Reflexões sobre a terra
Para uma abordagem marxista da questão da terra
Vinte e quatro anos depois da histórica derrota do regime do
apartheid,
a questão da terra ressurgiu com maior paixão do que nunca e,
certamente, hostilidade, fúria e confusão, por todos lados. A
causa imediata da irrupção do debate público foi a
conferência nacional do ANC de Dezembro passado, segundo a qual "o
ANC deverá prosseguir uma política de expropriação
de terras, sem compensações. Isso deverá ser feito sem
desestabilizar o sector da agricultura, sem pôr em perigo a
segurança alimentar do nosso país e sem prejudicar o crescimento
económico e a criação de emprego".
Ao comemorarmos a extraordinária contribuição do nosso
anterior secretário-geral do SAPC [Partido Comunista da África do
Sul], cda. Joe Slovo, quero fixar-me precisamente no problema da terra na
África do Sul actual, e colocar a questão: é a
questão da terra, ainda não resolvida, um reflexo da alegada
"renúncia" [cedência?] no acordo negociado do
início dos anos 1990? Esse foi, afinal, um acordo em que Joe Slovo teve
um papel decisivo. No meu ponto de vista, a falha em prosseguir um programa
efectivo de reforma fundiária na África do Sul pós-
apartheid
não é uma consequência do acordo negociado ou de alegados
constrangimentos da Constituição de 1996 que emergiu daquele
acordo.
Pelo contrário, as falhas e debilidades do nosso programa de reforma da
terra devem ser procuradas primeiramente na viragem neo-liberal marcada pelo
programa macroeconómico de 1996 "GEAR" [Growth, Employment and
Redistribution programme], a par de considerável confusão
política, fraqueza institucional e, muitas vezes,
corrupção.
Usada correctamente, a resolução da conferência do ANC de
Dezembro de 2017 é um bom ponto de partida para uma análise
crítica do insucesso do nosso governo pós-
apartheid
em conduzir um efectivo processo de transformação social e
económica radical. Ela dá-nos também a possibilidade de
discutir o que é necessário fazer para impulsionar um programa de
reforma da terra radical e sustentável.
Tomada à letra, a resolução do ANC parece ser ao mesmo
tempo contraditória e problemática. Ela visa a
expropriação da terra sem compensação "sem
pôr em perigo a segurança alimentar", o que parece sugerir
que já existe a tal segurança alimentar. Mas cerca de um
terço dos sul-africanos, mais de 11 milhões de pessoas,
não têm segurança alimentar. Provavelmente, o que a
resolução quis dizer é que a actual soberania alimentar
nacional da África do Sul (ou seja, a nossa capacidade para produzir
localmente comida suficiente para alimentar todo o nosso povo) não deve
ser comprometida. Mas a soberania alimentar numa África do Sul
capitalista e a efectiva disponibilidade de comida para todos (isto é,
segurança alimentar) estão longe de ser a mesma coisa.
Ainda mais problematicamente, a resolução do ANC parece oscilar
entre a simples adopção de um
slogan
populista e pseudo-radical ("expropriação sem
compensação"), por um lado, e a tentativa de tranquilizar o
mercado capitalista e o sector comercial da agricultura de que não
haverá "desestabilização", por outro.
Estas ambiguidades da resolução do ANC não são
certamente acidentais. Não é segredo que a conferência
nacional do ANC de Dezembro de 2017 esteve profundamente dividida. Alguns
participantes chegaram a confrontar-se durante a conferência, sobre se a
conferência devia ou não adoptar a
"expropriação sem compensação".
Como era previsível, a resolução do ANC deu origem
às mais variadas reacções, muitas delas histéricas.
Representantes da extrema-direita branca, como o Afriforum, vêem nesta
resolução a perspectiva de "genocídio branco",
uma perspectiva de que um ministro do governo australiano fez eco. Liberais
conservadores, como a DA (Aliança Democrática), retratam a
resolução como um assalto à "santidade da propriedade
privada", que eles reclamam (falsamente) estar consagrada na
Constituição. Vozes mais populistas, como, evidentemente, a de
Julius Malema, do EFF, reclamam a autoria da resolução e apelam
para o "devolução da terra" àqueles a quem ela
foi roubada, referindo-se à maioria africana indígena. (Mas o que
dizer então acerca de outras comunidades negras desapossadas pela minora
branca aquando das remoções do Group Areas? Ou da
expropriação das terras dos Khoi-San?)
Em resumo, há confusão e trapalhada por todo o lado. É
óbvio que a "terra" tornou-se muitas vezes num símbolo
mágico, uma metáfora para um vasto leque de outros medos e
frustrações a perda dos privilégios brancos, por
exemplo, por um lado, ou o desemprego jovem, marginalização e um
sentido geral de alienação e revolta, por outro lado.
