Como as classes populares fizeram história
por Marcus Rediker
[*]
entrevistado por Jérôme Skalski
Em
Les Hors-la-loi de l'Atlantique
(Os fora da lei do Atlântico)
publicado pelas edições du Seuil, o historiador norte americano
oferece-nos uma síntese das suas pesquisas a respeito da história
da navegação à vela, matriz do sistema capitalista, mas
também lutas, recalques e ideais da modernidade.
A sua obra
Os fora da lei do Atlântico
oferece-nos uma síntese de trinta anos de pesquisa sobre a
história da navegação à vela dos séculos
XVII, XVIII e da primeira metade do século XIX. Como se inscreve o seu
trabalho na corrente histórica chamada "a historia
subjacente"
(histoire par en bas)
?
Marcus Rediker: A primeira coisa que gostaria de dizer é que a
expressão "historia subjacente" foi utilizada pela primeira
vez pelo historiador francês Georges Lefebvre, nos anos anteriores
à guerra. A tradição da história subjacente
(historia por baixo) à qual efectivamente pertenço, compreende
historiadores franceses, mas também e principalmente ingleses, como E.
P, Thomson
[1]
e Christopher Hill
[2]
, historiadores marxistas e pioneiros desse tipo de história nos anos
60. Nos Estados Unidos nos anos 70, uma versão ligeiramente diferente
desse tipo de história foi desenvolvida sob o nome de "historia de
baixo para cima
(history from the bottom up)
no sulco dos movimentos contra a guerra do Vietname, movimentos estudantis,
movimentos femininos, novos movimentos operários, mas também
movimentos pelos direitos cívicos e os Panteras Negras, que aspiravam a
uma nova maneira de escrever a historia. Fui formado por esses movimentos.
Comecei os meus estudos com o desejo de contar um outro género de
história, diferente da história habitual. Nos Estados Unidos, a
verdadeira ciência histórica foi suprimida pela guerra-fria. O
historiador norte-americano mais representativo desta corrente foi Howard Zinn,
com a sua
Historia Popular dos Estados Unidos
[3]
que foi vendida em milhões de exemplares. O que é muito
importante neste género de história, é que é
não só a história dos pobres ou mesmo das classes
trabalhadoras em geral, mas também a da sua capacidade de agir
(agency),
ou seja da sua capacidade de afectar o curso da história, não
apenas como instâncias passivas do processo histórico. As suas
lutas afectaram profundamente o curso da história. Para mim esse foi
sempre um ponto importante: mostrar como as classes populares fizeram
história e mudaram o modo como o processo histórico se
desenvolveu.
Um aspecto original da sua aproximação não é
também ter descrito no mar um processo análogo ao que Marx
analisa em
O Capital
sobre a transformação da manufactura como pivô da
história do capitalismo moderno?
Marcus Rediker: Muitas pessoas pensam que a essência do capitalismo
está ligada quase exclusivamente ao trabalho assalariado. O meu trabalho
foi o de sublinhar a centralidade do comércio servil, da escravatura e
do trabalho forçado, no surgimento do capitalismo como sistema. O
sistema servil do Atlântico, ao Brasil, às Caraíbas, ao
norte da América, foi a fonte de uma enorme massa de capital. O meu
ponto de vista foi em primeiro lugar quebrar as cadeias nacionais da
história e mostrar que há fontes transnacionais e
atlânticas dos desenvolvimentos económicos nacionais e em segundo
lugar, insistir na importância do trabalho forçado nos
desenvolvimentos. Outro dos meus argumentos é que o barco à vela,
que se chama tecnicamente em inglês "o navio de alto mar de popa
redonda"
(round headed deep seaship),
foi uma das máquinas mais importantes no início da era moderna
e provavelmente uma das maquinas mais importantes a participar no surgimento do
capitalismo. Os navios à vela e os trabalhadores que os faziam navegar
cristalizaram literalmente os vários ramos desconexos da economia e um
conjunto mundial. Esta maneira de considerar o navio à vela, e o navio
negreiro em especial, como uma máquina dependente de um género
particular do processo capitalista foi efectivamente influenciado pela minha
leitura de Marx no que respeita ao processo de trabalho na manufactura. O navio
à vela foi um factor decisivo na produção da força
de trabalho para a economia mundial.
