Uma ofensiva global e multiforme


por Manuel Gusmão [*]

Gostava de começar por vos ler algumas frases:

A grande indústria estabeleceu o mercado mundial que o descobrimento da América preparara. O mercado mundial deu ao comércio, à navegação, às comunicações por terra, um desenvolvimento imensurável. Este, por sua vez, reagiu sobre a extensão da indústria, e na mesma medida em que a indústria, o comércio, a navegação, os caminhos de ferro se estenderam, desenvolveu-se a burguesia, multiplicou os seus capitais, empurrou todas as classes transmitidas pela Idade Média para segundo plano.

[...]

A burguesia despiu da sua aparência sagrada todas as actividades até aqui veneráveis e consideradas com pia reverência. Transformou o médico, o jurista, o padre, o poeta, o homem de ciência em trabalhadores assalariados pagos por ela.

[...]

A burguesia não pode existir sem revolucionar permanentemente os instrumentos de produção, portanto as relações de produção, portanto as relações sociais todas.

[...]

A burguesia pela sua exploração do mercado mundial, configurou de um modo cosmopolita a produção e o consumo de todos os países.

[...]

E tal como na produção material, assim também na produção espiritual. Os artigos espirituais das nações singulares tornam-se bem comum. A unilateralidade e estreiteza nacionais tornam-se cada vez mais impossíveis, e das muitas literaturas nacionais e locais forma-se uma literatura mundial.

Aquilo a que estas frases convidam ou exigem não é que as tomemos como uma descrição profética da situação que hoje vivemos. Estes fragmentos foram escritos há 155 anos, no Manifesto do Partido Comunista, de Marx e Engels, e apresentam marcas da sua historicidade concreta. Depois de terem sido escritos, para além de enormes transformações do mundo, os seus autores evoluiram no seu pensamento e, recriando esse pensamento, outros foram tentando aquilo que neste mesmo texto é uma série de exigências colocadas aos comunistas:

  • a inteligibilidade das condições, do curso e dos resultados gerais do movimento proletário (50).
  • a de nos diversos estádios de desenvolvimento da luta de classes, "representa[re]m o interesse do movimento total" (49) e de "no movimento presente representa[re]m simultaneamente o futuro do movimento" (71)

Aquilo, então, que estas frases nos ajudam e incitam a compreender é, por um lado, que as sucessivas vagas de universalização do capitalismo são um fenómeno da longa duração e vêm da sua formação há 5 séculos e, por outro lado, que actualmente vivemos uma fase nova do capitalismo na sua forma imperialista, cujas características têm que ser investigadas ao mesmo tempo que lutamos pela sua superação.

Não vou obviamente tentar proceder à caracterização da situação contemporânea, tarefa impossível para qualquer um, e mesmo para um conclave de sábios. Mas apenas anotar algumas idéias sujeitas ao processo de averiguação e debate:

1.     A 1ª é a ideia que temos de uma contradição existente entre, por um lado, as imensas forças sociais e humanas libertadas e acumuladas pelo trabalho humano, pela revolução científico-técnica e pelas lutas sociais, e por outro lado, a incapacidade em resolver problemas antigos e mais recentes, problemas estruturais e globais como o da fome, da saúde pública, da ignorância, da extrema polarização da riqueza e da pobreza, da exclusão social, das catástrofes ecológicas e das ameaças à sobrevivência da espécie.

A "responsabilidade" por esta contradição cabe hoje, de forma porventura mais crua, e não apenas em termos ético-políticos, mas em termos da compreensão do mundo contemporâneo, ao sistema de produção capitalista hoje globalizado a uma escala inédita.

Esta parece-me ser, aliás, a expressão manifesta de uma persistente contradição entre as potencialidades do trabalho humano e os interesses do Capital.

2.     A 2ª ideia tem a ver com a conexão entre imperialismo e guerra.

O imperialismo é tendencialmente policêntrico. Mesmo hoje em que há um asfixiante domínio unipolar, se é certamente um engano não ver o caracter imperialista hegemónico dos EUA, poderá ser um outro engano confundir imperialismo e EUA.