A expropriação colonial
A terra é compreensivelmente uma questão que suscita muitas
emoções na África do Sul de hoje. O colonialismo e as
variantes de dominação pela minoria branca, incluindo o
apartheid,
levaram a cabo uma sistemática e generalizada (e muitas vezes
genocida) expropriação dos sul-africanos negros africanos
especialmente, mas também de outras comunidades negras. Não era
só a terra que era expropriada mas também outros meios de
produção (o gado, por exemplo), bem como o acesso à
água, casas e as licenças comerciais. É crucial recordar
todos estes factores, como um antídoto ao populismo mágico da EFF
que reclama, por exemplo, que "a terra cria emprego", "a terra
cria riqueza". Nas palavras de Tembeka Ngqukaitobi, não devemos
reduzir a questão da terra desta maneira, limitando-a simplesmente
à recuperação de "terrenos".
A questão da terra tem de ser firmemente ancorada no quadro da
evolução histórica da sua função social e
produtiva e na relação crítica entre a terra e a
força de trabalho. De facto, aquilo que é muitas vezes esquecido
na questão da terra é uma outra expropriação
colonial a expropriação da própria força de
trabalho. Se a terra foi roubada, também os seres humanos o foram.
No século XVIII e no início do século XIX, as campanhas
militares genocidas contra o povo Khoisa envolveram a captura de jovens rapazes
e raparigas e a sua escravização como
trekboers
no sistema infame do "inboekeling"
[1]
. Desde meados do século 17, a Colónia do Cabo dependia da
importação massiva de escravos da Ásia Oriental,
Madagáscar, Angola e outras origens. Durante um largo período da
colonização do Cabo, esses escravos superaram em número os
colonizadores europeus. A simples devolução de terras algures na
Indonésia actual, por exemplo, não é panaceia para os seus
descendentes, hoje cidadãos sul-africanos, que foram entretanto
oprimidos racialmente ao longo de várias gerações por
sucessivos regimes coloniais de minoria branca aqui no continente africano.
Em resumo, o "pecado original" (um termo que entrou no debate local
sobre a propriedade da terra, mas que é importado para este contexto,
muitas vezes sem que haja consciência disso, da análise de Marx
sobre "a acumulação capitalista primitiva") não
foi só a expropriação local da terra da maioria africana,
mas um processo massivo de roubo colonial tanto aqui no Sul da África
como ao longo do vasto mundo colonial.
A partir de finais do século XIX, a expropriação colonial
é cada vez mais ligada à proletarização da maioria
africana. O que é o mesmo que dizer que foram expropriados tanto os
activos materiais como a força de trabalho, a expropriação
daqueles sendo a condição da expropriação desta. A
força de trabalho foi arrastada para o mercado capitalista em resultado
da perda de activos produtivos, mas também de outras
expropriações, sobretudo através da
tributação, cobranças monetárias impostas a
sociedades que em grande medida ignoravam trocas com base na moeda. Desde os
finais do século XIX e ao longo do século XX, foi a crescente
mercantilização forçada do trabalho e a
reprodução da força de trabalho barata que serviram de
base para o amplo leque de políticas e intervenções
racistas em relação à terra e a outros sectores.
Estas intervenções não só envolveram a
expropriação da terra e outros activos da maioria africana, mas
também as
reservas
de terras e o confinamento forçado de famílias e o regresso
forçado a estas terras de trabalhadores migrantes semi-proletarizados,
após a rescisão dos respectivos contratos, por meio das leis do
passe e várias outras medidas de "controlo de
circulação". E é aqui que encontramos o
especial
naquilo que o SACP há muito tempo caracterizou como "colonialismo
de tipo especial"
("colonialism of a special type",
CST) da África do Sul.
No coração da fase inicial do CST sul-africano estava ainda outra
expropriação capitalista da força de trabalho a
expropriação patriarcal, por conta do capital monopolista
mineiro, do trabalho reprodutivo não pago (cuidar das crianças,
dos doentes e dos incapacitados, e dos velhos) levado a cabo por mulheres e
jovens nas reservas nativas. Um terço dos sul-africanos, na sua maioria
mulheres, continua a viver em pobreza rural nos antigos
"homelands"
sem qualquer segurança e muitas vezes sujeitos ao poder
arbitrário e por vezes corrupto dos chefes tradicionais.
É importante recordar estes desenvolvimentos de classe quando abordamos
a não-resolvida questão da propriedade da terra não como
ela era, mas como ela se apresenta hoje, no início do século XXI.
