A fronteira da cultura
Durante anos, dei aulas em diferentes faculdades da Universidade Eduardo
Mondlane. Os meus colegas professores queixavam-se da progressiva falta de
preparação dos estudantes. Eu notava algo que, para mim, era
ainda mais grave: uma cada vez maior distanciação desses jovens
em relação ao seu próprio país. Quando eles
saíam de Maputo em trabalhos de campo, esses jovens comportavam-se como
se estivessem emigrando para um universo estranho e adverso. Eles não
sabiam as línguas, desconheciam os códigos culturais, sentiam-se
deslocados e com saudades de Maputo. Alguns sofriam dos mesmos fantasmas dos
exploradores coloniais: as feras, as cobras, os monstros invisíveis.
Aquelas zonas rurais eram, afinal, o espaço onde viveram os seus
avós, e todos os seus antepassados. Mas eles não se reconheciam
como herdeiros desse património. O país deles era outro. Pior
ainda: eles não gostavam desta outra nação. E ainda mais
grave: sentiam vergonha de a ela estarem ligados. A verdade é simples:
esses jovens estão mais à vontade dentro de um video-clip de
Michael Jackson do que no quintal de um camponês moçambicano.
O que se passa, e isso parece inevitável, é que estamos criando
cidadanias diversas dentro de Moçambique. E existem várias
categorias: há os urbanos, moradores da cidade alta, esses que foram
mais vezes a Nelspruit que aos arredores da sua própria cidade. Depois,
há uns que moram na periferia, os da chamada cidade baixa. E há
ainda os rurais, os que são uma espécie de imagem desfocada do
retrato nacional. Essa gente parece condenada a não ter rosto e falar
pela voz de outros.
A criação de cidadanias diferentes (ou o que é mais grave
de diferentes graus de uma mesma cidadania) pode ou não ser
problemática. Tudo isso depende da capacidade de manter em
diálogo esses diferentes segmentos da nossa sociedade. A pergunta
é: será que esses diferentes Moçambiques falam uns com os
outros?
A nossa riqueza provém da nossa disponibilidade em efectuarmos trocas
culturais com os outros. O Presidente Chissano perguntava num texto muito
recente sobre o que é Moçambique tem de especial que atrai a
paixão de tantos visitantes. Esse não sei quê especial
existe, de facto. Essa magia está ainda viva. Mas ninguém pensa,
razoavelmente, que esse poder de sedução provém de sermos
naturalmente melhores que os outros. Essa magia nasce da habilidade em
trocarmos cultura e produzirmos mestiçagens. Essa magia nasce da
capacidade de sermos nós, sendo outros.
Eu venho falar aqui de um diálogo muito particular de que poucas vezes
se faz alusão. Refiro-me à nossa conversa com os nossos
próprios fantasmas. O tempo trabalhou a nossa alma colectiva por via de
três materiais: o passado, o presente e o futuro. Nenhum desses materiais
parece estar feito para uso imediato. O passado foi mal embalado e chega-nos
deformado, carregado de mitos e preconceitos. O presente vem vestido de roupa
emprestada. E o futuro foi encomendado por interesses que nos são
alheios.
Não digo nada de novo: o nosso país não é pobre mas
foi empobrecido. A minha tese é que o empobrecimento de
Moçambique não começa nas razões económicas.
O maior empobrecimento provém da falta de ideias, da erosão da
criatividade e da ausente interna de debate. Mais do que pobres tornamo-nos
inférteis.
Eu vou questionar essas três dimensões do tempo apenas para
sacudir alguma poeira. Comecemos pelo passado. Para constatarmos que esse
passado, afinal, ainda não passou.
O QUE FOMOS UM RETRATO FEITO POR EMPRÉSTIMO
O colonialismo não morreu com as independências. Mudou de turno e
de executores. O actual colonialismo dispensa colonos e tornou-se
indígena nos nossos territórios. Não só se
naturalizou como passou a ser co-gerido numa parceira entre ex-colonizadores e
ex-colonizados.
