O debate perene sobre os objetivos socialistas em curso na Venezuela
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Resumo: Duas tradições marxistas contracenam no debate interno do
movimento liderado por Hugo Chávez. Os "realistas" defendem
políticas práticas para aumentar a produção,
enquanto os "otimistas culturais" estão interessados no
combate aos valores capitalistas. As discussões sobre diferenças
salariais em fábricas autogeridas pelos trabalhadores e em cooperativas
lembram a distinção marxista entre "a cada um conforme seu
trabalho" (preferida pelos realistas) e "a cada um conforme sua
necessidade" (defendida pelos otimistas culturais). Enquanto Chávez
encoraja cooperativas e conselhos comunitários a descartar a "busca
do lucro" (abordagem do otimismo cultural), os realistas enfatizam
controles estatais para evitar o mau uso de recursos. A bandeira
cultural-otimista da justiça social é mais adequada para
assegurar apoio ativo dos setores desprivilegiados. Os realistas preferem
encarar a dura realidade de que o socialismo não tem o bode
expiatório da pobreza para estimular a produtividade dos trabalhadores,
e portanto requer mecanismos alternativos. Apesar de trotskistas e outros
encararem os realistas como defensores dos interesses de classe dos
privilegiados, uma síntese entre as duas posições é
necessária e possível.
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As estratégias socioeconômicas conflitantes que se originaram do
governo venezuelano de Hugo Chávez em seu esforço para
estabelecer o socialismo refletem uma grande divisão no pensamento e
movimentos de esquerda ao redor do mundo, que remonta a Marx. O debate em
curso centra-se nas motivações básicas daqueles que vivem
e trabalham sob o socialismo, e nas realizações e objetivos
fundamentais do sistema. Ainda que discussões informais dessas
questões floresçam na Venezuela, o governo e o movimento
chavistas falharam em promover o debate formal ou em estabelecer mecanismos que
canalizem opiniões das bases até os que definem as
políticas (Ellner, 2005, 186). Devido à mentalidade
eclética dos líderes chavistas e às novidades de recentes
eventos, a experiência venezuelana pode contribuir consideravelmente para
a discussão geral sobre o socialismo, o qual adquiriu especial
importância desde a dissolução da União
Soviética em 1991.
Uma das duas posições opostas neste debate que dura um
século e meio pode ser chamada de otimismo cultural, e é
associada com o conceito de Che Guevara sobre o "Novo Homem
Socialista". Os defensores deste ponto de vista argumentam que as
condições subjetivas estão maduras para mudanças de
maior alcance e que o povo em geral está pronto para participar de
relações socialistas e ultrapassar aspirações
materialistas. Uma expressão mais extrema desta posição
é a asserção idealista de que a igualdade absoluta sob o
socialismo é factível no futuro próximo
[1]
.
O outro pólo deste contraste pode ser chamado de realismo. Os realistas
enfatizam a luta para aumentar a produção (ao contrário de
mudanças culturais) e políticas pró-trabalhadores tais
como incentivos materiais e a manutenção, pelo menos por ora, de
certas práticas associadas ao capitalismo para atingir este objetivo.
Após quase um século de revoluções socialistas pelo
mundo, as falhas de ambas as abordagens em sua forma pura poderia sugerir a
necessidade de evitar posições dogmáticas e focar a
discussão nos problemas práticos que surgiram, assim como nos
imperativos políticos, que têm também se mostrado
críticos. Esses termos para a discussão serviriam como um
corretivo ao que David Laibman chamou "receituário
utópico" e que vários outros associados a Science & Society
rotularam de "projetos de castelos no ar" (Laibman, 20021, 68;
200b,118;
Science & Society,
1992, 8). De fato, muitas das discussões nestas bases se apoiaram em
suposições sobre a natureza humana e carece de dados
empíricos relativos à factibilidade das estratégias e
mudanças de longo prazo que são propostas (ver Laibman, 2002b,
117).
As duas tendências encontram expressão nos escritos de Marx. O
Marx dos primeiros tempos dedicou atenção considerável
à alienação pessoal, e enxergou a luta política
como meio para superá-la, em concordância com a
tradição otimista cultural. O Marx mais velho, apesar de
não ter abandonado suas preocupações da juventude, estudou
as leis imutáveis da economia capitalista e concluiu que as
contradições internas do sistema levariam inevitavelmente
à sua destruição e à ascensão do socialismo
[2]
. O realismo de Marx foi também posto em evidência em suas
polêmicas contra anarquistas e socialistas utópicos, nas quais ele
os criticou por proporem esquemas grandiosos ao mesmo tempo em que falhavam em
confrontar a realidade, levando em consideração as principais
forças em cena. Imbuído do compromisso com a pesquisa
científica, Marx pouco escreveu sobre os detalhes de como o comunismo
funcionaria já que, como um sistema para o futuro distante, sua natureza
exata não poderia ser prevista
(Science and Society,
1992, 6-7; Laibman, 1992, 62).
A defesa da abordagem "realista" à construção
socialista baseia-se no axioma marxista de que a remuneração dos
trabalhadores sob o socialismo é baseada no princípio "a
cada um segundo seu trabalho". A fórmula reforça a
suposição dos realistas de que sob o socialismo os trabalhadores
continuam a ser em grande parte motivados materialmente. Não obstante,
tanto Marx como Lênin encararam essa interpretação como
estando muito aquém da completa ruptura com valores burgueses e
anteviram que o sistema socialista deveria implementar medidas que
pavimentassem o caminho para o ideal comunista de "a cada um conforme suas
necessidades", uma frase originalmente cunhada para a
distribuição da riqueza não sob o socialismo mas sob o
comunismo. A referência de Chávez ao lema é um indicativo
do conteúdo cultural-otimista da maior parte de seu discurso
[3]
. Alguns escritores pró-Chavez que enfatizam os objetivos culturais do
socialismo venezuelano também aderem ao ponto de vista de que a
construção do socialismo desde o seu princípio deve
promover valores comunistas, tais como distribuição de acordo com
as necessidades e não com a contribuição (bem como a
eliminação da divisão entre trabalho intelectual e manual)
[4]
.
