O apelo à construção do socialismo do século XXI,
que Chávez formulou, repôs em cena os debates sobre caminhos,
tempos e alianças para forjar uma sociedade não capitalista. Esta
discussão é retomada quando o grosso das forças
progressistas já se acostumara a omitir quaisquer referências ao
socialismo. A recuperação da credibilidade popular neste projecto
não é ainda visível, mas a meta da
emancipação é de novo debatida nas
organizações populares que procuram um norte estratégico
para a luta dos oprimidos. Qual é o significado actual de uma proposta
socialista?
CINCO MOTIVAÇÕES
A América Latina converteu-se num cenário privilegiado para este
debate por várias razões. Em primeiro lugar, a região
é o principal foco de resistência internacional ao imperialismo e
ao neoliberalismo. Várias sublevações populares levaram
nos últimos anos à queda de presidentes neoliberais
(Bolívia, Equador e Argentina) e consolidaram uma poderosa
presença dos movimentos sociais.
Num quadro de lutas que inclui reveses ou repressão (Peru,
Colômbia) e também refluxo ou decepção (Brasil,
Uruguai) novos contingentes se juntaram ao protesto popular. Estes
sectores contribuem com uma renovada base juvenil (Chile) e modalidades muito
combativas de auto-organização (Comuna de Oaxaca no
México). O socialismo oferece uma perspectiva estratégica para
estas acções de massas e pode vir a transformar-se num tema de
reflexão renovada.
Em segundo lugar, o socialismo começa a gozar de uma certa popularidade
na Venezuela. Esta sua difusão confirma uma proximidade
ideológica do processo bolivariano relativamente à esquerda que
esteve envolvida em outras experiências nacionalistas. Na época da
União Soviética, alguns governantes do Terceiro Mundo assumiam a
identidade socialista com fins geopolíticos (contrariar as
pressões norte-americanas) ou económicos (obter
subvenções do gigante russo). Como essa vantagem já
desapareceu, o resgate actual do projecto tem conotações mais
genuínas.
O ressurgimento do socialismo é constatável também na
Bolívia, nos propósitos de vários dirigentes do Estado, e
está vivo em Cuba, ao cabo de 45 anos de embargos, sabotagens e
agressões imperialistas. Se o desmoronamento que estilhaçou a
URSS e a Europa Oriental se houvesse estendido à Ilha, ninguém
poderia postular actualmente um horizonte anticapitalista para a América
Latina. O impacto político de tal regressão teria sido devastador.
O socialismo constitui, em terceiro lugar, uma bandeira que a
oposição de esquerda retomou contra os presidentes
sócio-liberais, que abandonaram qualquer alusão ao tema para
congraçar-se com os capitalistas. Bachelet, Lula e Tabaré
Vázquez desfizeram-se nos seus discursos de todas as referências
ao socialismo, renunciaram a introduzir reformas sociais e colocaram-se num
terreno oposto ao das às maiorias populares. Bachelet nem sequer recorda
o nome do seu partido quando preside à Concertação que
recicla o modelo neoliberal. Lula esqueceu-se do seu namorico de juventude com
o socialismo, para privilegiar os banqueiros, e Tabaré repete este mesmo
padrão quando tenteia os acordos de livre comércio com os Estados
Unidos. Nestes três países o socialismo é um estandarte
contra essa deserção, que reaparece num quadro regional muito
diferente daquele que foi o predominante nos anos 90.
A etapa de uniformidade direitista findou e as personagens mais
emblemáticas do neoliberalismo extremo saíram da cena. O
militarismo golpista perdeu viabilidade e a mobilização popular
conquistou vastos espaços democráticos. Assim, governantes
conservadores coexistem com presidentes de centro-esquerda e com governos
nacionalistas radicais.
Na América Latina, em quarto lugar, alastra uma mudança no
contexto económico que favorece o debate em torno de alternativas
populares. Em vários sectores das classes dominantes tem vindo a
despontar um movimento de opinião neo-desenvolvimentista em desfavor da
ortodoxia neoliberal, depois de um período traumático de
concorrência extra-regional, desnacionalização do aparelho
produtivo e perda de competitividade internacional.
A viragem em curso é "neo" e não plenamente
desenvolvimentista porque preserva a restrição monetária,
o ajuste fiscal, a prioridade às exportações e a
concentração do rendimento. Apenas defende o incremento dos
subsídios estatais à indústria para reverter as
consequências do livre-câmbio extremo. A vulnerabilidade financeira
da região e a ligação a um padrão de crescimento
muito dependente dos preços das matérias-primas induzem ao ensaio
desta mudança. Contudo este movimento de opinião tem vindo a
afectar todos os dogmas económicos que dominaram na década
passada e abre espaços para contrapor alternativas socialistas ao modelo
neo-desenvolvimentista.
Na América Latina verifica-se, em quinto lugar, uma tendência
generalizada para a concepção de programas nacionais em quadros
regionais. Esta atitude é predominante também entre as
organizações populares que compreendem a necessidade de avaliar
as suas reivindicações numa escala zonal. Este novo
espírito permite encarar o debate acerca da ALCA, do MERCOSUL e da ALBA
a partir de reformulações regionalistas do socialismo. Os
três projectos de integração em campo incluem: os
propósitos estratégicos de relançamento do neoliberalismo
(ALCA), a regulação do capitalismo regional (MERCOSUL), e o
desabrochar de formas de cooperação solidária
compatíveis com o socialismo (ALBA).
O actual contexto latino-americano encoraja, portanto, a retomar os programas
anti-capitalistas em vários terrenos. Porém estas
orientações moldam-se em estratégias diferentes. Uma via
possível passa por desenvolver a luta popular, estimular reformas
sociais e radicalizar as transformações propiciadas pelos
governos nacionalistas. Esta rota exige o desmascarar das duplicidades dos
governantes de centro-esquerda, questionar o projecto neo-desenvolvimentista e
fomentar o ALBA como um avanço em direcção à
integração regional pós-capitalista. Expusemos algumas
linhas gerais desta opção num texto recente
[1]
.