Uma grande parte da visão que temos do passado do nosso país e do
nosso continente é ditada pelos mesmos pressupostos que ergueram a
história colonial. Ou melhor, a história colonizada. O que se fez
foi colocar um sinal positivo onde o sinal era negativo. Persiste a ideia que
África pré-colonial era um universo intemporal, sem conflitos nem
disputas, um paraíso feito só de harmonias.
Essa imagem romântica do passado alimenta a ideia redutora e simplista de
uma condição presente em que tudo seria bom e decorreria
às mil maravilhas se não fosse a interferência exterior. Os
únicos culpados dos nossos problemas devem ser procurados fora. E nunca
dentro. Os poucos de dentro que são maus é porque são
agentes dos de fora.
Esta visão já estava presente no discurso da luta armada quando
se retratava os inimigos como "infiltrados". Isto acontecia, apesar
do aviso do poeta que dizia que "não basta que seja pura e justa a
nossa causa é preciso que a justiça e a pureza existam dentro de
nós". As nossas fileiras, nesse tempo, eram vistas como sendo
compostas apenas de gente pura. Se havia mancha ela vinha de fora, que era o
lugar onde morava o inimigo.
O modo maniqueísta e simplificador com que se redigiu o chamado
"tempo que passou" teve, porém, outra consequência: fez
persistir a ideia de que a responsabilidade única e exclusiva da
criação da escravatura e do colonialismo cabe aos europeus.
Quando os navegadores europeus começaram a encher de escravos os seus
navios, eles não estavam estreando o comércio de criaturas
humanas. A escravatura já tinha sido inventada em todos os continentes.
Praticavam a escravatura os americanos, os europeus, os asiáticos e os
próprios africanos. A escravatura foi uma invenção da
espécie humana. O que sucedeu foi que o tráfico de escravos se
converteu num sistema global e esse sistema passou a ser desenvolvido de forma
a enriquecer o seu centro: a Europa e a América.
Vou contar-vos um episódio curioso que envolve uma senhora africana
chamada Honória Bailor Caulker num momento em que ela visitava os
Estados Unidos da América.
Dona Honória Bailor-Caulker é presidente da câmara da vila
costeira de Shenge, em Serra Leoa. A vila é pequena mas carregada de
História. Dali partiam escravos, aos milhares, que atravessavam o
Atlântico e trabalhavam nas plantações americanas de
cana-de-açúcar.
Dona Honória foi convidada para discursar nos Estados Unidos da
América. Perante uma distinta assembleia a senhora subiu ao
pódium e fez questão em exibir os seus dotes vocais. Cantou, para
espanto dos presentes, o hino religioso "Amazing Grace". No final,
Honória Bailor-Caulker deixou pesar um silêncio. Aos olhos dos
americanos parecia que a senhora tinha perdido o fio à meada. Mas ela
retomou o discurso e disse: quem compôs este hino foi um filho de
escravos, um descendente de uma família que saiu da minha pequena vila
de Shenge.
Foi como que um golpe mágico e o auditório se repartiu entre
lágrimas e aplausos. De pé, talvez movidos por uma mistura de
sentimento solidário e alguma má-consciência, os presentes
ergueram-se para aclamar Honória.
- Aplaudem-me como descendente de escravos?, perguntou ela aos que a
escutavam.
A resposta foi um eloquente "sim". Aquela mulher negra representava,
afinal, o sofrimento de milhões de escravos a quem a América
devia tanto.
- Pois eu, disse Honoria, não sou uma descendente de escravos.
Sou, sim, descendente de vendedores de escravos. Meus bisavós
enriquecerem vendendo escravos.
Honória Bailor Caulker teve a coragem de assumir-se com verdade com a
antítese do lugar comum. Mas o seu caso é tão raro que
arrisca ficar perdido e apagado.
O colonialismo foi outro desastre cuja dimensão humana não pode
ser aligeirada. Mas tal como a escravatura, também na
dominação colonial houve mão de dentro. Diversas elites
africanas foram coniventes e beneficiárias desse fenómeno
histórico.