Entre outras coisas, esta breve história recorda-nos que uma reforma
radical da terra não é uma questão de, simplisticamente,
devolver ao povo as suas terras ancestrais. Então, por onde
começar? Em 1652? muito antes da emergência de um reino
Zulu, por exemplo, que envolveu desapropriação e
absorção de terras? E a que limites geográficos nos
circunscrevemos? Deveremos ceder ao nosso país vizinho [Lesotho] largas
porções do Free State [Estado do Orange] roubadas aos povos
Basotho pelos comandos Boers e pelas anexações coloniais
Inglesas? Não devemos nunca esquecer o passado. Mas também
não podemos simplesmente regressar ao passado.
O CST e a urbanização bloqueada
De uma perspectiva marxista, devemos ter sempre presente que o processo
violento de desapropriação da terra e de
proletarização forçada de produtores independentes
é uma realidade dialéctica que ao mesmo tempo que destrói
as condições de subsistência, cria as
condições objectivas para a emergência de uma nova
força revolucionária, a classe trabalhadora.
Sem a progressiva proletarização da maioria africana da
África do Sul ao longo da primeira metade do século XX, a
missão fundadora do ANC de forjar um movimento nacional de massas
ultrapassando as estreitas identidades tribais nunca teria ocorrido. Sem a
proletarização, o ANC teria permanecido um grupo de elite formado
por intelectuais ocidentalizados. Ao apelar para a restituição da
terra e ao seu implícito (e explícito, em alguns casos) ponto de
vista de que o povo deveria também
regressar à
terra, temos de ser cuidadosos para não cair em estreitas
reclamações e contra-reclamações étnicas e
tribais, contribuindo para o fortalecimento de práticas patriarcais.
Se as "reservas" (e depois os bantustões) ajudaram a
reproduzir mão-de-obra migrante barata para o capital monopolista
mineiro, elas foram também uma deliberada estratégia dos
colonialistas e do
apartheid
para obstar ao desenvolvimento de uma consciência nacionalista radical
emergente na maioria africana em processo de proletarização (e
urbanização).
O desenvolvimento do capitalismo na África do Sul nas
condições do CST colonialismo de tipo especial
significou a forja de um meio rural polarizado racialmente, partes do qual
estavam sob domínio colonial indirecto, por via de um sistema distorcido
de liderança "tradicional". Isto, reforçado pelo
sistema da "lei do passe", deliberadamente constrangeu e atrasou a
urbanização africana. Por outro lado, gerou um legado duradouro
de cidades e metrópoles com grandes distorções raciais, de
género e espaciais.
Com o fim do
apartheid
e a abolição das leis do passe e de outras medidas de
"controlo de circulação" assistimos agora à
vasta e rápida expansão da urbanização, com cerca
de dois terços dos sul-africanos urbanizados. Porém, este
processo de urbanização continua a perpetuar, para a maioria, as
armadilhas da pobreza do tipo das criadas pelo
apartheid,
mas agora num meio urbano, e agora governada não por
funcionários do
apartheid
e chefes "tradicionais", mas sim por um mercado imobiliário
capitalista excludente que confina a classe trabalhadora e os pobres às
periferias empobrecidas, distantes e muitas vezes inseguras das cidades e
metrópoles.
Ao mesmo tempo, e em parte por causa das incertezas da vida urbana, moradores
urbanos de primeira, segunda, e em muitos casos, terceira
geração, continuam a reter laços emocionais e culturais
com um lar familiar rural. Para lá dos laços emocionais e
culturais, estes lares rurais servem também como base de apoio familiar
numa economia em que há altos níveis de precariedade de emprego e
em que a estabilidade urbana é precária. Porém, a pequena
actividade agrícola nestas casas rurais, localizadas nos antigos
homelands
, colapsou em larga escala e qualquer programa radical de reforma
agrária deverá também abordar este aspecto.
A transformação da agricultura comercial
Com o fim do
apartheid
assistimos também a uma dramática reestruturação
da agricultura comercial. Em 1994 havia cerca de 60 mil
explorações agrícolas comerciais na África do Sul,
número que baixou para cerca de 45 mil em 2002, e que agora se estima
ser cerca de 30 mil. Estas transformações foram em parte o
resultado da viragem neoliberal do governo dirigido pelo ANC em meados da
década de 90 e da sua abertura da economia à
globalização. Em vez de transformar, democratizar e desracializar
os vastos apoios dados pelo Estado aos proprietários comerciais brancos,
apoios que incluíam organismos de comercialização [
marketing boards
], cooperativas, financiamentos, protecções tarifárias,
extensiva infraestrutura logística e muito mais, houve
liberalização e desregulação. Propriedades de
famílias brancas foram engolidas por agro-empresas de capital intensivo,
muitas delas listadas no JSE [Johannesburg Stock Exchange, Bolsa de Valores de
Johannesburg]. Um grande número de trabalhadores das
explorações agrícolas foi despedido, a base potencial para
a emergência de proprietários agrícolas negros foi erodida
e a viabilidade de muitas municipalidades rurais foi comprometida.