Um outro rumo define uma sequência de passos diferente. Vaticina que a
construção do socialismo será precedida por um longo
período prévio capitalista. Propõe-se desenvolver esta
fase com políticas proteccionistas, de modo a melhorar a capacidade
competitiva da zona. Por isso olha com simpatia o actual movimento
neo-desenvolvimentista, impulsiona o MERCOSUL e dá o seu aval à
expansão de uma classe empresarial regional. Apela à
constituição de uma frente entre os movimentos sociais e os
governos de centro-esquerda (Bloco Regional de Poder Popular) e imagina o
socialismo como um estádio posterior à nova fase do capitalismo
regulado
[2]
.
O PROBLEMA DO COMEÇO
Em nenhum aspecto do debate está em causa a instauração do
socialismo pleno. Apenas se discute o iniciar do seu projecto. Construir uma
sociedade de igualdade, justiça e bem-estar será uma tarefa
histórica árdua e demorada, que requererá a
eliminação progressiva das leis da concorrência, da
exploração e do lucro. Não é uma meta para atingir
em pouco tempo.
Em especial nas regiões periféricas como a América Latina,
este processo terá de pressupor o amadurecimento de certas premissas
económicas, que permitam melhorar qualitativamente o nível de
vida da população. Estes benefícios desenvolver-se-iam em
conjunto com a expansão da propriedade pública e a
consolidação da auto-administração popular. Como
tal evolução exigirá várias gerações,
o debate imediato está apenas referido à possibilidade de iniciar
este processo.
Começar a edificação do socialismo implicaria substituir a
prevalência de um regime súbdito das leis do lucro por um outro,
regulado para a satisfação das necessidades sociais. A partir do
momento em que um modelo económico e político dirigido
pela vontade majoritária da população assumisse
tais características, teria começado a vigorar uma forma
embrionária de socialismo
[3]
.
Este começo é condição para qualquer avanço
posterior. Uma sociedade pós-capitalista nunca emergirá se o
movimento socialista não se concretizar num qualquer momento do
presente. Os opressivos mecanismos da ganância e da concorrência
têm de ser drasticamente neutralizados para que uma nova forma de
civilização humana possa começar a despontar.
O ponto de partida desta transição socialista opõe-se por
completo à gestação de um modelo neo-desenvolvimentista.
As duas perspectivas são radicalmente contrárias e não
podem conciliar-se, nem desenvolver-se de forma simultânea. A
concorrência pelo lucro impede a paulatina formação de
ilhéus colectivistas no interior do capitalismo, dado que a
concorrência distorce a médio prazo todas as modalidades
cooperativas de tais empreendimentos. Os dois projectos de sociedade tampouco
poderiam conviver entre si pacificamente até que um deles viesse a
demonstrar maior eficiência e gozasse da aprovação geral.
Somente através da erradicação do capitalismo se
poderão abrir as portas para a emancipação social. A
grande questão é se na América Latina é
possível começar a desenvolver esta mudança.
ETAPA OU PROCESSO?
A tese pro-desenvolvimentista responde negativamente à questão
chave do período actual. Defende que na região "não
existem condições para uma sociedade socialista"
[4]
. Porém não esclarece onde constata tais insuficiências no
plano económico, tecnológico, cultural ou educativo. O que
é que falta exactamente à zona para inaugurar a
transformação anticapitalista?
A América Latina ocupa um lugar periférico na estrutura global do
capitalismo, contudo conta com recursos sólidos para dar início a
um processo socialista. Estes alicerces são bem reais em diversos
campos: terras férteis, jazigos minerais, bacias hídricas,
riquezas energéticas, bases industriais. O grande problema da
região é o desaproveitamento destas potencialidades.
As formas retrógradas de acumulação impostas por uma
integração sob dependência no mercado mundial deformaram
historicamente o desenvolvimento regional. Não há falta de aforro
local, mas sim excesso de transferências para as economias centrais. O
atraso agrário, a baixa produtividade industrial, a estreiteza do poder
aquisitivo foram os efeitos desta depredação imperialista. O
drama principal latino-americano não é a pobreza, mas a
escandalosa desigualdade social, que o capitalismo sempre refaz em todos os
países.
A hipótese da imaturidade económica é desmentida pela
conjuntura actual, que criou o grande dilema de saber quem será o
beneficiário do crescimento em curso. Os neo-desenvolvimentistas
esforçam-se em canalizar esta melhora económica a favor dos
industriais e os neoliberais procuram preservar os privilégios dos
bancos. Em oposição a essas opções, os socialistas
deviam propugnar por uma redistribuição radical da riqueza, que
melhore no imediato o nível de vida dos oprimidos e erradique o primado
da rentabilidade. Estão disponíveis os recursos para tal.
Há uma ampla margem para instrumentar programas populares e não
apenas condições para o implemento de rotas capitalistas.
É certo que o quadro objectivo que conforma os diversos países
é muito desigual. As vantagens que as economias médias acumulam
não são compartilhadas pelas nações mais pequenas e
empobrecidas. A situação da Venezuela difere da Bolívia e
o Brasil não carrega com as restrições que pesam sobre a
Nicarágua. Mas já deixou de ter vigência a perspectiva de
uma mudança socialista em termos exclusivamente nacionais.
Se as classes dominantes concebem as suas estratégias a nível
regional, também é lícito imaginar um projecto popular
à escala regional. Os opressores perspectivam o seu horizonte em
função da taxa de lucro e os socialistas poderão formular
a sua opção em termos de cooperação e
complementaridade económica. Esta é a orientação
que contrapõe a ALBA à ALCA ou ao MERCOSUL.
Não existe limitação objectiva alguma para desenvolver
este rumo igualitário. É um erro pensar que a região
terá de passar pelas mesmas etapas de desenvolvimento que os
países centrais percorreram. A história sempre fez o seu curso
por caminhos inesperados, que combinam temporalidades diversas. E a
América Latina desenvolveu-se num padrão discordante de
crescimento desigual e combinado, que tenderá também a determinar
os desenlaces socialistas.
QUEM PAGARÁ OS CUSTOS?
A tese que propõe fazer preceder ao socialismo um modelo capitalista
assemelha-se à "teoria da revolução por etapas".
Esta concepção que teve muitos aderentes na esquerda
postulava a necessidade de "erradicar os vícios
feudais" latino-americanos antes de dar início a qualquer
transformação socialista. Para atingir esta primeira meta
propunha-se recorrer ao auxílio das burguesias nacionais em cada
país.