A tensão entre os realistas, que preferem, sob o socialismo,
políticas que assegurem a viabilidade do sistema, e os otimistas
culturais, que se focam em valores e em preocupações
humanitárias, tem-se manifestado freqüentemente em diferentes
cenários revolucionários. Assim, nos primeiros anos da
revolução cubana, a disputa acerca de incentivos morais
(defendidos pelo Che) e incentivos materiais (apoiados por Carlos Rafael
Rodríguez, do antigo partido comunista pró-Moscou) foram parte de
uma discussão mais ampla dentro do governo que englobou política
econômica em geral e mesmo política externa
[5]
. A suposição de que sob um estilo popular de socialismo o povo
em geral iria com o tempo assimilar completamente valores novos provou-se
totalmente otimista no caso de Cuba. Depois de quase cinqüenta anos de
socialismo, estudos sociológicos indicam ambivalências, incertezas
e, em geral, um quadro confuso das prioridades materiais do povo cubano
(particularmente as gerações pós-1958), uma
avaliação reforçada pelo atual debate relativamente aberto
na nação sobre o tema de incentivos materiais (Fernandes, 2003,
360, 370-373;Dore, 2007).
DESAFIOS PRÁTICOS E IDEOLÓGICOS À
TRANSFORMAÇÃO RADICAL NA VENEZUELA
Cooperativas, conselhos comunitários e companhias geridas por
trabalhadores
O movimento encabeçado por Hugo Chávez na Venezuela é o
último exemplo de colisão entre as duas abordagens, o que inclui
shibbolets
(idiossincrasias culturais) e suposições relativas à
viabilidade e ritmo da mudança cultural, mas que falhou em analisar
formalmente as experiências concretas e os problemas práticos que
enfrentou (Wilpert, 2007, 233). Assim, a partir de 2004 o governo injetou
grandes somas de dinheiro originadas das inesperadas receitas do
petróleo para encorajar a formação de mais de 100.000
cooperativas operárias, muitas das quais constituídas de pessoas
pobres com pouca experiência na economia formal
[6]
. O presidente Chávez instou os membros das cooperativas a descartar a
"motivação do lucro" e mostrar solidariedade com outros
trabalhadores e com as comunidades ao redor (abordagem cultural-otimista), como
parte da mudança nacional em direção a um novo modelo que
ele chamou de "socialismo do século XXI".
O resultado, todavia, esteve muito aquém das expectativas. A esmagadora
maioria das cooperativas consistiam de cerca de cinco membros (o mínimo
requerido pela lei), fortemente ligados por laços familiares.
Além disso, alguns presidentes de cooperativas embolsaram o capital
inicial fornecido pelo estado ou os adiantamentos contratuais recebidos do
setor público. Outras cooperativas foram apenas fronts de empresas
existentes que procuraram tirar vantagens dos benefícios especiais
garantidos pelo governo, como isenções fiscais e tratamento
preferencial na concessão de contratos. Na realidade, as falhas foram
tão generalizadas que muitos líderes pró-governo, mesmo os
na corrente esquerdista do movimento chavista que foram os principais
defensores da transformação socioeconômica, descartaram a
experiência toda como fracassada (Ellner, 2008, 138-174). O fato,
todavia, é que milhares de cooperativas sobreviveram ao teste do tempo e
levaram adiante o trabalho comunitário gratuito (como é sua
obrigação legal), mesmo que muitas de suas práticas
não se conformem à visão que tem um revolucionário
dos valores defendidos pelos otimistas culturais (Lucena, 2007). A iniciativa
de tantos venezuelanos em estabelecer cooperativas, e seus esforços para
mantê-las, reflete o entusiasmo dos setores não privilegiados
pelas mudanças reais estimuladas pelos ardentes discurso e programas
chavistas.
Os 20 mil conselhos comunitários que brotaram da
legislação estabelecida em 2006, e que eclipsaram em boa parte as
cooperativas, também geraram expectativas e retórica
favorável à cooperação e solidariedade, que
são o centro da abordagem cultural-otimista. Eles enfrentam problemas
similares com relação à ineficiência e ao mau uso de
fundos, apesar de indubitavelmente em menor nível. Os conselhos
comunitários escolhem e desenvolvem projetos em suas comunidades, os
quais recebem financiamento de agências estatais em nível
nacional, estadual e municipal. Assembléias locais tomam todas as
decisões importantes e elegem os líderes do conselho
comunitário, os quais têm todos a mesma hierarquia. Como as
cooperativas, os conselhos comunitários forneceram a um grande
número de venezuelanos desprivilegiados capacitação e
senso de fortalecimento. Eles também facilitaram a
mobilização política, que tem sido essencial à
sobrevivência política do governo Chávez em face de um
inimigo agressivo com imensos recursos (Ellner, 2009).
O movimento chavista também falhou na analise crítica e
sistemática das experiências das indústrias autogeridas. O
governo deu impulso ao sistema nacionalizando diversas empresas de porte
médio que foram tomadas pelos trabalhadores na oposição
à greve patronal nacional insurrecional armada em 2002-2003. Ao mesmo
tempo, Chávez colocou na presidência da companhia alumineira
ALCASA o líder esquerdista veterano Carlos Lanz, com o objetivo expresso
de promover a participação dos trabalhadores na tomada de
decisões. No ano seguinte, entretanto, a tese dos realistas de que
formas experimentais de autogestão não deveriam ser aplicadas em
setores estratégicos da economia acabou ganhando aceitação
geral na burocracia estatal, na ausência do debate público. Em
conseqüência, estruturas de participação dos
trabalhadores que surgiram na refinaria El Palito durante o lockout de
2002-2003 foram desmontadas, ao mesmo tempo que Lanz foi substituído no
comando da ALCASA. Além disso, os burocratas estatais começaram a
negar a empresas controladas por trabalhadores e a cooperativas tratamento
preferencial na concessão de contratos, na linha da abordagem realista.
A discussão interna negligenciou o contraste entre os tipos de
participação dos trabalhadores nas duas principais empresas que o
governo nacionalizou em 2005: a papeleira INVEPAL e a companhia de
válvulas INVEVAL. Na primeira, os trabalhadores pertencem a uma
cooperativa que possui 49% das ações da empresa mas mantêm
degraus salariais (abordagem realista) e até permitem
contratação de trabalho assalariado. Na segunda, os trabalhadores
renunciaram à posse das ações e estabeleceram um
"conselho de fábrica" no qual todos os trabalhadores
participam na tomada das decisões; utilizam-se pagamentos iguais para
evitar diferenciações e tensões que podem interferir n
democracia trabalhista (Montilla, 2008).