É previsível que esta concentração crescente da
agricultura comercial continue. Além disso, dentro deste relativamente
pequeno número de propriedades agrícolas, há um
nível de concentração ainda maior. Em 2002, 1348
explorações eram responsáveis por mais de metade da
receita bruta da agricultura comercial. Estas explorações
comerciais altamente capitalizadas constituem a espinha dorsal da
segurança alimentar da África do Sul. Com a efectiva
socialização da produção e a
socialização das cadeias de valor a montante e a jusante, estas
propriedades poderiam tornar-se um pilar chave de uma economia socialista capaz
de assegurar alimentação acessível para a classe
trabalhadora, bem como segurança alimentar geral para a maioria do povo.
Mas isto significa empreender um leque de intervenções das quais
apenas algumas são estritamente acerca da restituição de
terras.
O carácter multi-dimensional da reforma da terra reforma da terra
e reforma agrária não são a mesma coisa
O actual debate sobre a questão da terra é muitas vezes reduzido
a um debate
agrário
. Há dois problemas fundamentais nisto. A questão agrária
e o leque de problemas a ela associados soberania alimentar e
segurança alimentar, produção agrícola
não são apenas acerca da terra. O domínio dos insumos
agrícolas pelas multinacionais, o controlo monopolista sobre a
agro-indústria e a rede de distribuição alimentar
todos estes são enormes desafios para a transformação
radical do sector.
Por outro lado, a questão da terra também não é
redutível à questão agrária. A reforma da terra
é também um problema urbano (talvez ele seja agora um problema
principalmente urbano). O desenho racial do espaço das cidades da
África do Sul requer uma atenção especial. Tanto a
errónea redução do desafio agrário a uma simples
questão de terras, como a igualmente errónea
redução da reforma da terra a uma questão rural, têm
implicações institucionais importantes.
Por exemplo, porque é que nós criámos dois departamentos
nacionais separados desenvolvimento rural e reforma da terra (no
Departamento para o Desenvolvimento Rural e Reforma da Terra, DRDLR), por
um lado, e agricultura (no Departamento de Agricultura, Florestas e Pescas,
DAFF), por outro? Na prática, isto resultou na falta de
coordenação entre a restituição de terras e medidas
efectivas de acompanhamento em termos de sustentabilidade da
produção a disponibilização efectiva de
agentes de extensão, serviços veterinários, etc. Este
problema institucional é certamente um dos vários factores
responsáveis pela elevada taxa de insucesso registada em
explorações agrícolas em terras restituídas. Em
outros casos, parece haver duplicação de esforços entre os
dois departamentos.
Acresce que a redução da questão da terra a um assunto
maioritariamente rural conduz a um debate nacional confuso. Na maior parte do
debate, o orçamento alocado à reforma da terra e a
responsabilidade de conduzir uma reforma da terra, são considerados,
numa visão estreita, como sendo o orçamento do DRDLR. A reforma
da terra na África do Sul tem de ser um assunto de todo o governo
(an all-government-matter),
com departamentos nacionais como dos Reassentamentos Humanos, da Água
e Saneamento, das Obras Públicas, da Governação
Cooperativa e Assuntos Tradicionais, as províncias e, de modo muito
especial, as municipalidades, desempenhando um papel central.
Quem deveriam ser os principais beneficiários da reforma da terra?
A Freedom Charter [Carta da Liberdade: documento fundamental da causa
anti-apartheid,
adoptado em 26 de Junho de 1955 em Kliptown pela Aliança do Congresso,
constituída pelo African National Congress ANC e seus
aliados, o South African Indian Congress, o South African Congress of Democrats
e o Coloured People's Congress] apela à "terra para quem a
trabalha". E isto certamente aponta para três importantes segmentos
sociais que trabalham a terra na África do Sul de hoje
agricultores familiares tradicionais nos antigos
homelands;
trabalhadores agrícolas das explorações comerciais; e
trabalhadores arrendatários de terras.
Os agricultores familiares tradicionais (sobretudo mulheres) nos antigos
homelands,
ansiosos por terra, vivendo sem segurança em relação
à posse da terra, têm de estar entre os principais
beneficiários de um programa radical de redistribuição da
terra. Isso irá requerer uma democratização dos direitos
de posse da terra contra a dominação patriarcal (ver o excelente
estudo sobre o Ingonyama Trust no Kwazulu Natal, em
The African Communist
).
