australianos votou para
reeleger o primeiro-ministro John Howard que, entre outras coisas, conduziu a
Austrália a participar da invasão e ocupação
ilegais do Iraque. Essa invasão entrará seguramente para a
história como uma das guerras mais covardes jamais travadas. Foi uma
guerra na qual um bando de nações ricas, com armas nucleares
suficientes para destruir o mundo inúmeras vezes, cercaram uma
nação pobre, falsamente acusada de ter armas nucleares, usaram as
Nações Unidas para forçar o seu desarmamento,
invadiram-na, ocuparam-na e estão agora no processo de vendê-la.
Falo do Iraque, não porque toda a gente está falando nisso,
(tristemente a custo de deixar outros horrores noutros lugares desenrolando-se
no escuro), mas porque é o sinal de coisas que estão por vir. O
Iraque marca o início de um novo ciclo. Oferece-nos uma oportunidade de
observar a conspiração corporativo-militar que passou a ser
conhecida como o Império em ação. No novo
Iraque, arregaça as mangas.
À medida que a batalha pelo controle dos recursos do mundo se
intensifica, o colonialismo econômico, por meio da agressão
militar oficial, ensaia uma volta à cena. O Iraque é a
culminação lógica do processo de
globalização corporativa, no qual se fundiram o neocolonialismo e
o neoliberalismo. Se pudéssemos espiar através de uma fresta da
cortina de sangue, vislumbraríamos as impiedosas
transações que ocorrem nos bastidores.
Invadido e ocupado, o Iraque teve que pagar 200 milhões de
dólares em reparações correspondentes a lucros
perdidos por corporações como: Halliburton, Shell, Mobil,
Nestlé, Pepsi, Kentucky Fried Chicken e Toys R Us. Isso sem contar os
125 mil milhões de dívida soberana que forçaram o
país a voltar-se para o FMI, que o aguardava nas suas asas como o anjo
da morte, com o seu programa de ajuste estrutural. (Embora, no Iraque,
não pareçam restar muitas estruturas passíveis de
ajustamento. Excepto a difusa Al Qaeda.)
No novo Iraque, a privatização desbastou terra virgem. O
exército dos EUA recruta cada vez mais mercenários privados para
ajudar na ocupação. A vantagem com os mercenários é
que, quando morrem, não são incluídos na contagem de
corpos dos soldados dos EUA. Ajuda a gerir a opinião pública, o
que é particularmente importante num ano de eleições.
As prisões foram privatizadas. A tortura foi privatizada. Vimos a que
isso conduz. Outras atrações no novo Iraque incluem o
encerramento de jornais. Estações de televisão
bombardeadas. Jornalistas mortos. O único tipo de resistência que
conseguiu sobreviver é tão demente e brutal como a própria
ocupação. Há aí espaço para uma
resistência secular, democrática, feminista, não-violenta
no Iraque? Na verdade, não há.
É por isso que recai sobre aqueles de nós que vivem fora do
Iraque a criação de uma resistência de massas, secular e
não-violenta à ocupação dos EUA. Se falharmos em
fazer isso, então corremos o risco de permitir que a idéia de
resistência seja sequestrada e amalgamada com o terrorismo e isso seria
uma pena porque não são a mesma coisa.
Assim, o que significa paz neste mundo selvagem, corporativizado e
militarizado? O que significa paz num mundo onde um sistema entrincheirado de
apropriação criou uma situação em que países
pobres que têm sido pilhados por regimes colonizadores durante
séculos estão afogados em dívidas aos mesmos países
que os pilharam? E têm de repagar essa dívida a uma taxa de 382
milhares de milhões de dólares por ano?
O que significa paz num mundo em que a riqueza combinada dos 587
bilionários do mundo excede o produto interno bruto combinado dos 135
países mais pobres do mundo? Ou quando países ricos que pagam
subsídios agrícolas de um milhar de milhão de
dólares por dia tentam e forçam países pobres a abandonar
os seus subsídios?
O que significa paz para as pessoas no Iraque, na Palestina, na Caxemira, no
Tibete e na Chechénia ocupados? Ou para o povo aborígine da
Austrália? Ou para os ogonis da Nigéria? Ou para os curdos na
Turquia? Ou para os dalits e adivasis da Índia? O que significa paz para
os que não são muçulmanos em países
islâmicos, ou para as mulheres no Irã, na Arábia Saudita e
no Afeganistão?