Dados esses resultados diferentes, uma discussão ampla seria urgente,
não apenas para recuperar os experimentos das cooperativas e empresas
autogeridas mas também para superar erros em programas como os conselhos
comunitários, que enfrentam desafios semelhantes. A
freqüência de eleições e referendos durante a
presidência de Chávez, bem como a iminência de
distúrbios promovidos pela oposição, distraíram a
atenção deste tipo de análise dentro do movimento
chavista. O recentemente criado partido chavista, o Partido Socialista Unido da
Venezuela (PSUV), está mais comprometido com o debate interno que seu
predecessor, o Movimento Quinta República (MVR). Não obstante, o
PSUV também falhou na reflexão crítica das
experiências das cooperativas, dos conselhos comunitários e dos
esquemas de autogestão, apesar das grandes somas de dinheiro a eles
alocadas e de sua importância no discurso chavista. Uma razão para
a relutância dos lideres chavistas em promover o debate interno foi o
desejo de evitar desvios em seus esforços correntes para manter a
unidade orgânica de seu movimento, o que o coloca em
posição vantajosa em relação aos partidos
antichavistas agrupados numa desconfortável aliança.
A discussão política formal na Venezuela passou por cima de
problemas concretos e complexos que são essenciais para a
sobrevivência e sucesso das cooperativas e conselhos comunitários,
e que têm implicações para o debate entre otimistas
culturais e realistas. Uma dessas questões são as
diferenças salariais. Membros das maiores cooperativas (como o
"Núcleo Endógeno Fabrício Ojeda" em Caracas)
geralmente recebem salários iguais independentemente das habilidades
profissionais e técnicas, em conformidade com a abordagem
cultural-otimista. Em alguns casos, somente no final do ano a
distribuição de dividendos entre os membros da cooperativa leva
em conta o número de dias que cada um trabalhou. Não está
claro se esse arranjo contribui para o absenteísmo e para a falta de
motivação (Piñeiro Harnecker, 2007, 34).
O tema da diferenciação salarial em cooperativas é parte
da questão mais ampla da igualdade social uma popular bandeira
chavista. A falha em distinguir entre igualdade relativa (na qual
diferenças de renda são substancialmente reduzidas) e igualdade
absoluta (que corresponde ao princípio marxista "a cada um conforme
sua necessidade") são o fundamento das reservas de muitos chavistas
da classe média. Especificamente, eles se opõem à
retórica de Chávez sobre a necessidade de descartar valores
materialistas assim como a certas práticas estatais nas quais pessoas
pobres são isentadas da obrigação de pagar por bens e
serviços como eletricidade.
Outra questão envolve os mecanismos para assegurar que as cooperativas
paguem os empréstimos públicos. Algumas agências estatais
criaram fundos especiais conhecidos como "Fundos de Garantias
Recíprocas", que virtualmente eliminaram o requisito de garantias
pelas cooperativas que solicitam créditos (abordagem cultural-otimista).
Desde então, a agência supervisora SUNACOOP tem processado
legalmente várias centenas de cooperativas acusadas de desvio de fundos
públicos (abordagem realista), mas até o momento não foram
tomadas quaisquer medidas exemplares (Ellner, 2007, 24). Prisão,
confisco de propriedades ou mesmo multas pesadas não são
prováveis, especialmente no caso de membros de cooperativas de baixo
rendimento. A questão da corrupção nos procedimentos
dividiu os otimistas culturais e os realistas. Os primeiros, com sua fé
na boa vontade e na capacidade dos setores não privilegiados, promovem
as "controladorias sociais", que são comitês
rudimentares estabelecidos por iniciativa popular para supervisionar
instituições públicas, inclusive os conselhos
comunitários (Giordani, 2008, 139). Em contraste, os realistas, que
apóiam em maior medida as instituições estabelecidas,
defendem que o estado processe os acusados de deslizes.
Apesar de questões espinhosas como estas e de áreas
problemáticas como o fracasso de dezenas de milhares de cooperativas, os
otimistas culturais, e o próprio Chávez, continuam a enfatizar a
suprema importância da igualdade social e da solidariedade. Ao mesmo
tempo argumentam que esses objetivos, e não os benefícios
materiais pessoais, deveriam ser a principal força motivadora dos
membros de cooperativas, conselhos comunitários e companhias
autogeridas. De sua parte, o recentemente formado PSUV tem evitado se engajar
em debates formais sobre essas ricas experiências. A falta de
autocrítica foi evidente em 2006, quando os conselhos
comunitários substituíram as cooperativas no centro do discurso e
das prioridades orçamentárias chavistas, mas não foram
adiantadas explicações para a mudança.
Expressões políticas das duas abordagens
As bases populares dos chavistas reagiram a desenvolvimentos políticos
específicos articulando argumentos em favor das abordagens
cultural-otimista e realista. Assim, por exemplo, os otimistas culturais
enfatizam o papel da mobilização de massas na derrota do breve
golpe de abril de 2002 e da greve geral (ou mais precisamente greve patronal,
ou lockout) em dezembro e janeiro de 2002-2003, ambos tentativas de
restabelecer a antiga ordem. As duas insurgências reforçaram a
linha de pensamento otimista cultural por terem demonstrado um alto
nível de conscientização e comprometimento por parte dos
apoiadores de Chávez. A cadeia de eventos de abril de 2002 foi
particularmente significativa, porque os setores mais pobres foram os
principais protagonistas (junto com os militares) e desconsideraram as
informações incorretas da imprensa numa hora em que a
popularidade de Chávez entre as classes mais privilegiadas tinha
declinado significativamente (Ali, 2008, 21). Os otimistas culturais chegaram
à conclusão de que as condições subjetivas
atingiram um novo nível na medida em que pessoas pobres, que
constituíam a vasta maioria da população, provaram ser os
principais agentes da mudança. Subseqüentemente, a
importância simbólica do evento se refletiu no slogan chavista
"cada 11 de abril tem seu 13 de abril", em referência ao dia em
que Chávez foi afastado e ao dia em que a resistência massiva o
levou de volta ao poder.