Porque é que estou a falar disto? Porque eu creio que a História
oficial do nosso continente foi sujeita a várias
falsificações. A primeira e mais grosseira destinou-se a
justificar a exploração que fez enriquecer a Europa. Mas outras
falsificações se seguiram e parte delas destinaram-se a ocultar
responsabilidades internas, a lavar a má consciência de grupos
sociais africanos que participaram desde sempre na opressão dos povos e
nações de África. Esta leitura deturpada do passado
não é apenas um desvio teórico. Ela acaba por fomentar uma
atitude de eterna vitima, sugere falsos inimigos e alianças sem
princípios.
É importante fazermos nova luz sobre o passado porque o que se passa
hoje nos nossos países não é mais do que a
actualização de conivências antigas entre a mão de
dentro e a mão de fora. Estamos revivendo um passado que nos chega
tão distorcido que não somos capazes de o reconhecer. Não
estamos muito longe dos estudantes universitários que ao saírem
de Maputo já não se reconhecem como sucessores dos mais velhos.
O QUE SOMOS UM ESPELHO À PROCURA DA SUA IMAGEM
Se o passado nos chega deformado, o presente desagua em nossas vidas de forma
incompleta. Alguns vivem isso como um drama. E partem em corrida nervosa
à procura daquilo que chamam a nossa identidade. Grande parte das vezes
essa identidade é uma casa mobilada por nós mas a mobília
e a própria casa foram construídas por outros. Outros acreditam
que a afirmação da sua identidade nasce da negação
da identidade dos outros. O certo é que a afirmação do que
somos está baseada em inúmeros equívocos.
Temos que afirmar o que é nosso, dizem uns. E têm razão.
Num momento em que o convite é sermos todos americanos esse apelo tem
toda a razão de ser.
Faz todo o sentido, portanto, afirmarmos aquilo que é nosso. Mas a
pergunta é: o que é verdadeiramente nosso? Há aqui alguns
mal-entendidos. Por exemplo: uns acreditam que a capulana é um
vestuário originário, tipicamente moçambicano. Fiz por
diversas vezes esta pergunta a estudantes universitários: que frutos
são os nossos por oposição ao morango, ao pêssego,
à maçã? As respostas, uma outra vez, são curiosas.
As pessoas acreditam que são originariamente africanos: o caju, a manga,
a goiaba, a papaia. E por aí fora. Ora nenhum desses frutos é
nosso, no sentido de ser natural do continente. Outras vezes, sugere-se que a
nossa afirmação se faça na base de vegetais usados na
nossa culinária. O emblema do tipicamente nacional passa agora para o
coco, a mandioca, a batata-doce, o amendoim. Tudo produtos que foram
introduzidos em Moçambique e em África. Mas aqui se coloca a
questão: essas coisas acabam sendo nossas porque, para além da
sua origem, lhes demos a volta e as refabricamos à nossa maneira. A
capulana pode ter origem exterior mas é moçambicana pelo modo
como a amarramos. E pelo modo como esse pano passou a falar connosco. O coco
é indonésio, a mandioca é mais latino-americana que a
Jennifer Lopez mas o prato que preparamos é nosso porque o fomos
caldeando à nossa maneira.
Os conceitos devem ser ferramentas vitais na procura desse nosso retrato.
Contudo, muito do quadro conceptual com que olhamos Moçambique assenta
em chavões que, à força de serem repetidos, acabaram
não produzir sentido. Dou exemplos. Falamos muito de:
- Poder tradicional
- Sociedade civil
- Comunidades rurais, como se diz camponês
- Agricultura de subsistência
Perdoem-me a minha incursão abusiva nestes domínios. Mas eu tenho
sinceras dúvidas sobre a operacionalidade de qualquer destes conceitos.
Tenho dúvidas sobre o modo como essas categorias cabem na nossa
mão e produzem mudanças reais.
