Matar à fome: Há que reverter a política alimentar de imediato!
por GRAIN
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Se bem que grandes fortunas estejam a ser feitas com os fertilizantes, isto é apenas uma ocupação secundária para a Cargill. Os seus maiores lucros provêm do comércio global em commodities agrícolas, os quais, juntamente com uns poucos outros grandes comercializadores, ela quase monopoliza. Em 14 de Abril de 2008 a Cargill anunciou que os seus lucros no comércio de commodities no primeiro trimestre de 2008 foram 86% mais elevados do que no mesmo período em 2007. "A procura por alimentos nas economias em desenvolvimento e por energia à escala mundial está a promover a procura de bens agrícolas, ao mesmo tempo que dinheiro de investimento fluiu para dentro dos mercados de commodity ", disse Greg Page, presidente da Cargill e responsável executivo chefe. "Os preços estão a chegar a novas alturas e os mercados estão extraordinariamente voláteis. Neste ambiente, a equipe da Cargill fez um trabalho excepcional medindo e avaliado o risco de preço, e administrando o grande volume de cereais, sementes oleaginosas e outras commodities que se movem globalmente através das nossas cadeias de abastecimento para os clientes". [16] Tabela 2. Aumentos dos lucros de algumas das maiores comercializadoras de cereais do mundo
[*] Os dados referem-se apenas à divisão Agri-Marine da Marubeni. Não consta nesta lista a Louis Dreyfus (França), um comercializador privado de commodities agrícolas com vendas anuais que excedem os US$22 mil milhões, pois não relata os seus lucros. Administrar e avaliar não é tão difícil para uma companhia como a Cargill, com a sua posição de quase monopólio e uma equipe global de analistas do tamanho de uma agência da ONU. Na verdade, todos os grandes comercializadores estão a ter lucros récordes. A Bunge, outro grande comercializador alimentar, viu os seus lucros no último trimestre fiscal de 2007 aumentarem US$245 milhões, ou 77%, em comparação com o mesmo período do ano anterior. Os lucros de 2007 registados pela ADM, o segundo maior comercializador de cereais do mundo, ascenderam 65% até um récorde de US$2,2 milhões de milhões. A Charoen Pokphand Foods da Tailândia, um actor principal na Ásia, está a prever um crescimento da receita de 237% este ano. Os grandes processadores de alimentos do mundo, alguns dos quais são eles próprios comercializadores de commodities, também estão a encaixar. As vendas globais da Nestlé cresceram 7% no ano passado. "Nós vimos a aproximação disto, assim nós nos acautelámos (hedged) através da compra antecipada de matérias-primas", diz François-Xavier Perroud, porta-voz da Nestlé. [17] As margens também estão altas para a Unilever. "As pressões das commodities também aumentaram agudamente, mas nós conseguimos compensar isto com êxito através de acção atempada sobre os preços e as entregas contínuas dos nossos programas de poupança", diz Patrick Cescau, presidente-executivo do Grupo Unilever. "Não sacrificaremos nossas margens e fatia de mercado". [18] As corporações alimentares não parecem estar a obter estes lucros dos retalhistas. O supermercado britânico Tesco relata uma alta de lucros de 12,3% no ano passado, uma ascensão récorde. Outros grandes retalhistas, tais como o Carrefour da França e o Wal-Mart dos EUA, dizem que as vendas de alimentos são o principal factor de sustentação dos seus aumentos de lucros. [19] A divisão mexicana da Wal-Mart, que manipula um terço da vendas alimentares totais do México, relatou um aumento de 11% nos lucros do primeiro trimestre de 2998. (Ao mesmo tempo, mexicanos estão a efectuar manifestações nas ruas porque já não podem permitir-se fazer tortillas. [20] ) Parece que praticamente todos os actores corporativos na cadeia alimentar global estão a fazer uma fortuna com a crise alimentar. As companhias de sementes e agro-químicos também estão a sair-se bem. A Monsanto, a maior companhia de sementes do mundo, relatou um aumento de 44% nos lucros totais em 2007. [21] A DuPont, a segunda maior, disse que os seus lucros em 2007 com as sementes aumentaram 19%, ao passo que a Syngenta, o principal fabricante de pesticidas e a terceira maior companhia de sementes, viu os seus lucros ascenderem 28% no primeiro trimestre de 2008. [22] Tais lucros récordes nada têm a