Outros produtores que trabalham a terra e que deverão beneficiar de um
programa radical de redistribuição de terra são as
famílias arrendatárias de terra, estimadas em cerca de 20 mil,
sobretudo no Kwazulu Natal e Mpumalanga. Estes agricultores são o que
resta dos outrora prósperos proprietários negros de
explorações agrícolas comerciais que foram despojados das
suas terras, mas a quem foi permitido permanecer nas propriedades dos brancos
como arrendatários dando seis meses de trabalho familiar
grátis em troca de autorização para pastorearem gado e
cultivarem pequenas parcelas das propriedades dos brancos. Em muitos casos,
hoje, o proprietário branco já não ocupa a propriedade, ou
de facto ocupa e cultiva apenas uma pequena porção da mesma. Mas
é o proprietário branco que tem os direitos de posse da terra,
enquanto aqueles que efectivamente a cultivam não têm qualquer
segurança em relação à posse da terra e, por
exemplo, não podem obter empréstimos usando a terra como
garantia. Em todos esses casos, é apropriado um programa de
redistribuição de terra dirigido àqueles que efectivamente
a cultivam.
De igual modo, a batalha para transformar a agricultura comercial de larga
escala deve ter em conta o flagelo dos trabalhadores das
explorações agrícolas que, apesar da
legislação, continuam a ter direitos precários de
ocupação das propriedades. Sendo eles aqueles que de facto
cultivam estas propriedades, uma agenda progressista deve visar não
só atribuir mais direitos de posse a estes trabalhadores, como
também acções de formação e outras
possíveis intervenções como esquemas de
participação no capital, e a participação na
função de gestão.
Segurança em relação à posse da terra
Uma característica absolutamente central, portanto, de um programa
radical de redistribuição de terras será, não
acerca de "devolução de terras", mas sim acerca de
assegurar que todos os sul-africanos, e principalmente a classe trabalhadora e
pobre, têm segurança em relação à posse da
terra que trabalha ou que usa.
A AD [Aliança Democrática] faz um grande alarido em torno da
segurança em relação à posse da terra, mas para
eles isso significa ter escrituras de propriedade registadas no Deeds Registry
[na Conservatória]. Enquanto o sistema actual de registo de escrituras
pode funcionar razoavelmente bem para as classes médias e para o sector
privado de negócios, ele é inapropriado para a maioria dos
sul-africanos, tanto por causa da complexidade e custo da
obtenção de uma escritura, como porque muitas das
assumpções sobre propriedade privada intrínsecas ao
registo da propriedade são estranhas às formas mais sociais de
propriedade praticadas por uma maioria de sul-africanos.
Cerca de 60% dos sul-africanos estão excluídos do sistema formal
de propriedade, que é baseado naquilo que Ben Cousins
[2]
descreve como "um edifício imponente". Uma escritura formal
de propriedade implica um complicado e custoso processo de levantamento
topográfico da parcela de terra; um cadastro com o registo da
propriedade, obrigações e servidões; e uma
actualização permanente reflectindo as vendas, heranças,
subdivisões e novas valências.
Os custos e os serviços burocráticos envolvidos neste sistema
excluem a maioria dos sul-africanos que vivem com uma grande insegurança
em relação aos seus direitos de posse da terra. Isto inclui cerca
de 17 milhões de pessoas nas áreas comunais, cerca de 2
milhões de trabalhadores e moradores nas propriedades agrícolas,
cerca de 3,3 milhões de pessoas vivendo em assentamentos informais,
cerca de 1,5 milhão que vive em barracas ou palhotas no fundo de
quintais, uns 200 mil vivendo no interior de edifícios urbanos e cerca
de 6,5 milhões vivendo em casas do programa RDP [Programa de
Reconstrução e Desenvolvimento] sem título de propriedade
ou com títulos de propriedade com dados imprecisos ou caducados.
Mas para além dos custos, o sistema de atribuição de
títulos formais de propriedade privada é estranho a outras formas
largamente praticadas de direito de propriedade da terra, baseado no
consentimento familiar (se bem que consentimento patriarcal),
obrigações sociais e direito de acesso a terceiros. Em muitas
destas práticas, a ideia de que um detentor individual de um
título de propriedade pode alienar ou seja, vender a
propriedade é uma noção completamente estranha.
Por todas estas razões, a ideia da AD de registo de títulos de
propriedade individuais "de parede a parede" não é
praticável e é contra os pobres. Em outros países onde
estes títulos de propriedade foram introduzidos em áreas comunais
de pequenos produtores agrícolas, o resultado tem sido um rápido
crescimento da desigualdade rural, porque os pequenos proprietários
endividados, em situação de desespero, vendem as suas terras a
uma classe emergente capitalista.
Um programa sério de redistribuição de terras na
África do Sul deve atender, com prioridade, à questão da
insegurança em relação à posse da terra que afecta
a grande maioria dos sul-africanos, sem os forçar a entrar
exclusivamente num modelo inapropriado de propriedade privada.