UMA LÍNGUA CHAMADA "DESENVOLVIMENTÊS"
E é isso que me preocupa é que mais do que incentivar um
pensamento inovador e criativo estamos a trabalhar ao nível do que
é superficial. Técnicos e especialistas moçambicanos
estão reproduzindo a linguagem dos outros, preocupado com o poder
agradar e fazer boa figura nos workshops. Trata-se de um logro, um jogo de
aparências, alguns de nós parecemos bem preparados porque sabemos
falar essa língua, o desenvolvimentês. Postos perante a procura de
soluções profundas para as questões nacionais estamos
estão tão perdidos como qualquer outro cidadão comum.
Palavras chaves "boa-governação", accountability,
parcerias, desenvolvimento sustentável, capacitação
institucional, auditoria e monitoramento, equidade, advocacia, todas estas
palavras da moda acrescentam uma grande mais-valia (eis outra palavra da moda)
às chamadas "comunicações" (deve-se, de
preferência, dizer "papers"). Mas deve-se evitar
traduções feitas à letra se não acontece-nos como o
palestrante já ouvi chamarem de painelista, o que além de
pouco simpática é uma palavra perigosa pois esse
palestrante, para evitar dizer que ia fazer uma apresentação em
power-point, acabou dizendo que ia fazer uma apresentação em
"ponta-poderosa". O que pode sugerir maliciosas
interpretações.
O problema do desenvolvimentês é que só convida a pensar o
que já está pensado por outros. Somos consumidores e não
produtores de pensamento. Mas não foi apenas uma língua que
inventamos: criou-se um exército de especialistas alguns com nomes
curiosos, tenho-os visto em reuniões diversas: já vi
especialistas em resolução de conflitos, facilitadores de
conferências, workshopistas, experts em advocacia, engenheiros
políticos. Estamos empenhando o nosso melhor manancial humano em algo
cuja utilidade deve ser interrogada.
A grande tentação de hoje é reduzirmos os assuntos
à sua dimensão linguística. Falamos, e tendo falado,
pensamos ter agido. Muitas vezes a mesma palavra já dançou com
variadíssimos parceiros. Tantos que já não há festa
sem que certas expressões abram o baile. Uma dessas palavras é a
"pobreza". A pobreza já dançou com um par que se
chamava "a década contra o subdesenvolvimento". Outro
dançarino tinha por nome "luta absoluta contra a pobreza".
Agora, dança com alguém que se intitula "luta contra a
pobreza absoluta". Outro caso é o do povo. O povo especializou-se
sobretudo em danças de máscaras. E ele já se mascarou de
"massas populares". Já foi "massas trabalhadores".
Depois, foi "população". Agora, dança com o
rosto de "comunidades locais".
A verdade é que ainda mantemos um grande desconhecimento das
dinâmicas actuais, dos mecanismos vivos e funcionais que esse tal povo
inventa para sobreviver. Sabemos pouco sobre assuntos de urgente e primordial
importância. Listo apenas alguns que agora me ocorrem:
- a vitalidade do comércio informal (mais do que comercial é toda
uma economia informal)
- os mecanismos de troca entre a família rural e a sua sucursal urbana
- o papel das mulheres nessa rede de trocas invisíveis, do transito
transfronteiriço de mercadorias (o chamado mukero).
Como podemos ver, não são apenas os jovens estudantes que olham
para o universo rural como se fosse um abismo. Também para nós
há um Moçambique que permanece invisível.
Mais grave que estas omissões é a imagem que se foi criando para
substituir a realidade. Tornou-se comum a ideia que o desenvolvimento é
o resultado acumulado de conferências, workshops e projectos. Eu
não conheço país nenhum que se tivesse desenvolvido
à custa de projectos. Vocês, melhor que ninguém, sabem
disto. Mas quem lê os jornais verifica como está enraizada esta
crença. Isto apenas ilustra a atitude apelativa que prevalece entre
nós de que os outros (na nossa linguagem moderna, os stakeholders)
é que tem a obrigação histórica de nos retirar da
miséria.
É aqui que a questão se coloca qual a cultura da nossa
economia? Qual é a economia da nossa cultura? Ou dito de modo mais
rigoroso: como é que as nossas culturas dialogam com as nossas
economias?