A nova versão introduz um matiz regionalista no mesmo enfoque.
Não se limita a fomentar os grupos capitalistas nacionais, mas apela
ainda à constituição de um empresariado regional. O
primeiro esquema não prosperou durante todo o século XX e existem
grandes limitações na actualidade para materializar um seu
complemento regional.
Uma burguesia sul-americana seria efectivamente mais forte do que as
fracções balcanizadas que a precederam, porém
também teria de enfrentar uma concorrência mais árdua. Em
vez de apenas ter de rivalizar com as corporações
norte-americanas, inglesas ou francesas, teria também de ir à
lide com blocos imperialistas regionalizados e poderosos financeiros
globalizados.
Os que apostam na revitalização do capitalismo latino-americano
supõem que nas próximas décadas irá prevalecer um
contexto internacional multipolar. Só neste quadro poderiam medrar
processos de acumulação duradouros nas regiões
periféricas. Este pressuposto presume, além disso, que a
América Latina se iria tornar um protagonista ganhador em tal
cenário. Mas então quem serão os perdedores? As grandes
potências imperialistas? Outras regiões dependentes? Os estrategas
do capitalismo regionalista iludem as respostas. Não auguram como
os neoliberais uma prosperidade generalizada, nem tampouco pressagiam
uma chuva de benefícios a compartilhar por todo o planeta. Simplesmente
entrevêem grandes êxitos para o capitalismo latino-americano num
quadro global indefinido.
Este enfoque dá por garantido que as classes dominantes sul-americanas
já abandonaram os seus antecedentes centrífugos e que irão
trabalhar em comum debaixo da disciplina do MERCOSUL. De facto,
pressupõe que se vai repetir um percurso semelhante ao que foi seguido
pela unificação europeia, apesar da evidente disparidade
existente entre ambas as regiões. A desnacionalização que
predomina na economia latino-americana tampouco é vista como um grande
obstáculo à formação do empresariado regional. Nem
mesmo a intensa associação que cada grupo capitalista local
mantêm com os seus sócios forâneos é compreendida
como um impedimento para o neo-desenvolvimento regional.
Na realidade, a concreção proposta por este projecto não
é completamente impossível, porém é altamente
improvável. O capitalismo contemporâneo tem vindo a suscitar
certas surpresas (China), contudo o ascenso conjunto e com êxito de um
bloco periférico latino-americano é muito pouco factível.
As especulações sobre essa possibilidade podem ir até ao
infinito, mas as vítimas e os beneficiários deste processo
estão à vista. Qualquer desenvolvimento capitalista será
custeado pelas maiorias populares porque os banqueiros e industriais
irão exigir ganâncias superiores à média
internacional para embarcarem em tal iniciativa. Como os explorados e oprimidos
teriam de carregar com todas as perdas, [nós,] os socialistas lutamos
por um modelo anticapitalista.
Em qualquer das suas variantes o MERCOSUL do neo-desenvolvimento seria um
projecto incompatível com reformas sociais significativas e com
melhorias duradouras do nível de vida da população. Seria
fundado numa concorrência pelos lucros que implicaria atropelos contra os
trabalhadores. Estas agressões poderiam ser amenizadas por um certo
período de tempo, mas ressurgiriam de modo mais brutal na etapa
subsequente. Nenhuma regulação estatal permitiria contrariar
indefinidamente as pressões ofensivas do capital.
Esta certeza devia levar todos os socialistas a preocuparem-se menos com a
exequibilidade deste ou daquele modelo burguês e a prestarem mais
atenção às oportunidades de um curso anticapitalista. Ao
postergarem indefinidamente este rumo, os teóricos favoráveis ao
MERCOSUL neo-desenvolvimentista não nos oferecem qualquer nesga de
socialismo. Apenas alvitram a construção de um empresariado
regional, sem nada sugerirem a respeito do iniciar do projecto de
emancipação no decurso do século XXI.
O esquema pró-desenvolvimentista é concebido com critérios
gradualistas, etapas pré-estabelecidas e simples conexões entre o
amadurecimento das forças produtivas e as transformações
sociais. Por isso abre muito espaço para falar do capitalismo e deixa
pouco lugar à sugestão de algo de concreto sobre o socialismo.
A TESE DO INIMIGO PRINCIPAL
Os auspícios de um modelo neo-desenvolvimentista traduzem-se num suporte
ao eixo político de centro-esquerda que Lula e Kirchner lideram na
América do Sul. Os seus promotores consideram que estes governos
representam o industrialismo contra a especulação financeira e os
progressistas contra a direita oligárquica. Vêm o projecto
socialista como uma etapa ulterior à derrota da reacção e
concebem essa vitória como uma condição
incontornável do socialismo do século XXI
[5]
.
Mas será assim tão evidente a divisão entre
neo-desenvolvimentistas e neoliberais? Não existem inumeráveis
vínculos entre os industriais e os financistas? As conexões entre
ambos os sectores têm sido muito estudadas e surpreende a sua
omissão na hora de apostar num choque entre os dois grupos. A
amálgama é tão grande que um líder natural do
pelotão neo-desenvolvimentista, como Lula, tem mostrado
até agora mais afinidade com o capital financeiro do que com os
sectores industriais.
Porém, mesmo aceitando um cenário de forte oposição
entre ambas as fracções capitalistas cabe fazer uma outra
pergunta: Em que medida o apoio aos neo-desenvolvimentistas faria aproximar os
oprimidos da sua meta socialista? Poder-se-ia argumentar que o modelo
industrialista criará emprego, melhorará os salários e
fortalecerá a luta dos trabalhadores pelo seu projecto próprio.
Porém, se o capitalismo fosse capaz de assegurar tais resultados, a
batalha pelo socialismo não teria muito sentido. Sob o regime actual, os
ganhos dos poderosos nunca se estendem ao conjunto da sociedade. Apenas geram
mais concorrência pela exploração e crises tempestuosas,
que se abatem sobre os oprimidos.