É seguramente muito importante não confundir, por exemplo, o movimento anti-imperialista dos povos, mesmo se profundamente heterogéneo, com as diferenças e rivalidades inter-imperialistas que se verificaram entre os Estados europeus, aquando da recente invasão do Iraque. É um facto que o imperialismo norte-americano significa claramente a guerra e que o seu terrorismo de Estado é um dos factores do terrorismo e dos fundamentalismos. E dessa "cumplicidade" há motivos para recear a criminalização como "terrorismo" de todo o protesto social e de todos os caminhos alternativos. Do próprio interior dos EUA há análises que acentuam que tratando-se de uma potência político-militar sem rival a sua hegemonia económica entrou hoje em declínio, e que o uso da sua força militar para inverter esse processo é, no imediato e a prazo, algo de muito perigoso. Há igualmente vozes que nos previnem para a ocorrência de traços neo-fascistas no poder de Estado norte-americano. Tudo isso deve ser ponderado, mas devemos também manter em memória que, no passado, a exasperação das contradições inter-imperialistas se resolveu em guerras devastadoras e que não é certo que essa situação se tenha tornado revoluta. Chamo aliás a atenção para um ensaio do Rui Namorado Rosa publicado no nº 1 de 2003 da revista Economia global e gestão.

A idéia basicamente é de que não temos que nos forçar a escolher entre um imperialismo e outro, embora devamos explorar as contradições onde e quando existam. Temos, sim, que procurar contribuir para a confluência e a força dos movimentos anti-imperialistas e para que os recuos a que venham a obrigar o imperialismo norte-americano sejam efectivamente vitórias democráticas e revolucionárias dos povos e não apenas um triunfo numa luta entre rivais.

3.     A 3ª ideia tem a ver com o que designarei por uma múltipla redução do conceito e da prática da democracia nas nossas sociedades, que devemos, julgo eu, descortinar sob a inflacção das suas invocações contemporâneas. Trata-se aparentemente de um problema de linguagem e de comunicação, mas enquanto tal, enquanto problema do discurso é, de facto, um problema político-ideológico, em que se exprimem formas da dominação social e se visam transformações reaccionárias do aparelho político do poder de Estado.

Quando digo que a redução da democracia é múltipla, refiro-me:

1º.     No discurso dominante, a democracia aparece como um corolário quase automático de uma organização económica que esse discurso designa como "economia de mercado", que é o nome púdico pelo qual o capitalismo se auto-refere. Este "pudor" do capitalismo em nomear-se como tal é simultaneamente uma fraqueza e uma força: enquanto fraqueza exprime um receio de que a própria palavra suscite a memória do seu outro na luta de classes; enquanto força exprime a tentativa, a que não se pode negar sucesso, de naturalizar o capitalismo. Naturalizar significa tomar o capitalismo como o modo natural ou normal de organizar a produção e a vida social. Daqui é fácil passar para transformar o natural em racional e para insinuar que o capitalismo corresponde à natureza humana e ao máximo de razão possível. Ora neste pensamento que nos transporta subitamente ao "fim da história", o que triunfa é uma versão abreviada de uma razão instrumental, que poupa excessivamente nas perguntas e sobretudo nas perguntas sobre os fins.

2º.     A segunda redução é, de facto, uma redução em cadeia. Redução da democracia política, económica, social e cultural à democracia política; depois redução da democracia política à sua dimensão representativa; e depois redução da representação e da sua autenticidade, pela engenharia eleitoral; pela imposição de uma "bipolarização" onde a "alternância" não implique a alternativa política, nem politica alternativa; e pela pressão sobre a formação das escolhas eleitorais.

