"A Telesur será independente sempre, neutra jamais"
por Dario Pignotti
Especialista na cobertura de conflitos armados, Botero solta uma gargalhada
quando perguntado se "Chávez vai declarar guerra a Ted
Turner", criador da cadeia de TV norte-americana CNN. "Não
gostaria de entrar em guerra com a CNN, mas você pode estar certo que
faremos uma batalha leal no campo da informação. Nos separa uma
concepção de jornalismo e um modo de olhar a notícia. Veja
o caso do Iraque: enquanto eles falam de guerra, nós dizemos
invasão, enquanto eles privilegiam os ataques aliados, nós
colocáramos as câmeras junto às vítimas civis".
Magro, grisalho, de voz rouca, Botero passou anos na selva onde filmou
"Capturados na Colômbia", reportagem que registrou testemunhos
inéditos de guerrilheiros das FARC e um grupo de americanos que
até hoje continuam seqüestrados por eles. A CBS se interessou pelas
revelações inéditas da reportagem e a transmitiu em seu
programa "60 Minutos".
Botero conversou com a Agência Carta Maior no momento em que a CNN
celebra seus 25 anos com 260 milhões de telespectadores e um faturamento
multimilionário. O orçamento da
Telesur
é de apenas 2,5
milhões de dólares, valor aportado pela Venezuela (51%) e pela
Argentina, Cuba e Uruguai (49% somados). A ausência mais sonora é
a do Brasil, que impulsiona seu próprio canal internacional, uma
decisão que marca uma sutil distância com a estratégia
comunicacional bolivariana.
Os responsáveis pela Telesur sabem que, por alguns anos, não
haverá sobressaltos econômicos: os altos preços do
petróleo garantem recursos frescos que chegaram na forma de publicidade
da PDVSA (a estatal venezuelana do setor petrolífero). Segundo Botero,
é a primeira vez que, na Venezuela, os lucros resultantes da
exploração do petróleo "se voltam para o povo e para
projetos como este".
Ainda que a estrutura da Telesur esteja distante da gigante CNN, o editor
não desanima. "Estamos trabalhando com um espírito
heróico, somos conscientes de que estamos nos lançando contra as
grandes redes da informação desafiando o olhar e o pensamento
único. Este gesto é possível porque existe um contexto
geopolítico de relançamento do eixo Sul-Sul". A Botero
não aflige que seus detratores tenham batizado a nova emissora como
"TV Al Bolívar", em alusão ao canal árabe que
luta palmo a palmo com as grandes cadeias ocidentais. "Respeitamos o
extraordinário trabalho da TV
Al Jazira
e já firmamos um convênio com eles para que tenham um
escritório em Caracas",
diz. Mas se incomoda quando a oposição venezuelana prognostica
que a Telesur acabará sendo uma "Telechávez", algo
assim como uma versão ampliada do "Alô Presidente",
programa conduzido por Hugo Chávez todos os domingos.
Carta Maior: Como vocês pretendem evitar que a Telesur se torne um
órgão de propaganda oficial?
Jorge Botero:
Dias atrás alguém perguntou o que faríamos quando
começássemos a sofrer pressões derivadas do fato de se
tratar de um canal de gestão estatal de quatro países. Quem
perguntou foi um jornalista da Rádio Caracol, da Colômbia,
recém comprada pelo grupo espanhol Prisa. Respondi a ele: "bem,
homem, eu faria o mesmo o que você faz quando aparece um dos donos de tua
empresa, que é tratar de conservar a independência
jornalística".
CM: E se o próprio Chávez pedisse para "corrigir" algum
título?
JB:
Somos um grupo de jornalistas de larga trajetória que fomos construindo
uma carreira de credibilidade. Estou consciente de que haverá
circunstâncias difíceis e é legítimo que, quem
põe o dinheiro para criar o canal, aspire ter alguma incidência
nele. Mas nem eu nem meus colegas, como o diretor, que é o uruguaio Aram
Aharoinan
[1]
, viemos para fazer propaganda barata ou um pasquim oficialista.
CM: Por que o Brasil não se integrou à Telesur?
JB:
O governo do presidente Lula vinha trabalhando desde antes em um projeto
próprio para colocar a informação e a imagem brasileira no
exterior, a TV Brasil internacional. O fato de que o governo brasileiro
não seja acionista não impede que tenhamos em curso várias
formas de colaboração operacional e de conteúdos. Temos
firmado dezenas de convênios, um deles com o canal do Senado. No terreno
jornalístico, o Brasil merecerá um intenso acompanhamento por
parte da Telesur. Nosso escritório estará a cargo de Beto Almeida
e contaremos com dois correspondentes.
CM: Qual será a estrutura da programação?
JB:
Haverá 45% de informação, com uma equipe de
correspondentes fixos nos Estados Unidos, México, Argentina,
Bolívia, Brasil, Venezuela, Cuba, Uruguai, Colômbia e Venezuela.
Serão 24 horas de transmissão divididas em 3 blocos, acompanhando
a notícia mas sem se descuidar de temas esquecidos pelo radar dos meios
comerciais. Teremos uma agenda própria, seguiremos a expansão das
bases militares norte-americanas, a guerra da água na Amazônia, a
luta do MST no Brasil. Também haverá programas dedicados aos
personagens anônimos do continente como "Maestra Vida" e
"Telesurgentes", sobre as lutas populares na América Latina.