Uma outra justificação do argumento neo-desenvolvimentista
destacaria os efeitos positivos dessa via sobre a correlação de
forças que opõe os trabalhadores aos capitalistas. Mas se os
explorados servem de esteio a um projecto que não é o seu perdem
capacidade de acção. Jamais melhorariam a sua
posição trabalhando em prol do sistema que os oprime. Por um tal
caminho apenas conspiram contra os seus próprios interesses.
A ausência de uma agenda própria é o principal
obstáculo que os oprimidos enfrentam na luta pelo socialismo. A
política pro-desenvolvimentista acentua esta falta de autonomia ao
subordinar as reivindicações dos assalariados às
necessidades dos capitalistas. Em vez de levar ao aumento da confiança
das massas na sua própria acção, esta
orientação reforça as expectativas que foram depositadas
no paternalismo burguês.
Alguns teóricos afirmam ainda que o patrocínio do
neo-desenvolvimentismo será transitório. Porém qual
é o lapso de tempo concedido a esse período? Vários anos
ou várias décadas? Um modelo industrialista não amadurece
em pouco tempo. Para alcançar um certo desenvolvimento necessita de
passar por uma longa etapa de acumulação à custa dos
explorados. Durante essa fase, o modelo apenas se estabilizaria se os
capitalistas antevissem um horizonte de ganâncias que os induzisse ao
investimento. E essa predisposição a investir no contexto
competitivo internacional exigiria um grau de disciplina laboral
incompatível com qualquer perspectiva anticapitalista.
O socialismo apenas poderá avançar pelo caminho oposto de
acções reivindicativas e conquistas sociais que levem ao
extravasamento do quadro capitalista. E esta batalha apenas terá
êxito se os oprimidos assimilarem ideias revolucionárias a partir
de uma crítica radical do sistema actual. Os elogios à
opção neo-desenvolvimentista estão na contramão
desse amadurecimento político.
O SENTIDO DAS ALIANÇAS
Os que perspectivam o futuro económico regional em função
do choque entre neo-desenvolvimentistas e neoliberais têm tendência
a considerar que as únicas alternativas políticas
possíveis se limitam ao centro-esquerda e ao centro-direita
[6]
. Porém, do seguimento desse conflito não surge qualquer pista
para o socialismo do século XXI. Num tabuleiro dominado pela disputa
entre Lula, Kirchner ou Tabaré e os seus adversários direitistas,
não há modo de imaginar que senda poderia trilhar um processo
anticapitalista. Este embaraço é ainda maior se colocar
Chávez e Morales no interior desse mesmo bloco centro-esquerdista e
conferir à esquerda o rol de acompanhante silencioso dessa
aliança.
Esta estratégia pressupõe que as organizações
populares e os governos de centro-esquerda tendem a convergir naturalmente,
como se os interesses das classes dominantes e os movimentos sociais fossem
espontaneamente coincidentes. Mas uma tal junção social teria de
exigir, na realidade, um árduo labor prévio de
"amaciamento" de todas as reivindicações das maiorias
populares.
As frentes destinadas a sustentar modelos capitalistas padecem ainda de um
outro problema: tendem invariavelmente a virar à direita. Os seus
promotores descobrem sempre mais algum novo inimigo oligárquico, cuja
derrota irá requerer ainda maiores concessões ao establishment.
Esta maleita também obriga a travestir de virtudes progressistas muitos
sectores que anteriormente eram identificados com a reacção. As
propostas de aproximação de novos aliados ao MERCOSUL para
reforçar a batalha contra o ALCA são um exemplo típico
desta política. Por vezes até o "sub-imperialismo
espanhol" é visto como candidato à
participação na coligação
[7]
. Por este caminho perdem relevância todas as questões quanto
à pilhagem que a Repsol pratica e se reduzem a nada em poucos segundos
as denúncias acumuladas durante anos.
A estratégia de alianças abrangentes contra a oligarquia conduz
à preservação do status quo. É o caminho que
empurrou Lula, Tabaré e Bachelet para o social-liberalismo e é o
rumo que actualmente tende a seguir Daniel Ortega. O novo presidente da
Nicarágua já não guarda qualquer semelhança com a
sua antiga origem revolucionária. Avaliza as
privatizações, defende a supervisão do FMI e aceita a
continuidade do tratado de livre comércio com os Estados Unidos (CAFTA)
[8]
.
Sobre tais pilares não se pode construir nenhum Bloco de Poder Regional
que contribua para o socialismo. O social-liberalismo e o centro-esquerda
não só impedem esse avanço, como também fazem
obstrução às tendências anti-imperialistas e
às reformas sociais que os governos nacionalistas radicais promovem. Um
dos grandes objectivos dos conservadores do MERCOSUL é justamente a
diluição do ALBA.
O neo-desenvolvimentismo é o programa da Petrobrás para preservar
a espoliação do gás no Altiplano boliviano. É
também a plataforma do convénio comercial com Israel que Kirchner
promoveu, enquanto que Chávez denunciava as matanças de
palestinianos. Um modelo capitalista regional exige a conciliação
de todos os conflitos com o imperialismo, de modo a criar um clima
favorável aos negócios na região. Por isso encontramos na
Venezuela e na Bolívia as grandes alternativas do momento presente.
AS ENCRUZILHADAS DA VENEZUELA
Desde a derrota ministrada há quatro anos aos golpistas, a Venezuela
converteu-se num terreno fértil para o desenvolvimento de um processo
socialista. A direita sofreu vários reveses eleitorais e ficou
enfraquecida. Ensaiou alguns contragolpes (tentativas secessionistas,
provocações armadas, campanhas internacionais), mas carece de um
plano viável para derrubar Chávez.
Este triunfo popular projectou-se à escala internacional na
sucessão de irreverências que Bush se viu obrigado a aceitar nas
frentes diplomática (ONU, Não Alinhados), petrolífera
(OPEP), geopolítica (Irão, Médio Oriente, fornecimentos de
armamento russo) e económica (acordos com a China). Os Estados Unidos
necessitam dos abastecimentos petrolíferos da Venezuela e não
podem embarcar em outra aventura bélica, enquanto tiverem de defrontar o
desastre do Iraque. A figura de Chávez potenciou-se, e é por isso
que muitos analistas consideram o xadrez eleitoral da região em
função dos aliados que o presidente venezuelano ganha ou perde.