ver com qualquer novo valor que estas corporações estejam a produzir e não são acasos inesperados de uma mudança súbita na oferta e procura. São, ao invés, um reflexo do poder extremo que estes intermediários acumularam através da globalização do sistema alimentar. Intimamente envolvidas com a moldagem das regras comerciais que governam o sistema alimentar de hoje e firmemente no controle dos mercados e dos sistemas financeiros cada vez mais complexos em que opera o comércio global, estas companhias estão numa posição perfeita para transformarem a escassez alimentar em lucros imensos. As pessoas têm de comer, seja a que custo for. A necessidade urgente de um repensar da política O pano de fundo mais amplo desta perversa situação do mercado alimentar é o sistema financeiro global, o qual está agora a balouçar no seu frágil eixo. Aquilo que começou como um colapso localizado dos empréstimos habitacionais nos EUA em 2007 desandou em algo muito mais sério, pois o povo percebe que os imperadores do sistema financeiro global andam em cuecas. A economia mundial está a viver sobre dívidas que ninguém pode pagar. Enquanto os banqueiros centrais e os executivos que se deslocam em jactos Lear tentam remendar os buracos e restaurar a confiança, a verdade subjacente é que o sistema está próximo à bancarrota e nenhum poder quer tomar as medidas duras necessárias: nem o FMI, nem o Banco Mundial, nem os líderes dos países mais poderosos do mundo. Não se pode esperar mais do que faíscas de relações públicas da reunião do G8 em Junho. Problemas semelhantes jazem no núcleo da crise alimentar: uma elite ideologicamente conduzida forçou países a desarticular mercados abertos e permitir o andamento do livre mercado, de modo que umas poucas mega-corporações, investidores e especuladores podem arrecadar enormes retornos. Muitos países perderam o mais básico dos poderes: a capacidade de se alimentarem a si próprios. Esta perda, a par da corrupção que pragueja nossos países e sistemas comerciais, mostra que o neoliberalismo perdeu qualquer legitimidade que alguma vez possa ter tido. Uma medida de quão desligados estes ideólogos estão é o facto de muitos deles agora apelarem abertamente por mais liberalização como solução para a crise alimentar, com alguns a proporem mesmo que as regras da OMC sejam mudadas a fim de impedir os países de imporem restrições às exportações alimentres. [23] O presidente do Banco Mundial, Robert Zoellick, tentou ganhar o mundo com o seu apelo a um "New Deal" a fim de resolver a crise da fome, mas não há nada de novo acerca disto: ele apela a mais liberalização comercial, mais tecnologia e mais ajuda. A crise alimentar de hoje é o resultado directo de décadas destas políticas, as quais devem agora ser rejeitadas. Se bem que seja necessária acção imediata para reduzir preços de alimentos e conseguir comida para aqueles que dela necessitam, também precisamos mudanças radicais na política agrícola de modo a que pequenos agricultores por todo o mundo ganhem acesso à terra e possam ganhar a vida com ela. Precisamos políticas que apoiem e protejam agricultores, pescadores e outros a fim de produzir alimentos para as suas famílias, para os mercados locais e para o povo nas cidades, ao invés de dinheiro para um abstracto mercado internacional de commodities e um minúsculo clã de executivos nos gabinetes das corporações. E precisamos fortalecer e promover a utilização de tecnologias baseadas no conhecimento e sob o controle daqueles que sabem como cultivar alimentos. Dito de outra forma, precisamos soberania alimentar, agora da espécie que é definida e conduzida pelos próprios pequenos agricultores e pescadores. Movimentos sociais por todo o globo tem estado a lutar para promover tal reversão de estratégia, só para serem rejeitados como irrealistas e retrógrados por aqueles no poder, e muitas vezes violentamente reprimidos. O vislumbre de esperança nesta crise é que a situação pode ser revertida. As organizações camponesas têm propostas concretas acerca do que é preciso ser feito para resolver a crise nos seus países, e os governos deveriam ouvir o que elas estão a dizer. Alguns governos já estão a falar de uma mudança política rumo à auto-suficiência alimentar. [24] Outros começam a questionar a lógica fundamental de pressionar por mais comércio livre. Os falcões neoliberais no topo da pirâmide da política alimentar global perderam a credibilidade que pensavam ter. Já é tempo de eles saírem do caminho de modo a que as visões de soberania alimentar e reforma agrária que vêm das bases possam assumir o seu lugar para sairmos desta confusão infernal. Referências 1- Bloomberg, qtd. in "World Bank Tackles Food Emergency," the BBC, London, 14 April 2008. 