Uma reflexão sobre o futuro da Venezuela
Hoje, a exemplo dos anos 60 e
70 do século passado, a questão das transformações
sociais e políticas por via revolucionária é tema
recorrente. A Revolução, além de ser objeto das
preocupações de quase todos os movimentos políticos e
sociais da América Latina, é uma realidade do dia-a-dia em alguns
países, como a Venezuela, a Bolívia e o Equador. O fato de haver
esse novo apelo para drásticas mudanças em sociedades
capitalistas que até a pouco blasonavam equilíbrio e poder
é bem sintomático. Se naqueles idos a pregação
revolucionária tinha como leit motiv a crítica ao capitalismo, ao
colonialismo e ao imperialismo, hoje, essa crítica é mais
abrangente e totalizante, com o acréscimo da ecologia, da liberdade e da
democracia como características essenciais. Além destes, novos
ingredientes sociais, políticos e econômicos foram acrescentados
ao que era apenas uma crítica elementar, pois, as básicas
relações de domínio, poder e exploração
não sofreram nenhuma mudança, apenas se multiplicaram em detalhes
e processos aparentemente complexos e com eles, as novidades.
Dentre os aspectos mais
essenciais dessa crítica estão dois que são os mais
visíveis: a democracia e a liberdade. Para alguns teóricos, como
István Mézáros, um lúcido pensador húngaro,
da linha de György Lukács, esses dois momentos da vida humana
sempre foram basilares para todo o pensamento revolucionário desde a
Comuna de Paris. O esquecimento nos últimos 50 anos do século XX
a que foram relegados, pode ser compreendido como a causa do fenômeno da
expansão capitalista, a solução política definitiva
" o fim da História" , como se viu nos
terríveis anos do neoliberalismo. Anos em que a cruel fantasia do
consumo, sinônimo de liberdade individual e o livre mercado,entendido
como último avanço político e democrático das
nações tornaram-se regra e dogma. Um dogma que viciava todas as
relações sociais e políticas com sua
pregação individualista, não participativa e
anti-solidária. É a pregação e uso da máxima
"você tem que levar vantagem em tudo" em sua total e plena
acepção.
O problema surge quando a
realidade, esta estraga prazeres, começa a demonstrar que aquelas
verdades políticas e filosóficas não eram nem
filosóficas e muito menos um novo quadro político para todos.
É o fim das bolhas especulativas das empresas de informática, dos
mercados financeiros secundários e da desvalorização desse
tipo de atividade como algo positivo. Com o retorno aos padrões da
economia real fica mais claro o fracasso do livre mercado. Desde que a
prática neoliberal falhou como expressão
político-econômica global, ao gerar desequilíbrios
regionais e enfraquecer os eixos desse sistema mercantil-financeiro,
questões há muito reprimidas como o nacionalismo e soberania,
desenvolvimento sustentável e crescimento igualitário, democracia
e liberdade política das massas, ganham a consciência de alguns
povos. O resultado disso tudo é a compreensão que a liberdade
não pode ser medida pelo que se consome, que a democracia tem que ser de
tal modo que todos sejam igualmente partícipes das decisões
políticas do Estado.
É evidente que na
maioria desses países o processo de luta tem sido orientado para uma
espécie de combate formal e circunscrito ao estabelecido pelo poder que
se quer substituir. O resultado é um caminho muito tortuoso, cheio de
curvas, recuos e poucos avanços. Ora, como a Revolução
é uma realização coletiva e original de ruptura de um
status não tem uma fórmula ou modelo, pois em cada país e
em cada tempo surgem as condições, os modos e os meios de sua
realização. Na atualidade, graças ao retorno conceitual
dos processos revolucionários ao sentido original de suas origens
libertárias e democráticas, existe a clareza da especificidade de
cada Revolução. Um fato que tem gerado algumas
incompreensões, mas que, em compensação, cria novas
alternativas experimentais de prática e processos transformadores.
Uma revolução
é sempre cheia de problemas criados pela permanência das
contradições da sociedade que está sendo
reconstruída. Além das naturais questões políticas
e econômicas, há uma questão que tem a máxima
importância, porém não é muito vista, o que torna os
seus efeitos ainda mais sejam funestos. Ela poderia ser chamada de pressa
subjetiva ou necessidade de ser sujeito do processo. Embora haja quase um
completo silêncio sobre o que pensa o homem comum durante esses
períodos, se olharmos com muito cuidado e sem nenhum tipo de
preconceito, veremos que no pensamento desse homem existem os mesmos sonhos e
veleidades que atingem a todos. A grande dificuldade é admitir que tudo
se realiza no devido tempo e ritmo permitidos pelas condições
reais. Assim, ao ficarmos frustrados com os "atrasos" do processo
revolucionário, na realidade estamos querendo dizer que estamos com
pressa para testemunhar ou sermos protagonista. É a permanência do
sentido da liberdade individualista do capitalismo, em que se tem que ser
protagonista e usufrutuário das mudanças que estão se
realizando, da mesma forma que alguém planta um abacateiro e quer que
logo no primeiro ano de plantado produza frutos.