A Constituição um mandato para uma
transformação radical
Ao comemorarmos a obra do camarada Joe Slovo, comecei esta
intervenção colocando a questão: é a nossa
Constituição um bloqueio a um programa radical de
redistribuição de terra? Coloquei deliberadamente esta
questão porque existe agora uma crescente narrativa populista segundo a
qual a nossa Constituição, tal como foi negociada e concordada,
foi uma "renúncia"
("sell-out")
e que todas as nossas crises actuais são o resultado daquele
compromisso. Vamos agora dirigir a nossa atenção directamente
para esse tópico.
A reforma da terra tem de ser mais do que a redistribuição de
terras
Uma das objecções falaciosas levantadas contra a
Constituição, e especificamente contra a Cláusula sobre a
Propriedade da Carta dos Direitos [Bill of Rights], é a de que ela
"apenas permite a restituição de terras àqueles que
foram desapossados a partir de 1913".
Mas esta objecção, como muitas outras, baseia-se numa
deturpação da Cláusula sobre a Propriedade. Uma leitura
breve desta cláusula mostra que ela correctamente define que, na
realidade sul-africana, a reforma da terra deve assentar em
três
pilares:
1. Restituição da terra;
2. Redistribuição da terra; e
3. Segurança em relação à posse da terra.
A data de 1913
[3]
na Cláusula da Propriedade refere-se apenas às
reclamações de
restituição
de terras. Obviamente, uma transformação social e
económica radical, da qual a reforma da terra é uma importante
componente, deverá transformar o terrível legado de
séculos de desapropriação colonial e do
apartheid.
Mas a restituição da terra é apenas uma, e talvez
não seja a mais importante, das medidas para efectuar uma reforma
radical da terra.
De facto, constata-se que o limite de 1913 está a ser um problema
sério, com um tempo de implementação muito longo.
Os desafios da restituição de terras
A restituição de terras na África do Sul do pós-
apartheid
é uma importante medida. Ela visa restaurar alguma dignidade e
justiça devidas às comunidades e famílias. Porém,
ainda no início da década de 90, em documentos como o "Ready
to Govern" de 1993, o ANC antecipava que os pilares fundamentais do nosso
futuro programa de reforma da terra seriam a redistribuição de
terras e a segurança em relação à posse da terra.
Na prática, a restituição tendeu a ser dominante tanto nos
programas do governo como no discurso público ("restituindo a terra
aos seus legítimos proprietários").
Um amplo leque de desafios emergiu em resultado da ênfase esmagadora
posta na questão da restituição de terras.
A grande maioria dos beneficiários optou por uma
compensação monetária em vez da compensação
em terra. Isto é perfeitamente legal e muito compreensível.
Muitas comunidades e famílias reconstruíram as suas vidas em
outras localidades, muitas vezes em zonas urbanas. Existe também a
percepção de que regressar à actividade agrícola em
terras que, talvez, não foram agricultadas por períodos de muitos
anos, sem apoio financeiro e outro, é um desafio demasiado grande. No
entanto, a aceitação de uma compensação
monetária, embora assegurando que alguma justiça seja feita,
significa que a restituição de terras não tem sido uma via
importante para a transformação radical da estrutura racializada
da propriedade fundiária e do uso da terra tanto rural como urbana.
Um outro grande desafio tem sido a dificuldade em verificar a quem deve de
facto a terra ser restituída. São frequentes
reclamações que competem entre si e as
contra-reclamações, e o processo envolve a
participação de antropólogos, historiadores e os chamados
especialistas em direito consuetudinário. Em alguns casos, o processo de
restituição tem conduzido à reconstituição
de estreitas identidades tribais exactamente aquilo que em 1912 o ANC se
propôs ultrapassar. Por todos estes motivos, a execução do
processo de restituição tem frequentemente sido sobrecarregado e
complexo, e tal significa que:
Ao ritmo actual, estima-se que a resolução de todas
reclamações poderá levar 35 anos (para as
reclamações submetidas até 1998) e mais 143 anos para as
novas reclamações submetidas depois de 2014. Isto significa que
não podemos prosseguir com a abordagem actual, pois ela é
politicamente insustentável. Precisamos de explorar uma
estratégia para resolver as reclamações
em massa,
talvez por meio de uma compensação monetária
única
(one-off),
ainda que o nosso objectivo seja o de avançarmos com uma reforma da
terra mais ampla. Isto poderá ser necessário porque é mais
caro e mais moroso resolver reclamações do que redistribuir a
terra. A responsabilidade dos reclamantes e do Estado de provar a validade das
reclamações está a obstruir o processo. Temos de progredir
mais rapidamente e negociar acordos de resolução das
reclamações.
Mas por que motivo o governo e muito do discurso público colocaram o
foco na restituição, de modo tão desproporcionado?