O "Movimento 13 de Abril", que foi uma das diversas
organizações sociais e políticas chavistas de base criadas
durante aqueles anos, refere-se ao incidente de 2002 como evidência da
maturidade política dos setores não privilegiados. O argumento
reforçou a demanda da organização quanto a defender o
respeito dos burocratas à autonomia dos conselhos comunitários,
que estão concentrados em áreas de baixa renda. A
rejeição, pelo Movimento 13 de Abril, das "vanguardas
ideológicas" e "vanguardas exclusivas" refletem a atitude
de muitos chavistas das bases, que suspeitam do papel dos partidos
políticos e que insistem que suas demandas cheguem ao Presidente
Chávez diretamente, sem qualquer mediação por parte dos
líderes de partidos. A essência antiburocrática da
posição cultural-otimista foi expressa pelo líder do
Movimento 13 de Abril, o escritor Roland Denis, que em seu breve período
como vice-ministro do Planejamento colidiu com o que ele chama de "estado
velho". Denis negou a afirmação de chavistas de
"direita" que as interações entre a base (o poder
constituinte) e os tomadores de decisão (o poder constituído) sob
o governo Chávez era inerentemente mais "simbiótica"
que conflituosa (Denis, 2006ª, 2006b). Outro grupo político
pró-chavista com bases locais, os "Tupamaros", que data de
antes do advento de Chávez ao poder, é também
"explicitamente anti-institucional", na linha da abordagem
cultural-otimista (Ciccariello-Maher, 2007, 52-53). Os Tupamaros tomaram a
decisão de priorizar o trabalho com os conselhos comunitários a
fim de fortalecê-los e opor-se à interferência dos
burocratas estatais (ver Valencia, 2007, 133-137).
O pensamento radical dos otimistas culturais em defesa da viabilidade de uma
revisão do sistema existente no período atual foi mais
consistentemente articulado pelos trotskistas venezuelanos, que mantêm
uma presença importante na confederação de trabalhadores
chavistas, a União Nacional de Trabalhadores (UNT; ver Ellner, 2008,
156-158)
[7]
. Enquanto a base chavista protesta contra a restrição
governamental a empréstimos e contratos para cooperativas e conselhos
comunitários, os trotskistas vão um passo além, atribuindo
o corte nos auxílios a um plano preconcebido para minar as
relações socialistas. Por esse argumento, os
"burocratas" no setor estatal, em parceria com grupos
antiéticos de políticos chavistas, favorecem grupos, mesmo
aqueles anteriormente associados com partidos políticos
pró-establishment e acusados de negócios corruptos
[8]
. Na mesma linha, os trotskistas alegam que os burocratas estatais têm
evitado a cooperação com a empresa autogerida
INVEVAL(nacionalizada em 2005) em seus esforços de adquirir componentes
básicos e que a companhia petrolífera estatal PDVSA tem resistido
a compras desta em detrimento do experimento (Wood, 2008, 415). O
secretário-geral do sindicato da INVEVAL controlado por trotskistas,
Ramón Montilla, afirma que "depois de sermos enrolados por
burocratas estatais, finalmente nos encontramos com o Presidente Chávez,
e agora estão em curso planos para a criação de uma
fundição estatal que nos fornecerá as partes que
necessitamos" (Montilla, 2008). Os trotskistas concluem que a luta de
classes deve ser travada entre o estado venezuelano e o partido no poder contra
um inimigo que se disfarça como revolucionário.
Os trotskistas e outros otimistas culturais entendem que as
condições subjetivas da nação estão maduras
para a transformação socialista, e estão otimistas quanto
ao potencial ilimitado dos experimentos socialistas como companhias autogeridas
e cooperativas, desde que pudessem contar com condições justas de
competição através do apoio econômico federal. O
debate sobre as relações do estado com as cooperativas, empresas
autogeridas e conselhos comunitários é parte de uma
discussão mais ampla sobre a estratégia política e o ritmo
das mudanças. Sem surpresa dada sua fé no alto nível de
consciência das classes populares, os otimistas culturais preferem, e
defendem, a viabilidade de um ritmo radical. Eles encaram a
transformação e a luta como em processo em curso e invocam o
governo "revolucionário" a tomar a liderança no apoio
total às cooperativas, companhias autogeridas e conselhos
comunitários, ao invés de criar obstáculos
burocráticos desnecessários.
Enquanto os otimistas culturais enfatizam o ativismo das classes populares na
oposição ao golpe de abril de 2002, os trotskistas (assim como
Roland Denis) chegam à conclusão de que, mesmo na ausência
de um partido de vanguarda na Venezuela que provesse um direcionamento, as
condições subjetivas conduziriam a uma
transformação radical (Woods, 2006, 59). Robert Sewell, um
trotskista inglês que coordena a organização internacional
de solidariedade "Hands Off Venezuela" (não se meta com a
Venezuela), afirmou no Fórum Social Mundial ocorrido em Caracas em
janeiro de 2006: "As centenas de milhares de venezuelanos de baixo
rendimento que afluíram às ruas demonstraram um nível
extraordinário de consciência. Chegou a hora do povo tomar as
rédeas da economia e da sociedade ... os trabalhadores estão
prontos para gerir as empresas" (Sewell, 2006). Alan Woods, outro
importante trotskista e membro do "Hands Off Venezuela", que na
ocasião se encontrou com o Presidente Chávez, argumenta que a
consciência era tão alta que "transformações
socialistas pacíficas" logo depois do golpe eram factíveis,
já que a "oligarquia estava impotente e não teve
força para impedi-las". Woods acrescenta que a falha em decretar a
nacionalização massiva e o recuo do governo em várias
frentes pavimentaram o caminho para a recobrada da oposição e a
organização da greve geral oito meses depois (Woods, 2008,405).
Entre afirmar que os setores populares demonstraram alto grau de
consciência política em abril de 2002 e alegar que os
trabalhadores em geral estavam prontos a gerir as fábricas há na
realidade uma enorme diferença. O otimismo de Woods e Sewell exagera o
papel ativo da classe trabalhadora venezuelana, retardado pela prolongada
fragmentação da UNT chavista. Além disso, a tese
apresentada por Woods e Sewell contradiz a complexidade da questão da
autogestão fabril, que vai além de suas afirmações
com relação à capacitação técnica e
administrativa dos trabalhadores, já que também engloba temas
desafiadores como os laços comerciais com fornecedores e clientes. A
falha em analisar objetivamente as experiências concretas da
participação dos trabalhadores na tomada de decisões
econômicas na Venezuela sob o governo Chávez é uma
deficiência importante, particularmente séria dado que a
nação tomou um caminho de tentativa e erro para o socialismo. A
discussão organizada sobre esquemas de autogestão confrontaria
questões essenciais como o dilema entre priorizar valores socialistas e
objetivos sociais ou o lucro econômico, e entre inserir a companhia na
economia de mercado ou depender do estado tanto para matéria prima
quanto para vendas.