O SERMOS MUNDO À PROCURA DE UMA FAMÍLIA
Numa Conferencia em que este ano participei na Europa, alguém me
perguntou: o que é, para si, ser africano?
E eu lhe perguntei, de volta: E para si, o que é ser europeu?
Ele não sabia responder. Também ninguém sabe exactamente o
que é africanidade. Neste domínio há pouco muita
bugiganga, muito folclore. Há alguns que dizem que o "tipicamente
africano" é aquele ou aquilo que tem um peso espiritual maior. Ouvi
alguém dizer que nós, africanos, somos diferentes dos outros
porque damos muito valor à nossa cultura. Um africanista numa
conferência em Praga disse que o que media a africanidade era um conceito
chamado
"ubuntu"
. E que esse conceito diz que "eu sou os outros".
Ora todos estes pressupostos me parecem vagos e difusos, tudo isto surge porque
se toma como substância aquilo que é histórico. As
definições apressadas da africanidade assentam numa base
exótica, como se os africanos fossem particularmente diferentes dos
outros, ou como se as suas diferenças fossem o resultado de um dado de
essência.
África não pode reduzida a uma entidade simples, fácil de
entender. O nosso continente é feito de profunda diversidade e de
complexas mestiçagens. Longas e irreversíveis misturas de
culturas moldaram um mosaico de diferenças que são um dos mais
valiosos patrimónios do nosso continente. Quando mencionamos essas
mestiçagens falamos com algum receio como se o produto híbrido
fosse qualquer coisa menos pura. Mas não existe pureza quando se fala da
espécie humana. Os senhores dizem que não há economia
actual que não se alicerce em trocas. Pois não há cultura
humana que não se fundamente em profundas trocas de alma.
O QUE QUEREMOS E PODEMOS SER
Vou falar-vos de um episódio real, decorrido aqui perto, na
África do Sul, em 1856. Um célebre sangoma de nome Mhalakaza
reclamou que espíritos dos antepassados lhe tinham transmitido uma
profecia. E que uma grande ressurreição haveria de acontecer e
que os britânicos iriam ser expulsos. Para isso o povo Xhosa deveria
destruir todo o seu gado e todas as suas machambas. Esse seria o sinal de
fé para que, das profundezas do chão, brotassem riqueza e
abundância para todos. Mhalakaza convenceu os soberanos do reino da
veracidade desta visão. O chefe Sarili, da casa real do Tshawe,
proclamou a profecia como doutrina oficial. Para além da visão do
adivinho, Sarili tinha uma estranha convicção: era de que os
russos seriam os antepassados dos Xhosas e seriam eles, os russos, que iriam
brotar do chão de acordo com a prometida ressurreição.
Esta ideia surgia porque os monarcas Xhosa tinham ouvido falar da guerra da
Criméia e do facto dos russos estarem a bater-se contra os ingleses.
Espalhou-se rapidamente a ideia de que os russos, depois de vencerem os
britânicos na Europa, viriam expulsá-los da África do Sul.
E o que é ainda mais curioso: estava assente que os russos seriam
pretos, no pressuposto de que todos os que se opunham ao domínio
britânico seriam de raça negra.
Não me demoro no episódio histórico. A realidade é
que depois de desaparecerem o gado e a agricultura, a fome dizimou mais de dois
terços do povo Xhosa. Estava consumada uma das maiores tragédias
da toda a história de África. Este drama foi aproveitado pela
ideologia colonial como prova da dimensão da crendice entre os
africanos. Mas a realidade é que esta história é bem mais
complexa que uma simples crença. Por detrás deste cenário,
ocultavam-se graves disputas políticas. Dentro a monarquia Xhosa
criou-se uma forte dissidência contra este suicídio colectivo. Mas
este grupo foi rapidamente intitulado de "infiéis" e uma
força de milícias denominada de "os crentes" foi criada
para reprimir os que estavam em desacordo.