O dilema socialismo versus neo-desenvolvimentismo processa-se neste país
através da disputa entre tendências para a
radicalização e tendências para o congelamento do processo
bolivariano. É o mesmo conflito que defrontaram outros processos
nacionalistas e que teve um desenlace positivo na revolução
cubana e desfechos regressivos em muitos outros casos. Este choque na Venezuela
opõe os partidários do aprofundamento das reformas sociais aos
defensores da ordem capitalista. A população vê esta
confrontação como um conflito entre a liderança
progressista de Chávez e as pressões dos grupos mais
conservadores da burocracia estatal.
Aprofundar o processo bolivariano implica complementar as melhorias sociais
(redução da pobreza, aumento do consumo popular, gastos com as
"missões") com uma estratégia de
utilização produtiva da renda petrolífera. Esta
política terá de visar a expansão da
industrialização, criar emprego produtivo e multiplicar as
cooperativas. Por esta via se alcançará a
erradicação da atrofia de que padece uma economia muito
dependente das importações e muito corroída pelos
subsídios que embolsam as classes dominantes.
A perspectiva socialista exigirá a anulação destas
subvenções, transformar as relações de propriedade
(em especial no campo) e generalizar formas de cogestão operária
já ensaiadas em companhias estatais (Alcasa) e empresas recuperadas
(Invepal).
O programa neo-desenvolvimentista aponta para a direcção oposta.
Estabelece entendimentos com os grupos capitalistas que se aproximam do governo
para desenvolverem negócios lucrativos (grupos Mendoza e Polar) e
promove um novo empresariado, que já emergiu em certos grupos do
chavismo. Se este rumo se consolida, tenderão a agravar-se os
desequilíbrios criados no decurso de uma administração de
conjuntura florescente, sem estratégias de transformação
radical (aumento das importações, retorno da
inflação, ausência de investimentos privados, consumismo
sem contrapartida produtiva)
[9]
.
É nesta perspectiva que se inscrevem projectos tão
questionáveis como o do gasoduto, controversos contratos
petrolíferos (empresas mistas, abertura ao capital estrangeiro) e o
desbaratar de recursos públicos em cancelamentos da dívida
externa que favorecem os grandes bancos.
Na Venezuela os projectos neo-desenvolvimentistas da burguesia chocam com uma
perspectiva socialista que tem de se apoiar na mobilização
popular. Esta reforçou-se nos últimos anos com o aparecimento de
uma nova base militante nos organismos juvenis, femininos, camponeses e
cooperativas. O intenso processo de filiação numa nova central
sindical (UNT) com uma grande incidência de esquerda é um aspecto
central deste progresso
[10]
. Quanto maior for a autonomia e a solidez organizativa que os movimentos
populares alcancem, mais peso deterão os sujeitos que podem protagonizar
um avanço para o socialismo.
AS ALTERNATIVAS NA BOLÍVIA
Com um formato diferente, as mesmas encruzilhadas que se observam na Venezuela
estão presentes na Bolívia. Também aqui o socialismo do
século XXI irrompeu nos debates do movimento popular como uma meta a
atingir
[11]
. Várias insurreições (2000, 2003 y 2005) derrubaram no
Altiplano os governantes neoliberais, com reivindicações radicais
nos planos político (assembleia constituinte), económico
(nacionalização dos hidrocarbonetos) e social (melhorias
imediatas para todos os oprimidos).
O triunfo de Morales representa uma severa derrota para a direita, que procura
reverter este seu retrocesso fomentando conspirações diversas
(sabotagem à Assembleia Constituinte, paralisações
patronais em Oriente, ameaças de secessão em Santa Cruz,
campanhas da Igreja). As elites pressionam também no interior do governo
para neutralizar os projectos reformistas.
Nesse gabinete convivem empresários conservadores, intelectuais da
classe média e dirigentes dos movimentos sociais. O governo do MAS
não conta com uma estrutura política preparada para lidar com a
acção popular de rua ou com as cabalas direitistas, isto num
país caracterizado por conflitos acelerados e violentos. Até
agora Morales implementou políticas contraditórias, ora emitindo
mensagens de moderação ora de radicalização
[12]
.
A antinomia entre neo-desenvolvimento e socialismo é condicionada pela
correlação de forças entre a direita e as massas. Alguns
centro-esquerdistas vêm com desconfiança o carácter
persistente das reivindicações sociais, não vendo que o
futuro do projecto popular depende desta capacidade dos professores, mineiros e
"pobladores" para fazer valer as suas reclamações. Os
oprimidos que esperaram cinco séculos para viver com dignidade
não querem aguardar nem mais um minuto e essa sua
determinação nutre a luta pelo socialismo.
A disputa social em curso depende também do perfil que assuma a
nacionalização dos hidrocarbonetos. Se o Estado se apropriar de
70% da renda petrolífera, o fisco acumulará recursos suficientes
(67.000 milhões de dólares nas duas próximas
décadas) para erradicar a miséria (67% da população
não satisfaz as suas necessidades básicas). Somente
através da aplicação das leis que elevam os impostos e os
direitos estatais, o Estado receberia no imediato o triplo do que foi
arrecadado nos últimos anos. A nacionalização serviu para
reconquistar a renda petrolífera antes embolsada pelas companhias
multinacionais, porém ao preço da revalidação da
presença no país dessas empresas
[13]
.
Até ao momento apenas se concluiu o primeiro round de uma longa batalha
pela definição do montante dos recursos. Mas mais importante
ainda será a atribuição desses fundos. Num contexto
económico favorável e exactamente inverso ao de
endividamento e de hiper inflação que carcomeu o governo de Siles
Suazo nos anos 80 o novo excedente pode servir ao ensaio de um modelo
neo-desenvolvimentista ou para financiar a melhoria de vida da
população.
O trilho capitalista exigiria a canalização da renda em prol da
consolidação do latifúndio da soja, a
privatização das jazidas metalíferas e a ortodoxia
monetarista. Um rumo socialista promoverá a reforma agraria, os aumentos
de salários, a re-nacionalização das
explorações mineiras e um processo de
industrialização sem subsídios ao capital. Como em todo o
resto da região, estas duas opções são
antagónicas.