Trabalharemos com uma agenda real, não somos louquinhos que inventam
temas.
CM: O que está sendo preparado para o lançamento?
JB:
Haverá programas dedicados a Bolívar e vários especiais
relacionados com notícias em desenvolvimento. Também teremos
notícias, crônicas e um encontro virtual dos quatro presidentes
que fazem parte do controle acionário. Para julho, possivelmente,
teremos terminado várias investigações formidáveis
que estão em preparação, mas não peça
premissas.
CM: Alguma pista?
JB:
Poderíamos ter algo sobre a Tríplice Fronteira...
[2]
CM: A solenidade é habitual nos canais oficiais. Qual será a
estética da Telesur?
JB:
Seremos tudo menos solenes. Diria que, em termos de linguagem, seremos
até desafiadores, quase experimentais. Já estão em marcha
programas como "Cinexcepción", onde estrearemos filmes
latinoamericanos, e "Voces em la cabeza", onde se ouvirá ska,
rap, hip hop e até música eletrônica. O que digo a
você e a todos os céticos é uma só coisa:
assistam-nos.
CM: Vocês se animariam com a idéia de produzir um desenho animado
ou uma série iconoclasta sobre Bolívar?
JB:
Como não? Não creio que seja uma heresia, é parte de
nossos sonhos. Quero que o canal trabalhe na área da
ficção e Bolívar está nos planos. Realizaremos
séries dramatizadas abordando a história e temas atuais. Fixe-se
que, no dia de lançamento, teremos uma aproximação
bastante ousada da biografia do Libertador, nada empolada. Apresentaremos um
Bolívar humano, falível, mais como contou (Gabriel) García
Márquez ou como o descreveu (José Carlos) Mariátegui.
CM: Em certas ocasiões a burocracia estatal obstaculiza as
produções independentes...
JB:
Aqui haverá lugar para todos, a única coisa que não se
verá é lixo. Está em planejamento um ciclo chamado
"Nojolivud" que, no lugar de supreproduções,
apresentará produções proibidas nos circuitos comerciais.
Haverá liberdade total para a produção independente.
Já está em curso a Oficina Latinoamericana de Conteúdos,
que é um pequeno instituto com o qual manteremos contato com os milhares
de documentaristas e realizadores que estão espalhados pela
América Latina. Queremos produzir com eles.
CM: Você falou de pensamento único. Cabe pensar que existe
também um pensamento jornalístico único?
JB:
E como não? Muito mais quando vemos como tem sido a cobertura das
guerras nestes últimos anos, com a identificação das
grandes redes com os interesses informativos do Império. A auto-censura
é, talvez, o pior dos males de nossa profissão e para nos
contrapormos a isso estamos recorrendo a jornalistas jovens, ainda que, muitas
vezes, também os jovens estejam já algo contaminados pelas
escolas de jornalismo.
CM: Mas, para além de certas práticas, esse pensamento
único penetra também alguns valores jornalísticos?
JB:
Veja você a tão mencionada objetividade jornalística, um
mito reverenciado que é empregado para salvar as aparências. Eu
não creio nela, mas sim em um valor cada vez mais esquecido, a
independência. Tomei para mim uma frase de uma história de Lucky
Luke (da história em quadrinhos), onde o cowboy fazia as vezes de
guarda-costas de um editor do longínquo oeste que dizia
"independência sempre, neutralidade jamais". Na Telesur,
adotarei esse ditado, mas já sabemos que às vezes se paga caro.
CM: Por que?
JB:
Porque defender um pensamento jornalístico autônomo equivale a
defender a soberania, a autodeterminação, dois princípios
que o Império não admite.
CM: Como será o relato dessa guerra na versão da Telesur?
JB:
O relato dessa guerra exigirá o melhor de nós, começando
por deixar bem estabelecido qual será o foco e nossa política
editorial. O governo colombiano nega que exista um conflito. Nós, em
troca, diremos que há um conflito devido a décadas de
exclusão social e política, e que a solução
só será encontrada pelo caminho do diálogo. Seremos
promotores do diálogo. Jornalisticamente, a pauta será dar voz a
todos os protagonistas, aos que perderam suas casas e terras, aos familiares
dos soldados e inclusive aos grupos rebeldes, sim eles são parte da
notícia. Segundo parece isso já incomodou algumas pessoas.
CM: A que tipo de incômodo se refere?
JB:
Abrimos um escritório em Bogotá e, sem ter gravado uma hora de
programação, nosso correspondente William Parra foi alvo de um
ataque violento, sendo apunhalado cinco vezes. Nós temos sido cautelosos
ao fazer a denúncia, não queremos pensar que tenha sido
conseqüência dele ser jornalista da Telesur, mas informamos o
ocorrido a organismos de defesa dos direitos humanos, ao governo e aos
sindicatos profissionais. Esperamos que não se repita.
________
[1] Director da revista Question e da Agência de notícias
Alia2
.
[2] Nome dado à zona de fronteira que une o Brasil, a Argentina e o Paraguai.
O original encontra-se em
http://agenciacartamaior.uol.com.br/agencia.asp?coluna=reportagens&id=3253
.
Tradução de Marco Aurélio Weissheimer.
A URL da Telesur é
http://www.telesurtv.net/
.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
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