O que significa paz para os milhões de pessoas que estão sendo
desarraigadas das suas terras para a construção de barragens e
projetos de desenvolvimento?
O que significa paz para os pobres que estão sendo ativamente roubados
dos seus recursos e para quem a vida de todos os dias é uma batalha
agreste por água, abrigo, sobrevivência e, acima de tudo, alguma
semelhança com dignidade? Para eles, paz é guerra.
Sabemos perfeitamente quem se beneficia com a guerra na era do Império.
Mas precisamos também nos perguntar quem se beneficia da paz na era do
Império? Negociar com a guerra é criminoso. Mas falar de paz sem
falar de justiça poderia facilmente tornar-se a defesa de um certo tipo
de capitulação. E falar de justiça sem desmascarar as
instituições e os sistemas que perpetuam a injustiça
é muito mais que hipocrisia.
É fácil culpar os pobres por serem pobres. É fácil
acreditar que o mundo é vítima de uma espiral crescente de
terrorismo e guerra. É isso que permite ao presidente norte-americano
dizer: «Ou estão conosco ou estão com os terroristas».
Mas nós sabemos que essa é uma escolha falsa. Sabemos que o
terrorismo não é mais do que a privatização da
guerra. Que os terroristas são os livres mercadores da guerra. Eles
crêem que o uso legítimo da violência não é
prerrogativa exclusiva do estado.
É mentiroso fazer uma distinção moral entre a
indescritível brutalidade do terrorismo e a carnificina indiscriminada
da guerra e da ocupação. Ambos os tipos de violência
são inaceitáveis. Não podemos apoiar uma e condenar a
outra.
A verdadeira tragédia é que a maioria das pessoas no mundo
está encurraladas entre o horror de uma paz aparente e o terror da
guerra. Esses são os dois íngremes penhascos em que estamos
encurralados. A questão é: como sair fora desta fenda profunda?
Para aqueles que estão materialmente prósperos, mas moralmente
desconfortáveis, a primeira questão que devem fazer a si
próprios é se querem realmente sair fora dela. Até onde
estão preparados para ir? A fenda tornou-se confortável demais?
Se realmente quiserem sair fora, há boas e más notícias.
A boa notícia é que um grupo avançado começou a
sair há algum tempo. Já está meio caminho acima. Milhares
de ativistas em todo o mundo trabalharam duro preparando apoios para os
pés e segurando as cordas para tornar a subida mais fácil para o
resto de nós. Não há apenas um caminho de saída.
Há centenas de vias para lá chegar. Há centenas de
batalhas a serem travadas em todo o mundo que precisam das vossas capacidades,
das vossas mentes, dos vossos recursos. Nenhuma batalha é irrelevante.
Nenhuma vitória é demasiado pequena.
A má notícia é que demonstrações coloridas,
marchas de fim-de-semana e viagens anuais ao Fórum Social Mundial
não são suficientes. Têm de existir atos dirigidos de
verdadeira desobediência civil, com reais consequências. Talvez
não possamos acionar um interruptor e conjurar uma
revolução. Mas há várias coisas que
poderíamos fazer. Por exemplo, poderíamos fazer uma lista das
corporações que lucraram com a invasão do Iraque. Poderiam
nomeá-las, boicotá-las, ocupar os seus escritórios e
forçá-los a abandonar o negócio. Se pode acontecer na
Bolívia, pode acontecer na Índia. Pode acontecer na
Austrália. Porque não?
Isso é apenas uma pequena sugestão. Mas lembrem-se que, se a luta
resultasse em violência, perderia visão, beleza e
imaginação. E mais perigoso que tudo, marginalizaria e
eventualmente vitimizaria as mulheres. E uma luta política que
não tem as mulheres no seu cerne, acima, abaixo e por dentro não
é luta nem é nada.
O ponto é que a batalha deve ser assumida. Como o maravilhoso
historiador americano Howard Zinn afirmou: não podemos ser neutros num
combóio em andamento.
25/Nov/2004
[*]
Extraído da palestra feita pela escritora indiana Arundhati Roy ao
receber o Premio da Paz de Sidney 2004.
O original encontra-se em
http://www.planetaportoalegre.net/041125_2.htm.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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