O IMPACTO SOBRE CUBA
A estabilização de modelos capitalistas na América Latina
ou uma viragem para a esquerda teriam incidências directas sobre o futuro
de Cuba. Até agora a revolução desmentiu todos os
prognósticos fatalistas que auguravam a sua ruína. Enfrentando um
inédito colapso económico e uma sufocante pressão
imperialista, a população cubana manteve o regime. Este
antecedente devia levar a moderarem-se os analistas que tanto especulam sobre a
forma que a restauração assumirá quando Fidel morrer. A
dupla identidade nacional e socialista que suporta a revolução
(orgulho anti-imperialista e defensa da igualdade) é um enigma
incompreensível para os que celebram (ou se resignam) na
regressão capitalista
[14]
.
O apelo venezuelano à construção do socialismo do
século XXI oferece uma alternativa frente a este retrocesso num quadro
muito diferente ao dos anos 90. Durante esse período, Cuba enfrentou
incontáveis conspirações (planos da CIA para assassinar
Fidel), num ambiente de isolamento regional e de fustigação
neoliberal. Hoje, pelo contrário, Bush está isolado, a direita
perdeu vários governos e a diplomacia cubana ganhou influência. A
autoridade de Fidel e a memória do Che estão presentes nos
movimentos sociais da região e a solidariedade bolivariana permitiu
atenuar muitas das dificuldades da Ilha.
O crescimento foi estabilizado e as carências energéticas
diminuíram com as receitas do turismo, das novas
exportações e os convénios com a China. Há
também a possibilidade de começar a utilizar produtivamente as
vantagens do elevado grau de qualificação de que goza a
população cubana.
Mas o país defronta um momento crucial, porque como reconheceu
Fidel num importante discurso em Novembro de 2005 a
revolução pode vir a auto-destruir-se. Perante tal ameaça
existem rumos que facilitarão a renovação do socialismo e
caminhos que conduziriam ao retrocesso capitalista. O contexto latino-americano
poderá contribuir para um ou outro desenlace.
Se na América Latina se afirmam os modelos do neo-desenvolvimento a
pressão capitalista persistirá ainda que afrouxe o bloqueio. O
dinheiro já não procurará penetrar na ilha por meios
militares, mas fá-lo-á através dos grandes
negócios. A revolução teve de coexistir nos últimos
anos com as desigualdades sociais que as remessas e a implantação
de um enclave dolarizado criaram. Os neo-desenvolvimentistas do MERCOSUL
procurarão alargar essa fractura e promoverão todos os que
aspiram compor a nova burguesia da ilha. A resistência social, o
crescimento da esquerda e o despontar do socialismo na América Latina
operarão na direcção oposta.
Cuba não pode nem deve isolar-se. O bunker norte-coreano oferece a pior
opção e é precisamente por isso que foi necessário
recorrer a medidas mercantis e a associações com investidores que
não seriam admitidas noutras circunstâncias. Mas convém-nos
ainda explicitar algo mais a questão das possíveis vias para a
restauração capitalista. Este perigo não reside tanto nos
pequenos mercados, no comércio informal e no trabalho independente,
porém aninha-se nas conexões internacionais das elites
interessadas na direcção de um modelo social-democrata (em
concerto com a Europa) ou de um esquema autoritário (afim do precedente
chinês). O neo-desenvolvimento latino-americano é um potencial
sócio de ambas essas alternativas.
Uma etapa de acumulação empresarial regional também
haveria de influir sobre dois problemas recentemente trazidos a terreiro por
vários líderes da revolução: o consumismo e a
corrupção. Quanto mais sólido se apresentar o arrabalde
capitalista maior será a pressão dissolvente sobre os
princípios da solidariedade colectivista que Cuba promove. Em vez de
facilitar a adopção de um padrão de consumo colectivo e
consensual em função do nível de recursos e das
carências seria estimulado o individualismo devastador
[15]
.
A corrupção é um problema ainda mais grave, pois
convém recordar o que aconteceu na URSS e na Europa Oriental. Ali os
grupos restauradores do capitalismo robusteceram-se no desbarato, no roubo e na
depredação dos recursos do Estado. A desídia perante a
propriedade pública mostra-nos que uma parte da população
olha esses recursos como bens que lhe são alheios, e esta atitude
não se supera só com exortações, sobretudo se
é coexistente com marcas de apatia entre a juventude. O único
antídoto para isto é a participação popular num
sistema político crescentemente democratizado.
Conciliar a defesa da revolução com debates mais abertos,
alinhamentos políticos mais diferenciados, liberdades sindicais e meios
de comunicação modernizados é a grande tarefa pendente
para uma renovação do socialismo em Cuba. E o neo-desenvolvimento
latino-americano é um inimigo manifesto dessa evolução.
DUAS TRADIÇÕES
Todos os partidários do socialismo do século XXI sublinham
acertadamente que a libertação latino-americana não
será uma cópia de esquemas ensaiados noutras latitudes. Destacam
ainda que a batalha por uma sociedade de igualdade converge na região
com tradições anti-imperialistas próprias. Uma linha
histórica de nacionalismo radical que se expressou em
Martí, Zapata ou Sandino partilha a fundação do
projecto emancipador com várias correntes do marxismo.
Este legado conjunto dá forma a um corpo de tradições
muito distante, no terreno patriótico, do nacionalismo conservador e
muito afastado do livre-cambismo social-democrata (que foi inaugurado por Juan
B. Justo) no plano socialista. O nacionalismo anti-imperialista opõe-se
ao chauvinismo militarista e a esquerda radical é a antítese do
social-liberalismo da Terceira Via.
Esta junção de dois pilares para o socialismo revela-se na
América Latina num torrencial de símbolos (resistência aos
ianques), figuras (o Che) e realidades (a revolução cubana) que
gozam de grande influência nas novas gerações. Por esta
razão, o projecto emancipatório tem sido retratado como uma
síntese de diversas trajectórias regionais
[16]
. Esta amálgama também incorpora a reabilitação da
cultura andina e as reivindicações das tradições
indígenas que foram silenciadas durante séculos de
opressão étnica e cultural.
