A Líbia, a esquerda europeia e o retorno do imperialismo
humanitário
Doze anos depois, é a história do Kosovo que se repete. Centenas
de milhares de mortos iraquianos, a NATO colocada numa posição
insustentável no Afeganistão, e eles nada aprenderam! A guerra do
Kosovo foi lançada para travar um genocídio inexistente, a guerra
afegã para proteger as mulheres (vá verificar a sua
situação actualmente) e a guerra do Iraque para proteger os
curdos. Quando é que eles vão compreender que sempre se afirmou
que as guerras são justificadas por razões humanitárias?
Mesmo Hitler "protegia as minorias" na Checoslováquia e na
Polónia.
Todos eles estão lá: os "Verdes" com José
Bové, agora aliado a Daniel Cohn-Bendit, que sempre apoiou as guerras da
NATO e, naturalmente, Bernard-Henry Levy e Bernard Kouchner, apelando a uma
espécie de "intervenção humanitária" na
Líbia, mas também, por vezes, os partidos da esquerda europeia
(que reagrupa os partidos comunistas europeus "moderados");
diferentes grupos "radicais" censuram a esquerda da América
Latina, cujas posições são bem mais sensatas, por agirem
como idiotas úteis do tirano líbio. Um artigo recente da Liga
Comunista Revolucionária (belga), falando do "fracasso do
chavismo", é um bom exemplo desta atitude. Embora os trotsquistas
nunca tenha conhecido a responsabilidade do poder e nunca tenham tido a
obrigação de responder ao povo que pretendem representar,
lançam-se em críticas virulentas a Chavez, que é
regularmente eleito à frente de um grande país (e os trotsquistas
não adoram a democracia?) sem procurar compreender porque a esquerda
latino-americano vê, com razão, a ingerência americana como
"o inimigo principal" e, sem dúvida porque ela está mal
informada, não confia nos trotsquistas europeus para travar a NATO.
Doze anos depois, é a história do Kosovo que se repete. Centenas
de milhares de mortos iraquianos, a NATO colocada numa posição
insustentável no Afeganistão, e eles nada aprenderam! A guerra do
Kosovo foi lançada para travar um genocídio inexistente, a guerra
afegã para proteger as mulheres (vá verificar a sua
situação actualmente) e a guerra do Iraque para proteger os
curdos. Quando é que eles vão compreender que sempre se afirmou
que as guerras são justificadas por razões humanitárias?
Mesmo Hitler "protegia as minorias" na Checoslováquia e na
Polónia.
E, como no Kosovo, opõem-se à intervenção com todas
as más razões possíveis e imagináveis: por exemplo,
que uma intervenção vai reforçar Kadafi mas
também se disse isso para Milosevic e Saddam e não foi
exactamente o que se passou. O que é preciso "apoiar a
insurreição" mas opor-se à intervenção,
quando é evidente que um apoio puramente verbal não tem efeito.
Ou ainda que os insurrectos não nos pedem para intervir; primeiro, isso
parece não ser mais verdadeiro e, se eles perdem, certamente não
nos pedirão para intervir. Mas devemos nós intervir em toda a
parte do mundo se nos for pedido? Isso é feito com os palestinos?
Em contrapartida, o secretário de Estado dos Estados Unidos, Robert
Gates, declarou que "deve-se examinar a cabeça" de todo futuro
secretário de Estado que aconselhasse o presidente americano a enviar
tropas à Ásia ou à África. O almirante McMullen
igualmente aconselhou prudência. O grande paradoxo da nossa época
é que o QG do movimento da paz encontra-se no Pentágono e no
Departamento de Estado ao passo que o partido pró guerra é
constituído por uma coligação de neo-conservadores e de
intervencionistas de toda espécie, compreendendo a esquerda da
ingerência humanitária assim como certos Verdes ou comunistas
arrependidos. A mesma combinação encontra-se igualmente no caso
do Irão. São os militares que aconselham a prudência e os
"humanitários" que lançam gritos de guerra em nome dos
direitos do homem (ou da mulher).
Evidentemente, os Estados Unidos farão ou não a guerra por
razões que são independentes das opiniões da esquerda
pró guerra. Ao contrário do quer é muitas vezes afirmados,
o petróleo não é o factor principal que afecta a sua
decisão pois qualquer futuro governo líbio deverá vender
petróleo e a Líbia não produz bastante para pesar
significativamente na cotação do petróleo. Naturalmente, o
caos na Líbia leva à especulação que por si mesma
afecta os preços, mas isso é outro problema. Toda ideia de
"guerra pelo petróleo" sofre de simplismo. No Iraque, por
exemplo, as companhias chinesas podem investir tanto quanto as outras e a China
compra petróleo um pouco por toda a parte do mundo aos preços do
mercado, sem gastar um cêntimo em intervenções militares.
Se os Estados Unidos fizeram a guerra para "controlar o
petróleo" e enfraquecer a China, eles realmente saíram-se
mal! E mais: todo o dinheiro que eles gastam com as suas guerras é, na
prática, tomado emprestado à China, o que contribui ainda mais
para o seu declínio. Estranha maneira de manter a sua hegemonia.