É evidente que esta história, infelizmente real, não pode
ser repetida hoje com este mesmo formato. Mas eu deixo à vossa
consideração o encontrarem paralelos com ocorrências
actuais na nossa região austral, em África, no Mundo. Aprendizes
de feiticeiros, seguem construindo profecias messiânicas e arrastam, de
forma triste, povos inteiros para o sofrimento e o desespero.
Aflige-me a facilidade com que vamos a reboque de ideias e conceitos que
desconhecemos. Em lugar de as interrogarmos cientificamente e de ajuizarmos a
sua adequação cultural transformamo-nos em funcionários de
serviço, caixas de ressonância de batuques produzidos nas
instâncias dos poderes políticos. Na nossa história
já se acumularam lemas e bandeiras. Já tivemos:
- A década contra o sub-desenvolvimento
- O Plano Prospectivo Indicativo (o famoso PPI)
- O PRE ( com o seu "ajustamento estrutural"
- Parceria inteligente e outras
Estas bandeiras tiveram as suas vantagens e desvantagens. Mas raramente foram
sujeitas ao necessário questionamento por parte dos nossos economistas,
dos nossos intelectuais. As novas bandeiras e lemas estão sendo
hasteadas nos mastros sem que esse espírito crítico assegure da
sua viabilidade histórica.
Há por vezes um certo cinismo. Poucos são os que realmente
acreditam naquilo que propalam. Mas estas novas teologias tem os seus
missionários fervorosos. Assim que essas teses desabam, esses sacerdotes
são os primeiros a despir as batinas. Foi o que sucedeu com o fim da
nossa chamada Primeira Republica. Samora morreu e ninguém mais foi
co-responsável da primeira governação. Samora existiu
sozinho, é essa a conclusão a que somos obrigados a chegar.
A CULTURA E A ECONOMIA O QUE PODEMOS FAZER?
O que podemos fazer é interrogar sem medo e dialogar com espírito
crítico. Infelizmente, o nosso ambiente de debate se revela pobre. Mais
grave ainda, ele tornou-se perverso: em lugar de confrontar ideias, agridem-se
pessoas. O que podemos fazer com os conceitos sócio-económicos
é reproduzir aquilo que fizemos com a capulana e com a mandioca. E
já agora com a língua portuguesa. Tornámo-los nossos,
porque os experimentamos e vivemos à nossa maneira.
Como um parêntesis queria fazer aqui referência a algo que assume o
estatuto de pouca-vergonha. Eu já vi pessoas credenciadas a defender a
tese da acumulação primitiva do capital justificando o
comportamento criminoso de alguns dos nossos novos-ricos. Isto já
não é apenas ignorância: é má-fé,
ausência completa de escrúpulos morais e intelectuais.
Estamos hoje construir a nossa própria modernidade. E quero congratular
esta ocasião em que um homem das letras (que se confessa ignorante em
matérias de economia) tenha a possibilidade de partilhar algumas
reflexões. A economia necessita de falar, de namorar com as outras
esferas da vida nacional. O discurso económico não pode ser a
religião dessa nossa modernidade nem a economia pode ser um altar ante o
qual nos ajoelhamos. Não podemos entregar a especialistas o direito de
conduzir as nossas vidas pessoais e os nossos destinos nacionais.
O que mais nos falta em Moçambique não é
formação técnica, não é a
acumulação de saber académico. O que mais falta em
Moçambique é capacidade de gerar um pensamento original, um
pensamento soberano que não ande a reboque daquilo que outros já
pensaram. Libertarmo-nos daquilo que uns já chamaram a ditadura do
desenvolvimento. Nós queremos ter um uma força patriótica
que nos avise dos perigos de uma nova evangelização, e de uma
entrega cega a essa nova mensagem messiânica: o desenvolvimento. (Que no
quadro desse idioma, o desenvolvimentês, se deve chamar sempre de
desenvolvimento sustentável)
O economista não é apenas aquele que sabe de economia. É
aquele que pode sair do pensamento económico, aquele que se liberta da
sua própria formação para a ela melhor regressar. Esta
possibilidade de emigração da sua própria
condição é fundamental para que tenhamos economistas
nossos que se distanciem da economia o suficiente para a poder interrogar.