Mas também me interessei pela maneira como os navios negreiros foram o
vector da produção, num sentido analítico, das categorias
de "raças" que viriam a dominar o capitalismo ocidental. Para
dar um exemplo do funcionamento deste facto falo mais precisamente do
meu livro havia as equipagens de marinheiros de um lado, que eram
ingleses, franceses. holandeses, etc, e que trabalhavam nos navios em qualquer
parte da Europa. Chegavam às costas africanas e tornavam-se
"Brancos" ou melhor dizendo, eram racialisados no decurso da viagem.
Por outro lado, temos um grupo multi-étnico de africanos, fantis,
malinques, ashantis, etc transportados nos navios negreiros pelo
Atlântico e que, quando chegavam à Jamaica, ao Brasil ou à
Virgínia, se tornavam "Negros", representantes da
"raça negra". O movimento através do espaço e o
tempo produziu categorias raciais de análise. É um outro aspecto
essencial engendrado por este processo.
Demonstra também até que ponto a navegação à
vela foi o campo de uma luta de classes frequentemente mal conhecida. Mesmo
pioneira.
Marcus Rediker: Sim, a navegação à vela como meio de
trabalho totalitário foi um laboratório no qual os capitalistas e
o Estado tentaram experiências para ver o que podia funcionar nos outros
sectores da economia. Os marinheiros e as relações entre o
capital e o trabalho, nos navios de guerra em especial, foram o campo de
desenvolvimento de novas formas de relações de poder. Dos dois
lados, houve experimentações e inovações. Os
capitalistas tentaram organizar uma divisão complexa de trabalho para
fazer funcionar essas máquinas e utilizaram formas de disciplina
extremamente violentas que obrigavam os trabalhadores a colaborar, Os
marinheiros, por outro lado, traduziam essa colaboração
forçada em novas formas de resistência. Menciono isso no meu
livro. Por exemplo, em inglês, a palavra greve
(strike)
vem de uma palavra que designa o efeito de abater as velas para as fazer
descer (baixar as velas). A primeira greve teve lugar nas docas de Londres em
1788. Os marinheiros dos arredores baixaram as velas, pela parte de cima, para
as baixar e imobilizar os navios. Nessa ocasião, a classe trabalhadora
descobriu um novo poder, através da colaboração a bordo
dos navios e um aprendizado para a luta.
É espantoso, apresenta igualmente um elo entre essas lutas sociais e
políticas surgidas no meio marítimo e o início da grande
pirataria no início do século XVII? Pirataria Potemkine de certa
maneira, fonte secreta das revoluções americana e francesa, das
Luzes, do abolicionismo, ou seja do socialismo?
Marcus Rediker: As pessoas ficam surpreendidas ao descobrir que havia uma
grande criatividade entre os piratas. A minha aproximação
consistiu essencialmente em partir das condições de vida dos
marinheiros dessa época, colocando uma questão muito simples:
porque se tornaram piratas? A resposta a essa pergunta é muito
interessante, porque ela leva-nos às condições de trabalho
extremamente difíceis nos navios à vela, salários muito
baixos, alimentação pobre, disciplina violenta
tudo isso
levou as pessoas à pirataria, por elas próprias. Quando estudamos
como os piratas organizavam os seus navios, descobrimos que era uma maneira
completamente diferente dos navios comerciais e dos navios de guerra. Primeiro,
eram democratas: elegiam os oficiais e o capitão. Nessa época os
trabalhadores não tinham quaisquer direitos democráticos. Em
parte alguma do mundo! Os piratas tentaram uma experiência
extraordinária de democracia. E funcionou! Por outro lado, a maneira
como dividiam o saque era igualitária. É também um aspecto
diverso da estrutura salarial sobre os navios mercantes ou sobre os navios da
Armada Real. Os piratas eram muito ciosos da igualdade. Claro, utilizavam os
seus navios para atacar a propriedade dos comerciantes e por isso os governos
francês e britânico queriam aniquilá-los. Mas a outra
razão pela qual procuravam exterminá-los, é que eles se
esforçavam por esmagar um exemplo de subversão que demonstrava
pelos factos que se podia organizar a navegação de um modo
diferente da habitual. Os piratas, de certo modo, eram como os trabalhadores
das fábricas, elegiam a sua direcção e mostravam como
podiam organizar as fábricas de um modo simultaneamente
democrático e igualitário. Isso atormentava as autoridades
francesas e britânicas mais ainda do que pelo ataque à propriedade
cometido pelos piratas.