A alegação de que a performance fraca dos experimentos
socialistas deveu-se ao tímido suporte estatal ignora o fato de que o
problema original enfrentado pelas cooperativas não foi o auxílio
deficiente, mas a falta de controles. A onda de fracassos em cooperativas
ensinou os gestores e administradores estatais a serem cuidadosos e
céticos. Em conseqüência, a SUNACOOP, a PDVSA e outras
instituições estatais começaram a exigir longos
relatórios, um requisito que os membros das cooperativas
freqüentemente criticavam como grande obstáculo ao bom
funcionamento de seus empreendimentos. Além disso, os burocratas
estatais justificavam a concessão de contratos de obras públicas
com o setor de negócios ao invés de com as cooperativas
recém-formadas com o argumento de que os primeiros, ao contrário
das últimas, tinham capital, perícia e experiência
suficientes, assim como uma reputação a proteger. Dado o fervor
revolucionário que caracteriza o movimento chavista, não é
de surpreender que os argumentos práticos nessa linha formulado pelos
realistas tenham sido em sua maior parte confinados às discussões
internas à burocracia estatal, mesmo que muitos chavistas,
particularmente de classe média, partilhem as mesmas
preocupações.
Não obstante, os argumentos realistas não estiveram totalmente
fora das discussões públicas. Heinz Dieterich, alemão de
nascimento morando no México, sistematicamente aplica
posições realistas ao caso venezuelano e é
freqüentemente citado pelos chavistas. Como outros realistas escrevendo em
outros países socialistas no passado, Dieterich defende a
aplicação da lei do valor aos preços na Venezuela,
opondo-se assim ao princípio "a cada um de acordo suas
necessidades" defendido pelos otimistas culturais (tais como o Che em
Cuba). Além disso, Dieterich argumenta que condições
nacionais e internacionais desfavoráveis, como a dependência da
Venezuela da produção de petróleo, e a praticamente
não diminuída força dos defensores do antigo sistema, tais
como a Igreja e o setor empresarial, descartam a revolução
socialista no estágio atual. Ele prossegue afirmando que, mesmo que o
estado venezuelano não esteja em posição de abandonar a
economia de mercado, pode favorecer o interesse dos pequenos negócios e
formas experimentais de produção a fim de facilitar a
transição para fora do capitalismo. Não obstante, na
sociedade democrática da Venezuela, o socialismo não pode ser
imposto ao povo. Dieterich insiste que o governo Chávez seja aberto
às críticas e que instituições como a
Assembléia Nacional assegurem sua independência frente ao ramo
executivo do governo (Dietrich, 2006;
New York Times,
6 de dezembro de 2007, A3).
Em consonância com seus conselhos para a Venezuela, Dieterich defende as
medidas pragmáticas tomadas por Raúl Castro para aumentar a
produtividade em Cuba, enquanto questiona a posição de Fidel e do
ex-ministro das Relações Exteriores Felipe Pérez Roque,
que prioriza a "ética revolucionária" e a
"disciplina revolucionária". De acordo com Dieterich, Fidel e
Pérez Roque ignoram a frase de Lênin de que "uma classe
dominante não pode se distanciar de sua capacidade de resolver a tarefa
da produção". Dieterich prossegue argumentando que "o
esforço para vacinar ideologicamente os jovens contra o padrão de
vida que eles consideram justo e necessário" não é
viável e somente conduzirá à derrubada do socialismo
cubano (Dieterich, 2007b, 161-163). A importância da eficiência e
produtividade levantadas por Dieterich em sua análise de Cuba
está no centro das diferenças entre as abordagens realista e
otimista cultural na Venezuela. O persistente esforço de Allan Woods
para demonstrar o "revisionismo" de Dieterich, sem oferecer dados
empíricos sobre os experimentos socialistas da Venezuela, somente
obscurece as questões cruciais do modelo venezuelano (Woods, 2008).
A tese realista sobre a necessidade de controles estatais efetivos e a
posição otimista cultural (enfaticamente argumentada pelos
trotskistas) a respeito dos interesses e conflitos de classe que se manifestam
na esfera estatal não são mutuamente exclusivos. Ambos são
reações aos problemas reais que surgiram na Venezuela
revolucionária. Por outro lado, muitos governos locais e estaduais
liderados por chavistas têm favorecido consistentemente com contratos um
pequeno grupo de empresários influentes, uma prática que pode
conduzir à corrupção que é um problema amplamente
percebido nesses níveis, mesmo entre os chavistas. Por outro lado, o
fracasso do governo em cumprir sua promessa em 2006 de publicar
estatísticas definitivas sobre o número de cooperativas em
operação no país (Piñeiro, 2009) reflete o controle
limitado do estado sobre as novas formas populares de tomada de decisão.
Não há razões pelas quais aspectos das estratégias
otimista cultural e realista não posam ser adotados simultaneamente para
lidar com esses problemas. A estratégia otimista cultural procuraria
cortar as relações próximas entre os funcionários
chavistas eleitos e os grupos econômicos existentes, e ao invés
disso favoreceria formas experimentais de produção como um passo
na direção da "democratização do capital"
e da construção socialista. Ao mesmo tempo, seria
reforçado e institucionalizado o controle sobre todos os programas
populares financiados pelo estado (abordagem realista), mesmo que essa
política corresse o risco de sobrecarregar os destinatários com
papelada e desencorajasse sua aplicação por alguns membros de
baixo rendimento. Num exemplo de combinação possível entre
as duas abordagens, o controle estatal em nível estadual e nacional
cooperaria e daria orientação para "controladorias
sociais" improvisadas, que são iniciativas populares com o objetivo
de monitorar o gasto público (de acordo com a abordagem
cultural-otimista). Esses vínculos promoveriam a
institucionalização de programas experimentais como cooperativas,
conselhos comunitários e empresas autogeridas, de acordo com a abordagem
realista.
IMPERATIVOS POLÍTICOS
Há convincentes razões históricas para não se
rejeitar a tese otimista cultural como inviável ou quixotesca,
particularmente em momentos em que revoluções estão sob o
maior dos ataques. Revoluções socialistas, juntamente com outras
ao longo da história, têm invariavelmente enfrentado
adversários impiedosos que não recuam ante nenhum
obstáculo para atingir seu objetivo de restaurar a ordem anterior. Em
face de desafios formidáveis, o suporte ativo e decidido das classes
populares é uma condição sine qua non para a
sobrevivência da revolução. Somente as bandeiras
cultural-otimistas da solidariedade, justiça social e igualdade, e
ações concretas que favoreçam o atingimento desses
objetivos, podem obter o comprometimento necessário dos setores
não privilegiados; os incentivos materiais defendidos pelos realistas
apontam na direção oposta. Assim, por exemplo, em face da
iminente invasão alemã com a possível cumplicidade de
outras nações capitalistas avançadas na década de
30, a União Soviética apelou ao povo para que fizesse
sacrifícios extremos a fim de construí uma economia industrial, e
priorizou incentivos morais aos materiais na forma do movimento stakhanovista.