É muito difícil
decompor, intitular e rotular as contradições cotidianas, pois,
como fazem parte da nossa vida e comportamentos sociais, só conseguimos
vê-las a partir dos estereótipos já conhecidos, ou seja,
aplicamos a lógica formal para entender e explicar o que faz parte de um
movimento dialético. A resultante é sempre falha, pois, a nossa
percepção nesse caso nos é dada, não pelos
padrões da realidade, mas, acima de tudo, pela
quantificação das frustrações e conquistas obtidas
em termo de gozo pessoal. Ora, como o nosso modo de pensar é formado a
partir de conceitos ideológicos burgueses, mesmo quando exercemos a
crítica desses conceitos, sempre há um resíduo para nos
condicionar o comportamento. Um comportamento que pode muito bem oscilar entre
a feroz crítica moralista e teórica ou um excesso de
compaixão social, onde há desculpas para quase tudo em nome de
uma relatividade que não existe e nem deve existir nos processos de
mudança.
Na Venezuela, por exemplo, hoje
em dia é comum o debate a respeito de erros e acertos de tal ou qual
projeto ou ação de governo. Um dos temas mais constante nos
escritos e falas dos venezuelanos envolvidos com o processo político
revolucionário, é a corrupção no serviço
público e a visão de que ela é um desvio do processo.
É uma análise equivocada, a corrupção é
condição sine qua non do sistema capitalista, portanto, o que
há é a continuidade de uma velha estrutura. Como a estrutura do
Estado ainda é a mesma que serviu a Andrés Peres e Caldera
dificilmente ela terá a agilidade e a boa vontade para realizar
funções/atividades que entrem em conflito com a prática
usual. É quase que uma atitude autodefensiva por parte do capitalismo
que esse Estado ainda personifica. Da compreensão desses fatos é
que surgirão a correção e o enquadramento da estrutura
estatal e das pessoas por meio de atitudes práticas.
Assim, numa rápida
leitura do período pós-referendum de 2 de dezembro, tem-se como
tônica a crítica "metralhadora-giratória", tanto
da parte de venezuelanos quanto de não venezuelanos. Entretanto,
é preciso que tenhamos em conta o valor desse procedimento, pois, antes
desse tipo de processo, a crítica quando existia, perdia-se nela mesma.
Hoje, está obrigando a que todos pensem até que se atinja um bom
grau de maturidade. E para melhor compreender o que se passa, é sempre
bom lembrar as palavras de Vladimir Ilitich Ulianov para explicar como era o
partido bolchevista, "o Partido é o que é". Ou seja,
mesmo dentro do Partido bolchevista coexistia o novo e o velho, algo que
também é verdadeiro até para as pessoas como
indivíduos. Isso para podermos entender a prática individual e
coletiva de todos nós. No que se refere ao Estado, é sempre bom
compreender que ele é uma realidade composta de diversas
manifestações, ora municipal, ora estadual, ora federal, mas
sempre com unidade na ação essencial, qual seja ser instrumento
político-administrativo para a acumulação capitalista e a
preservação do sistema em termos políticos. É,
pois, nessa realidade que os processos revolucionários acontecem. Sem
manuais, sem bulas e sem cânones a serem seguidos. Uma autêntica
criação histórica.
Para ficar mais fácil o
entendimento do atual processo político venezuelano é
necessário se compreender que agora é que está acontecendo
a industrialização real do país, com a
substituição das importações. Pode-se dizer que
só agora é que surgem os elementos e fatores para a
consolidação de uma burguesia nacional. Uma burguesia que
também tem seu projeto de expansão e poder. Assim é que se
deve entender uma série de medidas econômicas e políticas
adotadas pelo governo. Medidas para reduzir o poder e a influência do
imperialismo e seus aliados oligarcas.
O simples fato do Presidente
Chávez vislumbrar a necessidade de marcos constitucionais capazes de
possibilitar mudanças menos traumáticas, numa quase
transição pacífica de um estado capitalista para um estado
socialista, não significa que a maioria da população
venezuelana tivesse compreendido ou aceito os benefícios e vantagens que
obteria com as mudanças propostas. É, pois, dentro desse quadro
real que o processo terá que se desenvolver. Ou seja, há um
conhecimento que inexistia antes e que pode servir de guia para o futuro. Um
futuro que deverá ser construído a partir da prática
unitária da ação, do avanço da consciência
política e da nítida compreensão tática dos
momentos. As próximas eleições estaduais e municipais
poderão ser a base para esse salto, com a escolha de candidatos
realmente revolucionários e de clara identidade com o povo. Mais do que
um Bolívar Fuerte é necessário um Partido Fuerte, aliado a
Partidos Fuertes.
[*]
Jornalista, brasileiro, editor do blog
http://pedroayres.blogspot.com/.
Este artigo encontra-se em
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