Esta cadeia de reduções pode ser descrita de outra forma: ela exprime a actual ofensiva contra direitos económicos, sociais e culturais, direitos ditos de segunda e terceira geração que, ao longo do séc. XX, encontraram consagração internacional, e constituem ou poderiam constituir uma plataforma civilizacional generalizável. Estes direitos são simultaneamente individuais e colectivos, exigem a intervenção do Estado e discriminações positivas para a sua protecção e promoção. Para nós estes direitos e os direitos indiduais e políticos são conexos. A negação prática e, hoje de novo teorizada, dessa unidade, a recusa em admitir que há direitos e garantias sociais, que há direitos dos trabalhadores que lhes advêm da sua própria condição de trabalhadores, só pode conduzir na situação presente a uma mutilação dos direitos sociais em geral, mas também dos direitos ditos individuais, civis ou políticos.

São estes direitos, é essa plataforma que, nos próprios centros capitalistas e nas suas periferias mais próximas, estão efectivamente sob um ataque prolongado e global, que se faz acompanhar pela privatização de bens comuns da Humanidade, incluindo a água, a vida vegetal, animal e humana, e pela mercadorização de todas as esferas da vida social e da actividade humana. Em Portugal, esta ofensiva tem hoje um calendário e mostra claramente o seu objectivo não declarado, o de uma reestruturação do poder de Estado que implica, ou nos coloca perante um risco de desfiguração da democracia política e de degenerescência da fidedignidade da representação.

Assim, é fundamental reparar que a sua 1ª grande peça da ofensiva foi e é a imposição do pacote laboral, passa depois pelas leis dos partidos e do seu financiamento, e seguirá para a alteração das leis eleitorais. O novo Código do Trabalho é de facto um código dos interesses do grande capital e é justamente por isso que se pode compreender e recear que a chamada "reforma do sistema político" venha a corresponder a uma reorganização que permita bloquear a organização do protesto e o desenvolvimento da luta social, e dificultar ao máximo a representação política dos trabalhadores.

Por sua vez as mais gravosas das alterações à lei dos partidos e do seu financiamento constituem:

uma ingerência estatal na vida dos partidos, tanto mais hipócrita quanto é apresentada por aqueles que não param de exigir menos Estado;

uma ingerência que viola a própria matriz liberal dos direitos civis, ou seja a concepção que correspondeu historicamente à fase revolucionária da burguesia;

um ataque à democracia política e uma limitação injustificável do direito dos cidadãos se associarem em partidos políticos, direito este que para ser efectivo tem de implicar a sua soberania de decisão sobre as formas de organização e funcionamento do partido a que livremente aderiram.

O carácter inaceitável dessas alterações esclarece-se aliás se repararmos como procuram transformar os partidos em aparelhos ou extensões do Estado e, violando o princípio da generalidade da lei, visam nitida e reconhecidamente, o PCP. O escândalo torna-se grotesco e caricato, quando para além de elevar pesadamente a subvenção pública dos partidos, procura lesar um partido cujo auto-financiamento corresponde a um esforço militante, a uma forma historicamente construída e sustentada de ligação com as suas raízes sociais, o único partido que apresenta as suas contas cumprindo os princípios constitucionais e legais, o único partido que sendo governo em autarquias não é regularmente abalado por delitos financeiros e formas ilegítimas de financiamento.

4°.     A 4ª e última idéia, surge no cruzamento das anteriores e será uma tentativa de representar uma fundamental diferença comunista, no quadro do reconhecimento da pluralidade da esquerda e de um "esforço, não para contrapôr e dividir, mas para intensificar a acção comum e fazer confluir numa mesma torrente movimentos e lutas muito diversificados" (14). É para nós vital compreender e ajudar a compreender que o necessário e esclarecido reconhecimento dessa diversidade, não implica dissolver as nossas diferenças, como as diferenças de outros.

Seguindo, hoje, as injunções do Manifesto de há 155 anos, essa diferença implica colocar a contradição entre o capital e o trabalho como fundamental, não só para a determinação do quadro contraditório da situação contemporânea, mas como um factor estruturante e integrador das diversas razões de luta.

Não se pede a ninguém que abdique da sua independência de juízo no diagnóstico do estado das coisas e nas propostas para o alterar; mas não se exija de nós o que não pedimos a ninguém.

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[*] Professor da Faculdade de Letras de Lisboa e poeta


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06/Jun/03