A revolução cubana da década de 60, que confrontou
invasões e ações terroristas apoiadas pelos EUA na ilha,
também contou largamente com os incentivos morais, culminando com o
apelo para o trabalho voluntário para atingir o objetivo de produzir dez
milhões de toneladas de açúcar em 1970. O governo cubano
também levantou a bandeira da solidariedade internacional e
consistentemente a colocou em prática numa extensão não
superada pela União Soviética nos anos 30
[9]
.
No caso da Venezuela, a sobrevivência do governo Chávez tem
dependido de sua habilidade para mobilizar seguidores num grau sem precedentes
na história do país. Esta conquista política foi em grande
medida possibilitada pela preferência do Presidente Chávez pela
retórica otimista cultural sustentada por ações concretas,
tais como políticas de distribuição da riqueza. Tanto na
Venezuela como em toda parte, os realistas com sua ênfase em incentivos
materiais e esforços para conquistar a classe média reconhecendo
a importância de capacitação profissional uma
estratégia que implicitamente aceita a desigualdade social
são menos capazes de garantir o apoio ativo e continuado dos setores
populares do que os otimistas culturais.
Na verdade, a explicação do porquê a
revolução cubana sobreviveu enquanto a União
Soviética colapsou pode ser parcialmente baseada em fatores subjetivos
influenciados por estratégias cultural-otimistas. Por décadas, o
governo cubano foi mais bem sucedido no emprego do discurso otimista cultural,
contribuindo para um grau relativamente alto de entusiasmo e fervor
revolucionário entre o povo cubano, o que estava visivelmente ausente no
caso da União Soviética e do restante do bloco da Europa
Oriental. Assim, por exemplo, a solidariedade dos cubanos
"internacionalistas" que viajaram a outros países para
participar em missões diversas que variaram de atividade guerrilheira
(nos anos 60) a serviço médico não tem equivalente na
União Soviética no mesmo período. Os críticos de
esquerda do governo cubano nos anos 60, que acusaram os fidelistas de
ultra-esquerdismo e voluntarismo (ambos associados à abordagem otimista
cultural), falharam e levar em conta essa dinâmica, que foi essencial
à sobrevivência política da revolução. O
discurso de Chávez tem raízes na abordagem otimista cultural e
sua ardente retórica (incluindo ataques pessoais contra outros chefes de
estado), que tem sido útil na manutenção de uma grande
capacidade de mobilização, também deve ser entendida nesse
contexto.
UMA REFORMULAÇÃO DO DEBATE SOBRE A CONSTRUÇÃO DO
SOCIALISMO
Tanto os otimistas culturais como os realistas fazem suposições a
respeito do grau no qual pessoas numa sociedade revolucionária
estão dispostas a descartar aspirações materiais
individuais em favor da construção do socialismo e da sociedade
em geral. Deve-se distinguir, entretanto, entre sacrifícios para
enfrentar uma ameaça imediata colocada por um inimigo bem definido (como
no caso da URSS nos anos 30) e apelos contínuos à
população operária por chefes de estado socialistas que
estão razoavelmente bem instalados no poder por um bom período. A
ênfase dos otimistas culturais na solidariedade e em outros valores
socialistas, junto com sua rejeição aos incentivos materiais,
mostrou-se mais efetiva no primeiro tipo crítico de
situação que no último.
Uma diferença importante entre as posições dos realistas e
dos otimistas culturais refere-se à capacidade produtiva dos sistemas
capitalista e socialista. A afirmação dos realistas sobre a
inquestionável superioridade do socialismo neste aspecto relembra a
famosa afirmação de Nikita Krushchev de que a União
Soviética acabaria por "enterrar" os Estados Unidos na batalha
da produção. Subseqüentemente, todavia, as
nações capitalistas ultrapassaram completamente as socialistas no
desenvolvimento tecnológico, tendo uma das suas mais impressionantes
conquistas ocorrido na área da ciência da
computação, que deixou as nações socialistas muito
atrás. Os realistas atribuiriam a desapontadora performance socialista
à aplicação insuficiente de incentivos materiais. Em
contraste, alguns otimistas culturais questionam a esmagadora importância
da produção e preferem mudar o debate na direção da
transformação cultural, temas ecológicos e a
humanização das condições de trabalho. Num exemplo
especialmente revelador das prioridades dos otimistas culturais, Chávez
incluiu na proposta de reforma da Constituição uma emenda para
reduzir a semana de trabalho de 44 para 36 horas, a despeito da
condição da Venezuela de nação em desenvolvimento.
A medida, que foi derrotada num referendum realizado em dezembro de 2007, foi,
em suas palavras, proposta para "promover o desenvolvimento educacional,
humano, físico, espiritual, moral, cultural e técnico dos
trabalhadores" (Chávez, 2008, 85).
Os realistas estão mais propensos que os otimistas culturais a aceitar a
dura realidade relativa aos obstáculos e desafios especiais que os
governos socialistas enfrentam no esforço para aumentar a
produção. Mais importante que isso, o socialismo, ao
contrário do capitalismo, não tem o bode expiatório da
pobreza para estimular a disciplina e produtividade dos trabalhadores. A
"garantia absoluta de emprego" que os países socialistas
asseguram aos trabalhadores, agrava o problema. Enquanto na teoria a medida
significa para os trabalhadores segurança de emprego, exceto nos casos
de rompimento da disciplina de trabalho, na prática eles são
demitidos somente nas circunstâncias mais extremas. Garantia absoluta de
trabalho em alguns casos tem conduzido ao absenteísmo e a baixos
níveis de produtividade
[10]
.
Se as nações socialistas reproduzissem a insegurança que
prevalece no capitalismo, estariam negando as bandeiras mais caras do
socialismo. Deve-se estabelecer mecanismos alternativos para estabelecer e
fazer cumprir os níveis requeridos de produtividade, um imperativo que o
discurso realista e os incentivos materiais estão mais capacitados a
satisfazer. Idealmente, os incentivos materiais criariam disparidades de
receita suficiente para impactar significativamente a motivação
dos trabalhadores, mas não ao ponto de admitir
diferenciação social.