Se as autoridades conseguiram quebrar a pirataria, as suas ideias, levadas de
boca em boca, pelos cais e pelas docas até ao interior das terras,
conheceram uma via subterrânea até à sua
actualização no decorrer dos processos revolucionários do
fim do século. O meu trabalho foi seguir essas ideias através do
tempo e demonstrar como se generalizaram entre as populações.
Tiveram um impacto essencial no movimento das Luzes, mas também entre os
trabalhadores. É o que chamei "as luzes a partir de baixo"
(enlightment from below).
É também, com efeito, nos navios que nasceu a
consciência abolicionista. Por exemplo, um homem como Benjamin Lay, que
foi um dos primeiros opositores à escravatura e que em quot8
lançou, o que foi pioneiro nesse século, um apelo a uma completa
abolição do sistema servil, era marinheiro. Isso é
absolutamente crucial. Foi porque era marinheiro e conhecia as terríveis
condições de trabalho da equipagem nos navios, que desenvolveu um
ideal de solidariedade entre todos os homens, livres, escravos, entre todos os
povos e entre todos os trabalhadores da terra.
No fim da introdução da sua obra
A bordo do navio negreiro
[4]
escreve: "O navio negreiro é um navio fantasma à deriva
sobre as águas da consciência moderna". O que quer sugerir
com essa fórmula?
Marcus Rediker: O que quero dizer é que o navio negreiro
está sempre vivo quanto às consequências do que se passou.
A herança do tráfico de escravos e a herança da
escravatura, especialmente nos Estados Unidos, mas também na
Grã-Bretanha, na França, e noutros países europeus,
está ainda muito presente hoje. Está presente nas
discriminações raciais, na profunda desigualdade estrutural que
se apresenta nas nossas sociedades. As violências extremas feitas
às populações nos bairros populares são um exemplo
da permanência da herança da escravatura. Todas essas coisas
remontam à história da escravatura e ao modo como a categoria de
"raça" ficou institucionalizada na vida moderna. Quando digo
que o navio negreiro é um "navio fantasma" quero dizer que
ele
ainda está connosco. A denegação é muito grande,
mas a presença espectral da escravatura principalmente nos Estados
Unidos, é extremamente importante, ainda é preciso muito para
encerrarmos este assunto. Não somos capazes de acabar com ela porque
não temos a coragem de a encarar de frente. É mais visível
nos Estados Unidos porque o facto da escravatura foi vivido no
território do país. A escravatura, para os europeus, foi vivida
nas suas possessões coloniais, e é algo abstracto. Para os
americanos foi um elemento concreto da vida de todos os dias, Há grandes
diferenças entre a situação nos Estados Unidos e na
Europa, mas principalmente do trabalho dos historiadores sobre os dois lados do
Atlântico. A Europa não se pode considerar de fora deste problema.
(1) Edward Palmer Thompson,
La Formation de la classe ouvrière anglaise
(A formação da classe operária inglesa)
, Le Seuil, Colecção "Points", 2012.
(2) Christopher Hill,
Change and Continuity in 17th-Century England
(Mudança e continuidade na Inglaterra do século XVII)
, Harvard University Press, 1975.
(3) Howard Zinn,
Une histoire populaire des États-Unis
(Uma historia popular dos Estados Unidos)
, Agone, 2002.
(4) Marcus Rediker,
À bord du négrier. Une histoire atlantique de la traite
(A bordo do navio negreiro. Uma história atlântica do
tráfico)
, Seuil, 2013.
[*]
Historiador, estado-unidense,
www.marcusrediker.com
O original encontra-se em
www.legrandsoir.info/...
. Tradução de MA.
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
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