A situação do nosso país e do nosso continente é
tão séria que já podemos continuar fazendo de conta que
fazemos. Temos que fazer. Temos que criar, construir alternativas e desenhar
caminhos verdadeiros e credíveis.
Precisamos de exercer os direitos humanos como o direito à
tolerância (eis outra palavra do vocabulário workshopista) mas
temos que manter acesso a um direito fundamental que é o direito
à indignação. Quando nos deixarmos de nos indignar,
então estaremos a aceitar que os poderes políticos nos tratem
como seres que não pensam. Eu falo do direito à
indignação perante o mega-cabritismo, perante crimes como os que
mataram Siba-Siba e Carlos Cardoso. Perante a ideia de que a
desorganização, o roubo e o caos são parte integrante da
nossa natureza "tropical".
O nosso continente corre o risco de ser um território esquecido,
secundarizado pelas estratégias de integração global.
Quando digo "esquecido" pensarão que me refiro à
atitude das grandes potências. Mas eu refiro-me às nossas
próprias elites que viraram costas às responsabilidades para os
seus povos, à forma como o seu comportamento predador ajuda a denegrir a
nossa imagem e fere a dignidade de todos os africanos. O discurso de grande
parte dos políticos é feito de lugares-comuns, incapazes de
entender a complexidade da condição dos nossos países e
dos nossos povos. A demagogia fácil continua a substituir a procura de
soluções. A facilidade com que ditadores se apropriam dos
destinos de nações inteiras é algo que nos deve assustar.
A facilidade com que se continua a explicar erros do presente através da
culpabilização do passado deve ser uma preocupação
nossa. É verdade que a corrupção e o abuso do poder
não são, como pretendem alguns, exclusivas do nosso continente.
Mas a margem de manobra que concedemos a tiranos é espantosa. É
urgente reduzir os territórios de vaidade, arrogância e impunidade
dos que enriquecem à custa do roubo. É urgente redefinir as
premissas da construção de modelos de gestão que excluem
aqueles que vivem na oralidade e na periferia da lógica e da
racionalidade europeias.
Nós todos, escritores e economistas, estamos vivendo com perplexidade um
momento muito particular da nossa História. Até aqui
Moçambique acreditou dispensar uma reflexão radical sobre os seus
próprios fundamentos. A nação moçambicana
conquistou um sentido épico na luta contra monstros exteriores. O
inferno era sempre fora, o inimigo estava para além das fronteiras. Era
Ian Smith, o apartheid, o imperialismo. O nosso país fazia, afinal, o
que fazemos na nossa vida quotidiana: inventamos monstros para nos
desassossegar. Mas os monstros também servem para nos tranquilizar.
Dá-nos sossego saber que eles moram fora de nós. De repente, o
mundo mudou e somos forçados a procurar os nossos demónios dentro
de casa. O inimigo, o pior dos inimigos, sempre esteve dentro de nós.
Descobrimos essa verdade tão simples e ficamos a sós com os
nossos próprios fantasmas. E isso nunca nos aconteceu antes. Este
é um momento de abismo e desesperanças. Mas pode ser, ao mesmo
tempo, um momento de crescimento. Confrontados com as nossas mais fundas
fragilidades, cabe-nos criar um novo olhar, inventar outras falas, ensaiar
outras escritas. Vamos ficando, cada vez mais, a sós com a nossa
própria responsabilidade histórica de criar uma outra
História. Nós não podemos mendigar ao mundo uma outra
imagem. Não podemos insistir numa atitude apelativa. A nossa
única saída é continuar o difícil e longo caminho
de conquistar um lugar digno para nós e para a nossa pátria. E
esse lugar só pode resultar da nossa própria
criação.
30/Setembro/2003
[*]
Escrito moçambicano.
Texto apresentado na Associação Moçambicana
de Economistas (
AMECON
)
O original encontra-se em
http://www.macua.org/miacouto/Mia_Couto_Amecom2003.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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