O socialismo do século XXI é uma fórmula universal com
fundamentos regionais. Propicia uma mescla que retoma o enriquecimento e a
diversificação do programa comunista. Um ideal surgido em meados
do século XIX na Europa Ocidental foi assumindo outros significados no
decurso das tentativas de o materializar na Rússia, Ásia ou
Europa Oriental. Essa assimilação regional também
determinou as singularidades intelectuais que o marxismo veio a apresentar no
Oriente e no Ocidente
[17]
.
Reconhecer esta variedade é importante para superar a visão
simplista de muitos dos críticos da esquerda latino-americana, que a
vêem como um conglomerado corroído pelo conflito entre
tendências autóctones positivas e influências europeizantes
negativas. Esta caracterização esquece que todas essas vertentes
são tributárias de mesclas locais e estrangeiras.
As fontes extra-regionais não são um património exclusivo
dos teóricos da esquerda mais influenciados por concepções
forâneas. Também os pensadores que desenvolveram uma teoria do
socialismo nacional (ou regional) como Jorge Abelardo Ramos se
inspiraram em teses concebidas na Europa e aplicadas na Ásia ou aos
Estados Unidos. Estes postularam que a nação (ou a zona)
constitui uma entidade prioritária da vida social, com mais poder
gravitacional que as classes e os antagonismos sociais.
O único aspecto latino-americano de uma tal visão é o
âmbito geográfico reivindicado. Pois que aborda todos os problemas
com os mesmos pressupostos que esgrimem os teóricos nacionalistas de
outros cantos do planeta. O seu universalismo apenas difere do postulado pelos
internacionalistas pelo tipo de síntese que propõe entre
fundamentos nacionais e estrangeiros para a luta popular.
Esta divergência comporta incontáveis matizes e não define,
por si própria, nenhuma separação de águas
significativa no plano político. O que determina, ao invés, uma
separação ferida na esquerda latino-americana é o grau de
consequência que se demonstra na luta pelo socialismo. A maior ou menor
afinidade com o pensamento europeu é um problema secundário em
comparação com a questão axial: a alternativa entre
recriar ou superar a opressão capitalista.
O que distingue a herança de Jorge Abelardo Ramos do legado de
teóricos marxistas como Mella ou Mariategui é, respectivamente, a
defesa e a crítica de uma etapa capitalista antecipatória do
socialismo. Esta polémica é o fulcro essencial do debate
contemporâneo. Aquele primeiro pensador procurou entre as burguesias
locais próceres desenvolvimentistas e os segundos apostaram na
acção socialista das massas. Ambos os caminhos reaparecem no
século XXI, e novamente como duas opções políticas
contrapostas
[18]
.
A tradição de
Mariategui e Mella contrapõe-se em particular à herança de
Haya de la Torre. Os socialistas que introduziram o marxismo no Peru e Cuba
defenderam uma estratégia socialista continuada, enquanto que o fundador
do APRA favorecia a unificação capitalista da região,
considerando-a como um degrau inultrapassável para um qualquer futuro
igualitário
[19]
. O debate em curso do socialismo como um processo anticapitalista ou como uma
etapa posterior do MERCOSUL actualiza essa velha controvérsia.
DUAS ATITUDES
Postular que o socialismo pode ser iniciado num período
contemporâneo leva a defender sem disfarces a identidade socialista. Ao
invés, favorecer uma etapa neo-desenvolvimentista induz ao titubeio na
luta contra o capitalismo. Para transitar por um caminho em comum com os
industriais e os financistas há que adoptar um comportamento moderado,
demonstrar responsabilidade perante os investidores e colocar todas as
pretensões socialistas num esconso segundo plano.
O projecto do socialismo do século XXI coloca também
sérios problemas aos teóricos que se aprazem no estudo dos
desequilíbrios do capitalismo sem se preocuparem em espreitar sequer o
caminho que conduza a uma outra sociedade. O socialismo é um tema
molesto para os que interpretam o mundo sem o procurar mudar, porque coloca
problemas que abalam o seu modo de ver contemplativo do universo circundante.
A ausência de projectos socialistas na esquerda é muito mais
nociva do que qualquer desacerto nos diagnósticos ao capitalismo
contemporâneo. Por isso se torna indispensável retomar o uso do
termo "socialismo", sem reservas nem disfarces. Este conceito
não é um vago sinónimo para "o social".
Refere-se concretamente a um sistema emancipado da exploração e
não a genéricos inconvenientes num qualquer agregado humano.
Não bastam as difusas referências ao
"pós-capitalismo" para esclarecer como se deverá
edificar uma sociedade futura. Há que apresentar programas alternativos.
Alguns analistas afirmam que ao socialismo é impossível
difundir-se depois do colapso da URSS. Consideram que a noção
caiu em desuso e perdeu prestígio. Mas o repentino ressurgimento do
conceito na América Latina deveria induzi-los a reconsiderar o
requiem
já oficiado.
Muitos termos sofreram uma manipulação semelhante à que o
socialismo teve de padecer. A democracia, por exemplo, suportou
distorções equivalentes. Foi estandarte para os piores atropelos
imperialistas durante o último século, e no entanto essa
deformação não levou a que fosse substituída por
nenhuma outra palavra. Ninguém postulou outro termo para definir a
soberania popular, pois que para denotar certos fenómenos há
noções inigualáveis.
A vigência do socialismo deve ser avaliada com uma certa perspectiva
histórica porque que tem estado sujeita a um vaivém semelhante ao
sofrido pela democracia. A invenção contemporânea deste
último ideal deu-se em 1789, mas o princípio da igualdade
política só conquistou autoridade no decurso de um longo
período ulterior. Ao cabo desse tempo foi aceite como princípio
superador das hierarquias medievais, hierarquias que no passado eram
identificadas com a própria existência humana.
Com a invenção do socialismo irá ocorrer algo parecido. O
começo em 1917 permanecerá como um grande precedente da gesta
humana na conquista da igualdade social e pela libertação do
indivíduo das grilhetas do mercado. O início do século XXI
permite começar a dar forma a ambos os objectivos.
28/Novembro/2006/Buenos Aires
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Valdés Gutiérrez Gilberto. "Desafios da sociedade para
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NOTAS
[1]
Katz Claudio. O redesenhar da América Latina, Alca, MERCOSUL y Alba.
Edições Luxemburg, Buenos Aires, 2006.