O argumento principal em favor da guerra, do ponto de vista dos Estados Unidos,
é que, se tudo ocorrer rápida e facilmente, isso
reabilitará a NATO e a ingerência humanitária, cuja imagem
foi empanada pelo Iraque e pelo Afeganistão. Uma nova Granada ou um novo
Kosovo é exactamente o que é preciso. Um outro motivo de
intervenção é controlar melhor os rebeldes vindo
"salvá-los" na sua marcha para a vitória. Mas isso tem
pouca probabilidade de êxito: Karzai no Afeganistão, os
nacionalistas kosovares, os xiitas do Iraque e naturalmente Israel ficam
perfeitamente satisfeitos por beneficiar da ajuda americana quando têm
necessidade mas, depois disso, prosseguem a sua própria agenda. E uma
ocupação militar total da Líbia após a
"libertação" é pouco realista, o que,
certamente, do ponto de vista dos Estados Unidos torna a
intervenção menos atraente.
Mas se as coisas correrem mal, isso provavelmente será o começo
do fim do Império americano, daí a prudência das pessoas
que o gerem e que não se contentam e escrever artigos no
Le Monde
ou vituperar ditadores diante das câmaras.
É difícil para cidadãos comuns saber exactamente o que se
passa na Líbia, pois os media ocidentais desacreditaram-se completamente
no Iraque, no Afeganistão, no Líbano e na Palestina e as fontes
de informação alternativas nem sempre são críveis.
Isso não impede naturalmente a esquerda pró guerra de estar
absolutamente convencida da verdade das piores informações sobre
Kadafi, tal como há doze anos a propósito de Milosevic.
O papel negativo da Corte Penal Internacional é manifesto, como o foi o
do Tribunal Penal Internacional para a Jugoslávia no caso do Kosovo. Uma
das razões porque houve relativamente pouco sangue derramado na
Tunísia e no Egipto é que havia uma porta de saída
possível para Ben Ali e Mubarak. Mas a "justiça
internacional" quer tornar impossível uma tal saída para
Kadafi e provavelmente para as próximas dele, pressionando-as assim a
combater até o fim.
Se "um outro mundo é possível", como proclama sem
cessar a esquerda europeia, então um outro Ocidente também
deveria ser possível e a esquerda europeia deveria começar a
construí-lo. O encontro recente da Aliança Bolivariana poderia
servir de exemplo: a esquerda da América Latina quer a paz e quer
impedir a intervenção dos Estados Unidos pois sabe que
está na sua linha de mira e que o seu processo de
transformação social exige primeiro e antes de mais nada a paz e
a soberania nacional. Portanto, ela sugeriu enviar uma delegação
internacional dirigida eventualmente por Jimmy Carter ou Lula (que não
se pode acusar de serem marionetes de Kadafi) para começar um processo
de negociação entre o governo e os rebeldes. A Espanha diz-se
interessada nesta ideia, que naturalmente é rejeitada por Sarkozy. Esta
proposta pode parecer utópica, mas se a ONU nela pusesse todo o seu
peso, talvez não fosse o caso. E seria um modo para a ONU de cumprir sua
missão, o que actualmente é tornado impossível pela
influência dos Estados Unidos e do Ocidente. Contudo, não é
impensável que agora, ou aquando de uma próxima crise, uma
coligação de países não intervencionistas, por
exemplo, a Rússia, a China ou a América Latina e talvez outros
possam trabalhar em conjunto para construir alternativas críveis ao
intervencionismo ocidental.
Ao contrário da esquerda da América Latina, a esquerda europeia
perdeu completamente o sentido do que quer dizer fazer política. Ela
não tenta propor soluções concretas para os problemas e
só é capaz de adoptar posições morais, em
particular denunciar de modo grandiloquente os ditadores e as
violações dos direitos do homem. A esquerda social-democrata
segue a direita com alguns anos de atraso e não tem nenhuma ideia
independente. A esquerda "radical" consegue muitas vezes denunciar ao
mesmo tempo os governos ocidentais de todas as maneiras possíveis e
pedir que estes mesmos governos intervenham militarmente por toda a parte do
mundo para defender a democracia. Um dos argumentos mais ridículos
avançados por esta esquerda é que Kadafi colaborou com os
europeus para limitar a imigração africana e que, em
consequência, há que "denunciá-lo" (um dos
desportos favoritos da esquerda radical é "denunciar" todos
aqueles que não lhe agradam, manobra puramente verbal e
destituída de efeitos positivos). Mas são evidentemente estas
viciosas potências europeias, ou americanas, que vão intervir na
Líbia, não a esquerda radical que não tem qualquer
força militar à sua disposição. E se, em vez de
denunciar Kadafi, esta esquerda se fixasse a tarefa (um pouco mais
árdua, é verdade) de convencer as opiniões públicas
europeias da necessidade de abrir as suas fronteiras a alguns milhões de
africanos?
A esquerda radical não tem qualquer programa coerente e não
saberia o que fazer mesmo se um deus a pusesse no poder. Em vez de
"apoiar" Chavez e a Revolução Venezuelana, uma
afirmação despida de sentido que alguns se satisfazem em repetir,
deveria humildemente seguir a sua escola e, acima de tudo, reaprender o que
quer dizer fazer política.
Ver também:
O Partido Comunista Grego denuncia uma moção no Parlamento Europeu que abre o caminho para uma intervenção na Líbia votada pelos membros do Partido de Esquerda Europeu, dentre os quais Jean-Luc Mélenchon e Marie-Christine Vergiat.
[*]
Professor de física na Bélgica e membro do Tribunal de Bruxelas.
O seu livro
"Humanitarian Imperialism"
foi publicado pela Monthly Review Press, a versão francesa
"Impérialisme Humanitaire" pelas edições Aden.
O original encontra-se em
www.legrandsoir.info/...
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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