Os realistas também defendem a propriedade privada no socialismo.
Deve-se diferenciar, entretanto, entre negócios pequenos, médios
e grandes. Na Venezuela (como em outros países em
transição para o socialismo), a oposição acusa
falsamente o governo Chávez de tentar acabar com a propriedade de
pequenos empresários, personificados na propaganda televisiva por um
açougueiro que teme o confisco de seu modesto negócio. Em muitos
países socialistas, os realistas afirmaram que negócios de
pequeno porte devem ser tolerados e mesmo encorajados sob o socialismo,
enquanto apóiam a ampliação dos direitos de propriedade
privada, como domicílios familiares (um tópico do atual debate em
Cuba). Um estado socialista precisaria usar mecanismos de taxas, monitorar
cuidadosamente e exercer controle sobre empresas de médio porte, de modo
que estas não pudessem usar o poder econômico como
influência política (Dieterich, 2007b, 166-167). Em contraste, o
socialismo por definição abole a grande posse privada, exceto em
áreas específicas por períodos limitados (em
contrário aos acontecimentos na China e ao que é referido como
socialismo do tipo escandinavo). Diferentemente do que os defensores do modelo
escandinavo mantém, os incentivos materiais no socialismo não
necessariamente levam a empresas capitalistas de grande porte, que são
basicamente incompatíveis com o sistema socialista (ver Moses, Geyer e
Ingebristen, 2000, 1-6).
O estímulo à produção para satisfazer à
demanda dos consumidores (uma prioridade na abordagem realista) e a
promoção do debate interno no movimento revolucionário
para analisar os erros duas das principais preocupações
deste artigo tornar-se-ão cada vez mais viáveis à
medida em que o inimigo se enfraquece política e economicamente e os
revolucionários podem escolher entre várias opções.
Na realidade, no caso da Venezuela, a perda de poder das forças
pró-sistema nos anos 80 e 90 tornaram possível o caminho
democrático e pacífico para mudanças radicais sob a
gestão de Chávez. Desde os anos 80, a burguesia venezuelana
tornou-se criticamente fragmentada e subordinada a interesses econômicos
estrangeiros, que tomaram setores inteiros da economia tanto na esfera
pública como na privada. Esses acontecimentos foram agravados pela crise
financeira do país em 1993-1994 (Ortiz, 2004, 76-85) Além disso,
todos os partidos conservadores, mesmo os de centro-esquerda, que sem nenhuma
exceção aceitaram o neoliberalismo nos anos 90, ficaram
grandemente desacreditados (Ellner, 2008, 105-106). Esta fraqueza, combinada ao
declínio da influência dos EUA durante a
administração Bush, tornaram possível o sucesso
político de Chávez. Não obstante, a ameaça do
retorno da oposição ao poder com apoio americano, que é
ainda uma possibilidade muito real, pressionaram os líderes chavistas a
levantar a bandeira da unidade e colocar de lado o debate ideológico
entre realistas e otimistas culturais.
Argumentos poderosos sustentam tanto as teses realistas quanto as otimistas
culturais. De um lado, o estímulo à transformação
de valores no socialismo, como Marx deixou claro, não pode ser relegado
ao distante estágio futuro do "comunismo", nem pode ser
confinado a campanhas educacionais, mas, ao contrário, deve ser
construído nas relações econômicas (abordagem
otimista cultural). Por outro lado, os marxistas há muito reconheceram
que diferenças sociais e tensões persistem sob o socialismo, uma
premissa básica dos realistas (assim como de muitos otimistas
culturais). Além disso, a experiência mostra que o utopicismo ou a
superestimação do nível de consciência da classe
operária e da população em geral pode produzir
deformações tais como intolerância com aqueles que resistem
às mudanças, e repressão sistemática (Laibman,
1992, 66).
Este artigo apontou para diversos fatores que pesam no caminho da
construção socialista, como imperativos políticos, a
força relativa do inimigo, os níveis de consciência e
disciplina da classe trabalhadora e o processo de
institucionalização. Mais importante, o estágio inicial da
revolução requer o aproveitamento da energia dos setores
populares na forma de mobilização política constante e
outras formas de ativismo político, O governo revolucionário pode
maximizar sua atratividade formulando slogans igualitários e
políticas que enfatizam a solidariedade de acordo com a abordagem
otimista cultural. O processo subseqüente de consolidação
coloca a maior ênfase na produção, que no mínimo por
um certo período é mais incentivada pelo aumento no peso dos
incentivos materiais (enfoque realista). Mas em nenhum tempo os dois enfoques
representam uma proposição "esta ou aquela" (Laibman,
1992, 66).
Esta complexidade argumenta contra posições dogmáticas ou
extremas associadas com as estratégias cultural-otimista e realista e em
favor de uma combinação de ambas. Um exemplo na Venezuela
é a proposição referida acima, na qual o controle estatal
estabelecido para assegurar contra o abuso ou o uso ineficiente de dinheiro
público trabalha em conjunção com a "controladoria
social" temporária que consiste de pessoas nas comunidades
encarregadas de monitorar o gasto de seus respectivos conselhos
comunitários. O argumento em favor da síntese das duas
posições também repousa na necessidade de levar em conta a
diversidade social no processo da transição socialista. Por
exemplo, grande número daqueles que pertencem aos setores médios
têm uma atitude ambivalente com relação às
mudanças em curso, e de modo a conquistá-las suas
aspirações devem ser reconciliadas com os chamados para a
igualdade e justiça social (enfoque otimista cultural) que ressoam nos
setores mais pobres da população. Além disso,
diferenças salariais e incentivos materiais (enfoque realista)
não somente são atrativos para os setores médios mas
também alavancam a capacidade produtiva da classe operária.
Assim, o debate acerca de diferenças salariais limitadas mas efetivas
não deveria ser rejeitado ou considerado tabu, mesmo que a excessiva
disparidade de renda que atualmente vigora na China contradiga a essência
do socialismo.
Muito da discussão sobre a construção do socialismo na
Venezuela é influenciado pelas suposições do otimismo
cultural sobre a disposição do povo em aceitar os ideais da
sociedade em construção e participar entusiasticamente na tomada
de decisões no nível local e de trabalho
[11]
. A avaliação dos otimistas culturais na Venezuela não foi
testada na forma de exame empírico sistemático. Um exemplo de
problema espinhoso que requer soluções práticas e como o
estado pode lidar eficazmente com as cooperativas e conselhos
comunitários apoiados publicamente mas ineficientemente geridos a fim de
estimular maior disciplina sem desencorajar a participação
continuada de seus membros.