Isso certamente não está desligado da ideia emocional mas
extremamente limitada de que a devastação de séculos de
colonialismo e décadas de domínio pela minoria branca podem ser
anulados pela "devolução da terra". Esse é um
velho tema do PAC (Congresso Pan-Africano) cuja esterilidade é
responsável pelo desaparecimento virtual daquela
organização. Mas este tema africanista do PAC foi ressuscitado
há alguns anos pela Liga da Juventude do ANC e depois transportado para
o EFF por Julius Malema e a sua coorte de ex-membros da Liga da Juventude.
Há uma lógica aparente na palavra de ordem "a terra foi
roubada, nós temos de a tomar de volta através da
expropriação sem compensação!". Mas o que
acontece realmente? Implicitamente, e por vezes também de forma
explícita, neste apelo à
devolução da terra
está também um apelo ao
"regresso à terra"
da grande maioria dos sul-africanos. Ouçam atentamente a resposta
da multidão à demagogia de Malema há muitas vezes
entusiasmo pela ideia de tomar de volta a terra que foi roubada; mas a sua
jovem audiência, sobretudo urbana e masculina, mostra pouco interesse na
ideia de regressar de facto a uma vida rural e camponesa.
Deixando de parte a questão da restituição de terras, que
outros bloqueios a uma reforma radical da terra existem na
Constituição, e especificamente na Secção 25, a
Cláusula da Propriedade? Correndo o risco de me tornar demasiado
técnico, deixem-me tentar responder às ilusões mais comuns
a este respeito.
É a nossa Constituição de 1996, e, especificamente,
é a Secção 25 (Cláusula da Propriedade) da Carta
dos Direitos um impedimento a uma reforma da terra séria?
Em primeiro lugar, registemos que o mandato contido na Secção 25
para expropriar propriedade no interesse do público nunca foi usado nos
tribunais. O Governo nunca usou a Secção 25 para expropriar
terras com o objectivo de restituir ou redistribuir terras. A Cláusula
de Propriedade permite, explicitamente, a expropriação no
interesse público e diz: "
O interesse público inclui o compromisso da nação com a
reforma da terra, e com as reformas para promover acesso igual a todos recursos
naturais da África do Sul (
)".
Isto é certamente um poderoso mandato para uma reforma da terra
séria e radical não um obstáculo.
E o requisito, na Cláusula da Propriedade, para pagamento de
compensações?
É verdade que a Cláusula da Propriedade, enquanto permite a
expropriação, submete este direito ao pagamento de uma
compensação. Porém, a compensação não
é baseada no princípio do valor de mercado em vez disso,
é baseada no princípio de "justo e equitativo", e a
cláusula indica que alguns dos factores que devem ser tomados em
consideração incluem "o uso actual da propriedade"
(está a ser usada por razões puramente especulativas? está
a ser usada de forma produtiva?); e "
a história da aquisição e uso da propriedade"
(são os actuais proprietários beneficiários directos de
expropriação dos Group Areas, por exemplo?)
Em resumo, em termos da Cláusula da Propriedade, a
compensação em caso de expropriação pode ser bem
abaixo do valor de mercado. Pode mesmo ser quase zero. Por outro lado, devemos
ter presente que não só os ricos podem ser expropriados
uma pequena propriedade rural poderá ser expropriada para construir uma
barragem, por exemplo. Nesse caso, para os ocupantes da propriedade terem
possibilidade de reconstruir as suas vidas a um nível pelo menos igual
ao da sua situação actual, certamente que uma
compensação "justa e equitativa" será
consideravelmente maior do que o valor de mercado.
Mas poderá ser objectado: "Vocês estão ainda a falar
de compensações, mesmo que estas possam ser muito baixas. Como
é que vocês conciliam isto com a resolução do ANC
que permite expropriações sem compensação?
É aqui que o assunto se torna interessante.
A Secção 25 (8) da Cláusula da Propriedade diz:
"Nenhuma disposição [por exemplo, o requisito de
compensação] desta secção pode impedir o Estado de
tomar medidas legislativas e outras para conseguir terra, água e a
respectiva reforma, de modo a corrigir o efeito da discriminação
racial do passado, desde que esse afastamento das disposições
desta secção esteja de acordo com as disposições da
secção 36 (1)".
Isto significa que o requisito de uma compensação justa e
equitativa
não pode
impedir o Estado de tomar medidas para fazer a reforma da terra. Qualquer
tomada de propriedade sem compensação com o propósito da
reforma da terra teria de ser feita de acordo com a Secção 36 (1)
que é uma "cláusula limitativa" predominante da Carta
dos Direitos. Basicamente, e neste caso, esta cláusula obriga a que o
não pagamento de compensação (trata-se da
limitação de um direito consagrado na Carta dos Direitos) tem de
ter expressão em legislação definindo o modo como tal
expropriação sem compensação pode ser feita.