2- BBC, "Action to Meet Asian Rice Crisis," London, 17 April 2008. 3- Ver www.riceonline.com para relatórios diários. Com muitos exportadores asiáticos fora do jogo, países necessitados da Ásia e da África estão a virar-se para o mercado dos EUA onde os preços estão a atravessar o tecto. 4- Brian Halweil, "Grain Harvest Sets Record, But Supplies Still Tight," Worldwatch Institute, Washington DC. 5- Katarina Wahlberg, "Are We Approaching a Global Food Crisis?" World Economy & Development in Brief, Global Policy Forum, 3 March 2008. 6- Perito em política alimentar entrevista na Radio France International, Paris, 20 April 2008. 7- "UN Food Chief Urges Crisis Action," BBC, London, 22 April 2008. 8- Sinclair Stewart e Paul Waldie, "U.S. Food Producers, Speculators Square Off," Globe and Mail, Toronto, 23 April 2008. 9 Ibid. e Paul Waldie, "Why Grocery Prices Are Set to Soar," Globe and Mail, Toronto, 24 April 2008. 10- Paul Waldie, "Why Grocery Prices Are Set to Soar," op cit. 11- Bill Quigley, "USA Role in Haiti Hunger Riots," ZNet, US, 23 April 2008. 12- World Bank, "Can the World Market for Rice Be Trusted," Box 1 on p. 52 of "Philippines: Agriculture Public Expenditure Review," Technical Paper, World Bank, Washington DC, 2007, go.worldbank.org/TGRSK19300 . 13- Potássio e fosfatos são os dois principais ingredientes em fertilizantes químicos. 14- David Ebner, "Saskatchewan: A Lot More than Wheat," Globe and Mail, Toronto, 11 April 2008. 15- John Partridge e Andy Hoffman, "China Deal Sends Potash Soaring," Globe and Mail, Toronto, 17 April 2008. 16- "Cargill Income Up Sharply in Third Quarter," World Grain, Kansas City, 14 April 2008. 17- "Tightening Belts," The Economist, London, 10 April 2008. 18- Jonathan Sibun, "Unilever Profits Surge despite Price Pressures," Daily Telegraph, London, 3 November 2007; e, "Get Set for More Price Hikes: Unilever Chief," Business Standard, India, 16 March 2008. 19- Foo Yun Chee, "Major European Retailers Post Higher Profits for 2007," Reuters, 6 March 2008. 20- Associated Press, "Wal-Mart de Mexico's 1Q Profits Rise 11 Percent on Higher Sales, Cost Controls," 8 April 2008 21- Monsanto, Annual Report, 2007. 22- DuPont, Annual Report 2007, e "Syngenta Anuncia Cifra Negocio en Progresión 28 Por Ciento Primer Trimestre," EFE, 22 de abril 2008, 23- Isabel Reynolds, "WTO Should Pressure Food Exporters -- Mandelson," Reuters, 23 April 2008, 24- Ver, por exemplo, comentários recentes de agricultores e responsáveis da África Ocidental: Noel Tadégnon, "Le ROPPA préconise une pression sur les autorités politiques pour soutenir l'agriculture africaine," APA, 23 April 2008; and, "Réunion extraordinaire du Conseil des ministres de l'UEMOA, hier: 200 milliards pour freiner la flambée des prix," Le Nouveau Réveil, Abidjan, 24 April 2008. Ir mais além: Visão geral: FAO, World Food Situation: www.fao.org/worldfoodsituation Visão geral: "The Global Food Crisis," mapa interactivo, Financial Times, last updated 21 April 2008 Visão geral: Confédération Paysanne, "Les révoltes de la faim dans les pays du Sud : l'aboutissement logique de choix économiques et politiques désastreux," press release, 18 April 2008 Programas de ajustamento estrutural: "UNCTAD Official Blames Food Crisis on Structural Adjustment Programme," This Day, Lagos, 23 April 2008. Soberania alimentar: www.viacampesina.org and www.nyeleni2007.org Agrocombustíveis: GRAIN, Agrofuels Special Issues , Seedling, July 2007 Arroz nas Filipinas: GRAIN, "Philippines and Beyond: Rice Crisis Reaping the 'Fruit' of Market Capitalism" , Hybrid rice blog, 22 April 2008 [*] GRAIN é uma organização não-governamental internacional que promove a gestão sustentável e a utilização da biodiversidade agrícola com base no controle do povo sobre o recursos genéticos e no conhecimento local. O original encontra-se em http://mrzine.monthlyreview.org/grain260408.html Este artigo encontra-se em http://resistir.info/ . |