Acadêmicos, ativistas e bases chavistas precisam olhar cuidadosamente
para as limitações, obstáculos e avanços das
experiências venezuelanas na democracia direta e nas
relações experimentais da tomada de decisões pelos
trabalhadores. O mais importante é o seu impacto não tanto sobre
os céticos e os oponentes do socialismo, mas sobre aqueles que
apóiam o processo. Um socialismo realmente democrático
estabeleceria mecanismo para assegurar que a avaliação dessas
experiências se traduzissem em políticas projetadas para corrigir
erros. Este artigo sugeriu que os desafios que a Venezuela enfrenta na
construção do socialismo estão longe de ser excepcionais.
A despeito da rica variedade de desenvolvimentos desde 1917, insuficiente
análise tem se focado nos detalhes e nos aspectos práticos das
relações socialistas como eficiência e disciplina no local
de trabalho e motivação do operário, enquanto
suposições têm tido maior peso que evidência
concretas na avaliação das condições subjetivas.
Notas:
1. O termo "otimismo cultural" ou "posição
cultural-otimista" empregado neste artigo tem uma natureza dual: refere-se
à ênfase na transformação de valores, como oposta
à transformação material, assim como à
avaliação otimista das condições
revolucionárias. Uma expressão especialmente radical da
posição cultural-otimista na Venezuela vê as
mudanças inspiradas pelo socialismo como uma possibilidade imediata.
2. Louis Althusser (1979, 49-86) argumenta que os escritos do "jovem"
Marx, juntamente com o que este artigo chama de posição
"cultural-otimista", destacam-se do Marxismo, que se baseia na
análise científica.
3. Um exemplo de argumento favorável a "a cada um conforme sua
necessidade" é a posição de que bens e
serviços que satisfazem necessidades básicas como saúde,
educação e moradia não deveriam estar sujeitos a
condições de mercado mas, ao contrário, deveriam ser
excepcionalmente baratos, se não gratuitos. A questão em debate
na Venezuela de Chávez, onde a destinação estatal de
recursos para a saúde, educação e transporte, entre outros
setores, tem reduzido substancialmente os preços ou mesmo os eliminado.
A crítica por parte de muitos chavistas de classe média sobre
certos serviços e bens gratuitos ou virtualmente gratuitos fornecidos
pelo estado demonstra que o princípio marxista de "a cada um
conforme sua necessidade" não é exatamente uma
questão abstrata.
4. Michael Lebowitz, por exemplo, enfatiza a importância da solidariedade
na economia venezuelana, a qual ele afirma se sustentar na
constituição de inspiração chavista de 1999.
Leibowitz argumenta que Marx considerava a noção de "a cada
um conforme seu trabalho" um desvio (ou "defeito"), e portanto
se opôs à sua aplicação sob o socialismo (Leibowitz,
2007, 484, 478, 2006, 106). Para outro estudo que enfatiza valores (de acordo
com a linha cultural-otimista de pensamento) da forma como aplicado ao
movimento cooperativo venezuelano, veja Piñeiro, 2009.
5. Líderes dos Partidos Comunistas pró-soviéticos ao longo
da América Latina se alinharam com as políticas de Rodriguez,
assim como os economistas marxistas Charles Bettelheim e Edward Boorstein
(1968, 253-4, 260). O debate foi revisitado pelo marxista alemão Heinz
Dieterich (2007ª), que considerou as políticas de Che sumamente
idealistas, e por Helen Yaffe (2009), que concede a ele uma opinião
favorável.
6. Antes de 2000 havia somente 2.500 cooperativas registradas na Venezuela. Em
2006, das 100.000 cooperativas não-agrícolas, 52% estavam no
setor de serviços, seguidas pelas de produção (32%) e
transporte (10%) (Lucena, 2007, 73, 290).
7. Três grupos trotskistas desfrutam algum grau de influência no
movimento trabalhista venezuelano: a Corrente Marxista Revolucionária
(CMR), afiliada ao movimento inglês International Marxist Tendency
(dirigido por Allan Woods); a "Maré Socialista"; e a Corrente
Classista, Unitária, Revolucionária e Autônoma (C-CURA),
encabeçada pelo sindicalista veterano Orlando Chirino, que é
extremamente crítica do governo Chávez. O CMR e a Maré
Socialista, ao contrário do C-CURA, seguem a estratégia de
trabalhar com o partido chavista, o PSUV.
8. Além do problema da corrupção que se percebe prevalecer
largamente na Venezuela, alguns funcionários chavistas locais
expressaram, particularmente, medo de que formas experimentais de tomada de
decisões, tais como o movimento de conselhos comunitários, possa
minar sua posição de autoridade (Ellner, 2009).
9. Enquanto os soviéticos e cubanos enfatizavam incentivos morais frente
aos impiedosos inimigos durante esses primeiros anos críticos, pararam
de colocar em prática a bandeira mais ambiciosa do controle pelos
trabalhadores, e por essa razão alguns otimistas culturais referem-se ao
sistema predominante na URSS como "capitalismo de estado" (ver
Resnick e Wolf, 2002, 237-280).
10. O problema se manifesta quando os trabalhadores que têm
segurança absoluta de emprego não recebem incentivos para se
destacar em seu trabalho,. Por muitos anos na Venezuela, por exemplo,
professores universitários que recebiam estabilidade tendiam a manter
níveis mais baixos de disciplina no trabalho e na
produção.O "Programa de Promoção de
Investigadores (PPI) iniciado em 1990, que atrelou as bolsas de estudo à
produtividade na área de pesquisa da universidade, teve como objetivo
corrigir este problema.
11. Para uma discussão da tese que supõe um alto nível de
conscientização da classe trabalhadora na União
Soviética pós-1017, atribuindo o desvio na nação do
verdadeiro socialismo às lideranças oportunistas que emergiram,
ver Smith, 2007, 168.
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Autor de
Rethinking Venezuelan Politics: Class, Conflict, and the Chavez Phenomenon
.
Apartado 485, Barcelona, Anzuàtegui 6001, Venezuela,
sellner74@gmail.com
. Agradeço os comentários críticos de Peter Marcuse,
Miguel Tinker Salas, Jack Hammond, Dick Parker e Ralph Van Roy.
O original encontra-se na revista
Science & Society,
volume 74, nº 1, Janeiro/2010. Tradução de RMP.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.
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