A Secção 36 (1) diz:
"Os direitos da Carta dos Direitos podem ser limitados apenas nos termos
da lei de aplicação geral na medida em que a
limitação for razoável e justificável numa
sociedade aberta e democrática baseada a dignidade humana, igualdade e
liberdade, e depois de tomados em consideração todos factores
relevantes".
Em resumo, constitucionalmente, nós
podemos
permitir a expropriação sem compensação. Uma
emenda à Carta dos Direitos (que, de qualquer modo, nunca fizemos)
não é necessária nem desejável. A Carta dos
Direitos é um mandato para uma transformação social e
económica radical, não um impedimento.
Mas como seria legalmente conseguida a possibilidade de
expropriação sem compensação?
É possível aprovar legislação dizendo que, em caso
de expropriação, pode ser justo e equitativo não pagar
nenhuma compensação em casos em que, por exemplo, um
edifício tenha sido abandonado, ou uma terra não está
ocupada ou usada produtivamente pelo detentor nominal do título de
propriedade. Tal legislação poderia, por exemplo, ser
incluída no Expropriation Bill de 2017 [Lei das
Expropriações] ainda por promulgar, o qual está agora a
aguardar uma nova ronda de consultas públicas.
Mas (e aqui chega a objecção seguinte): "Vocês
estão ainda a falar da reforma da terra marginal
"edifícios abandonados", "terra não usada
produtivamente pelo proprietário". Vocês estão a
oferecer partes marginais, isto não pode ser o núcleo de um
programa sério de reforma da terra".
Há duas respostas a esta legítima preocupação.
Em primeiro lugar, e como já mencionámos, há cerca de 20
mil trabalhadores arrendatários negros e suas famílias a
trabalharem a terra produtivamente em propriedades ainda nominalmente
pertencentes a agricultores brancos. Estes agricultores negros encontram-se
sobretudo no Kwazulu Natal e Mpumalanga. Estes são seguramente casos em
que a expropriação sem compensação, com
atribuição de segurança em relação à
posse da terra àqueles que efectivamente a trabalham, seria uma medida
justa e equitativa, e seria, de facto, uma séria
contribuição para reforçar a segurança alimentar e
a produtividade. De igual modo, há um número estimado de 200 mil
pessoas a viverem em edifícios abandonados no interior das cidades.
Em segundo lugar, e mais geralmente, a preocupação mencionada
acima é baseada na ilusão de que a expropriação, e
especificamente a expropriação sem compensação,
é a
única
medida disponível e virtualmente a
única
intervenção requerida do lado do governo para conduzir um
programa radical de reforma da terra que seja sustentável. Mas os
insucessos do nosso actual programa de reforma da terra têm pouco a ver
com a aquisição de terras e mais a ver com outras falhas. De
facto, o Departamento para o Desenvolvimento Rural e Reforma da Terra tem neste
momento em mãos cerca de 5.000 propriedades compradas em anos recentes e
que ainda não foram atribuídas!
Em resumo, para avançarmos com uma reforma da terra que seja um pilar
fundamental de uma transformação social e económica
radical, precisamos de colocar ênfase crescente na
redistribuição de terras e na segurança em
relação à posse de terra. Nestes casos, também, a
expropriação com ou sem compensação (dependendo das
circunstâncias) será uma importante medida constitucional. No
entanto, não podemos esquecer que a expropriação é
apenas uma,
e talvez não a mais importante, medida para atingir uma reforma da
terra radical e sustentável sendo absolutamente crítico o
apoio pós-assentamento, tanto aos agricultores negros como
àqueles ocupando edifícios abandonados ou assentamentos informais.
NT
[1] "Inboekeling" era o mecanismo usado para justificar o rapto e
efectiva escravização de jovens crianças dos
indígenas Khoi e San [designação dada aos chamados
indígenas "não-bantos" do Sul de África]
usualmente durante incursões armadas pelos migrantes holandeses
pastoralistas ("trekboers") na sua fuga da Colónia do Cabo.
Esta prática continuou na República Boer do Transvaal, e estava
ainda em uso nos anos 1870.
[2] Ben Cousins: académico da Universidade do Cabo Ocidental, Faculdade
de Ciências Económicas e Gestão, área de Estudos
sobre Pobreza, Terra e Assuntos Agrários
[3] 1913: ano do Natives Land Act aprovado pelo parlamento da União
Sul-Africana, que limitou a propriedade de terra por negros às terras
dos "territórios nativos", que constituíam menos de 10%
do total da terra da África do Sul.
[*]
Membro da Comissão Política do SACP e vice-ministro das Obras
Públicas do Governo da África do Sul. O presente texto é
uma versão editada da sua apresentação num evento em
comemoração de Joe Slovo na Universidade do Cabo Ocidental, em 22
de Março de 2018.
O original encontra-se em
www.sacp.org.za/pubs/acommunist/2018/issue197.pdf
Este documento encontra-se em
http://resistir.info/
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