[2]
Esta perspectiva é desenvolvida por: Dieterich Heinz. Hugo
Chávez e o socialismo do século XXI, Editorial Pelos caminhos da
América, Caracas, 2005 (em especial o capítulo 6).
[3]
Este critério é exposto por: Lebowitz Michael. "O
socialismo não cai do céu". Colecção Ideias
Chave, Caracas, 2006. Expusemos diversos aspectos deste processo em: Katz
Claudio. O porvir do socialismo. Ed. Ferramenta e Imago Mundi, Buenos Aires,
2004.
[4]
Dieterich Heinz. Entrevista, Interpress Service, (BI-Red solidária da
esquerda radical, nº 9268, 21-1-06.)
[5]
Dietrich Heinz. "Quem irá ganhar. Ofensiva oligárquica e
contra-ofensiva popular". Argenpress, 19-10-06.
[6]
É o modo de ver que se apresenta em Dietrich Heinz. "Reclama o
bloco regional de poder popular um debate público com os presidentes da
cimeira sul-americana de nações". Argenpress, 1-11-06.
[7]
Dietrich Heinz. "Triunfa o bloco regional de poder. Falta construir o
bloco do poder popular". Rebelião, 22-7-06.
[8]
Ortega chega à presidência com uma mochila cheia de actos de
corrupção e de despojo da propriedade pública. Rodeou-se
de homens que actuaram na "contra" e na CIA, celebrou pactos de
impunidade com presidentes que escondem narcotraficantes e acordou com a
hierarquia eclesiástica a penalização do aborto. Baltodano
Mónica. "Nicarágua sem esquerda?", Rebelião
1-11-06. Cardenal Ernesto "Os Sandinistas não se devem
confundir". Rebelião, 27-1-06.
[9]
Mieres apresenta um diagnóstico destes desajustes: Mieres Francisco;
"Notas para o simpósio sobre a dívida". Primeiro
Simpósio Internacional sobre dívida pública, auditoria
popular e alternativas de aforro e investimento para os povos da América
Latina". Centro Internacional Miranda, 22/24 de Setembro 2006, Caracas.
[10]
Guerrero retrata essa irrupção. Guerrero Modesto Emilio.
"Constituição, dinâmica e desafios das vanguardas na
revolução bolivariana. Ferramenta nº 33, Outubro de 2006,
Buenos Aires.
[11]
A análise da "aliança entre Estados e movimentos
sociais
como expressão do socialismo do século XXI" foi
um tema da recente Cimeira social de Sucre. Ortiz Pablo. "Cimeira social
para falar do socialismo que aí vem". Página 12, 29-10-06,
Buenos Aires.
[12]
Vários analistas descrevem este curso. Stefanoni Pablo, Do Alto
Hervé. A revolução de Evo Morales, Editorial Capital
Intelectual, Buenos Aires, 2006. Aillon Orellana Lorgio. "Para uma
caracterização do governo de Evo Morales". OSAL nº 19,
Janeiro/Abril 2006. Campione Daniel. "Onde os caminhos se abrem".
RSIR, nº 9276, 23-1-06.
[13]
Todavia falta ainda pôr os acordos em "letra miúda",
definindo a duração dos contratos, os preços finais e as
normas de litígio internacional. Qualquer que seja o resultado dessas
escaramuças, as companhias tenderão a permanecer no país
porque antevêem um horizonte de rentabilidade. Já não
poderão manter a anterior relação entre benefícios
e investimento, que à escala internacional se situava em três para
um e que na Bolívia chegava aos dez para um. Mas continuarão a
lucrar e a exercitar uma capacidade de pressão que recentemente
exibiram, ao imporem a renúncia forçada do ministro Solíz
Rada.
Dois balanços muito diferentes do processo de
nacionalização são apresentados por Montero e os
redactores de Econotícias. Montero Soler Alberto. "Bolívia e
a nacionalização dos hidrocarbonetos: tantas coisas que
aprender". Rebelião, 3-11-06. Redacção
Econotícias: "Borrador e conta nova".
www.econoticiasbolivia.com
, 29-10-06.
[14]
Alguns analistas como Farber combinam o prognóstico fatalista com a
insólita expectativa da edificação de um projecto de
esquerda logo após o desmoronamento da revolução. Outros
autores como Dilla consideram que o projecto socialista já
está enterrado, seja qual for o curso que adoptem os sucessores de
Fidel. Farber Samuel. "Cuba: a provável transição e
as suas políticas". Ferramenta nº 33, Outubro de 2006. Dilla
Alfonso Haroldo. "Hugo Chávez e Cuba: subsidiando adiamentos
fatais". Nova Sociedade, nº 205, Setembro/Outubro 2006, Buenos Aires.
[15]
Dietrich faz aqui importantes e acertadas observações: Dietrich
Heinz. "Cuba: três premissas para salvar a
revolução". Ferramenta nº 33, Outubro de 2006.
[16]
"Um socialismo latino-americano e caribenho que abrace as nossas
raízes históricas e a nossa espiritualidade". Soto
Héctor. "Revolução bolivariana socialista: uma
descoberta? A Plena Voz, nº 15, Agosto, 2005, Caracas.
[17]
O estudo clássico sobre este tema foi realizado por: Anderson, Perry.
Considerações sobre o marxismo ocidental. Século XXI,
México 1979.
[18]
Quando se reivindicam ambas as trajectórias sem esclarecer as
divergências em jogo o projecto socialista perde conteúdo.
É o erro que comete Bossi Fernando Ramón. "Reflexões
sobre o socialismo do século XXI"; www.redbolivariana, 25-7-05.
[19]
Vitale, Kohan y Lowy apresentam uma detalhada análise destas
discussões. Vitale Luis. De Bolívar ao Che, Cucaña
ediciones, Buenos Aires 2002. (Cap. 5, 6, 9 e 10). Kohan Nestor. "A
governabilidade do capitalismo periférico e os desafios da esquerda
revolucionária". La Haine, 26-11-06. Lowy Michael. O marxismo
latino-americano, ERA, México, 1980.
[*]
Economista, Professor da Universidade de Buenos Aires, investigador do
Conicet
, membro do EDI (Economistas de Esquerda).
O original encontra-se em
http://www.forumdesalternatives.org/que_es.php
Tradução de Jorge Almeida.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.