"Exterminem todas as bestas"
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Até meados do século XIX, as armas pequenas no terceiro mundo
estavam à altura das que a Europa possuía. A arma típica
era o mosquete de pederneira, carregado pela boca e com cano de alma lisa, que
era também manufacturado pelos ferreiros dos povoados africanos.
O mosquete era uma arma assustadora para quem a ouvia pela primeira vez. Mas o
seu alcance não chegava a atingir os cem metros. Demorava pelo menos um
minuto a carregar a arma entre cada disparo. Até mesmo em tempo seco,
três disparos em cada dez falhavam e com tempo húmido os mosquetes
não funcionavam. Um arqueiro hábil ainda disparava mais
rápida e certeiramente e a maior distância. A sua inferioridade
manifestava-se apenas na capacidade de trespassar as armaduras.
Por conseguinte, as guerras coloniais da primeira metade do século xix
eram longas e dispendiosas. Embora os franceses tivessem um exército de
cem mil homens na Argélia, avançavam muito lentamente, já
que as armas da infantaria de ambos os lados eram comparáveis.
No entanto, com a descoberta da espoleta o mosquete passou a falhar somente
cinco tiros em cada mil e em seguida a precisão melhorou com o
aparecimento de canos de alma estriada.
Em 1853, os britânicos começaram a substituir os seus velhos
mosquetes por espingardas
Enfield,
eficazes num raio de 500 metros e de disparo mais rápido, porque a
bala estava envolvida num cartucho de papel. Os franceses introduziram uma
espingarda semelhante. Ambas foram usadas pela primeira vez nas colónias.
Mas estas armas eram ainda lentas e de difícil manuseio. Emitiam
baforadas de fumo que revelavam a localização do atirador, e os
cartuchos de papel absorviam a humidade. Além disso, os soldados tinham
de pôr-se de pé para recarregar a arma.
Na Prússia substituíram-se os carregadores de boca pelas
espingardas de retrocarga da
Dreyse.
Estas foram postas à prova pela primeira vez em 1866 na guerra travada
entre a Prússia e a Áustria pela hegemonia na Alemanha. Durante a
batalha de Sadowa, deitados por terra, os prussianos disparavam sete vezes as
suas espingardas
Dreyse
no tempo que levava aos austríacos, de pé, a carregar e disparar
um tiro. O resultado foi o previsível.
Iniciou-se então uma corrida à substituição de
mosquetes por armas retrocarregadas entre os Estados europeus. Os
britânicos passaram do cartucho de papel para o cartucho de latão,
que protegia a pólvora durante o transporte, evitava que se soltasse
fumo quando a arma era disparada e projectava a bala a uma distância
três vezes maior do que a atingida pela espingarda
Dreyse.
Em 1869, os britânicos abandonaram a
Enfield
e passaram para a
Martini-Henry,
a primeira arma realmente boa da nova geração: rápida,
precisa, insensível à humidade e aos solavancos. Seguiram-se os
franceses com a espingarda
Gras
e os prussianos com a
Mauser.
Por consequência, os europeus eram superiores a qualquer inimigo
concebível dos outros continentes. Os deuses das armas conquistaram mais
um terço do mundo.
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As novas armas tornavam possível até mesmo a um explorador
europeu sozinho em África praticar actos de brutalidade quase ilimitada
e escapar sem punição. O fundador de colónia alemã
da África Oriental, Carl Peters, descreve em
Nova Luz Sobre a África Negra
(1891) como forçou o povo vagogo a submeter-se.
O filho do chefe veio ao acampamento de Peters e colocou-se "sem qualquer
embaraço" à entrada da sua tenda. "Quando lhe ordenei
que se retirasse, ele reagiu com um sorriso aberto e, sem qualquer
perturbação, deixou-se ficar onde estava."
Peters ordena então que ele seja chicoteado com o chicote de pele de
hipopótamo. Ao ouvirem os seus gritos, os guerreiros vagogos acorrem
para tentarem libertá-lo. Peters dispara "sobre o amontoado" e
mata um deles.
Meia hora mais tarde, o Sultão envia um mensageiro com um pedido de paz.
A resposta de Peters: "O Sultão terá paz, mas paz eterna. Eu
demonstrarei aos vagogos quem são os alemães! Saquearemos as
aldeias, incendiaremos as casas e arrasaremos tudo o que não arder."
As casas revelaram-se difíceis de queimar e tiveram de ser
destruídas à machadada. Entretanto, os vagogos juntam-se para
tentarem defender as suas casas. Peters diz aos seus homens:
"Mostrar-vos-ei que tipo de populaça temos aqui perante nós.
Ficai aqui e eu sozinho espantarei os vagogos."
Depois de pronunciar estas palavras, encaminhei-me na direcção
deles gritando hurras e centenas deles fugiram como um rebanho de ovelhas.
De modo nenhum menciono isto para indicar que as nossas circunstâncias
eram de alguma forma heróicas, mas somente para demonstrar que tipo de
pessoas são estes africanos em geral e a ideia exagerada que se faz na
Europa das suas capacidades de combate e dos meios requeridos para a sua
supressão.
Por volta das três horas, avancei para sul em direcção
às outras aldeias. O mesmo espectáculo por todo o lado!
Após uma breve resistência, os vagogos fugiram, foram
lançadas tochas para dentro das casas e os machados fizeram o
serviço de que o fogo não era capaz. Assim, às quatro e
meia, doze aldeias tinham sido dizimadas... A minha arma estava tão
quente de tantos disparos que mal conseguia segurá-la nas mãos.
Antes de deixar as aldeias, Peters faz saber aos vagogos que agora já o
conhecem um pouco melhor. Tenciona permanecer ali enquanto um deles estiver
vivo, qualquer aldeia ainda de pé ou um só boi por levar.
O Sultão pede então que lhe diga quais são as suas
condições de paz.
"Diga ao Sultão que não desejo fazer um acordo de paz com
ele. Os vagogos são mentirosos e devem ser eliminados da face da terra.
Mas se o Sultão deseja ser escravo dos alemães, então ele
e o seu povo talvez sejam autorizados a viver."
Ao amanhecer, o Sultão envia trinta e seis bois e outras oferendas.
"Deixei-me então persuadir a conceder-lhe um tratado pelo qual ele
fosse colocado sob supremacia alemã."
Auxiliadas por estas novas armas, as conquistas coloniais tornaram-se uma
pechincha sem precedentes. Em muitos casos, as despesas limitavam-se
praticamente aos cartuchos necessários para a carnificina.
Carl Peters foi nomeado comissário alemão das zonas que tinha
conquistado. Na Primavera de 1897, foi levado a tribunal em Berlim. O seu
julgamento provocou um escândalo e atraiu grande atenção,
até mesmo na imprensa britânica. Foi condenado pelo
assassínio de uma amante negra. O que estava de facto a ser condenado
não era o assassínio, mas a relação sexual. Os
inúmeros crimes que Peters tinha cometido durante a conquista da
colónia alemã da África Oriental eram considerados
bastante naturais e não foram punidos.
[1]
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Rapidamente se seguiu uma nova geração de armas: espingardas com
mecanismo de repetição. Em 1885, o francês Paul Vieille
descobriu a nitroglicerina, que explodia sem fumo nem cinza, o que significava
que os soldados poderiam permanecer invisíveis ao dispararem. Outras
vantagens eram o seu maior efeito explosivo e relativa insensibilidade à
humidade. O diâmetro menor do cano do mosquete, de dezanove
milímetros, podia ser reduzido para oito milímetros, o que
aumentava substancialmente a precisão da arma.
Com a nitroglicerina sem fumo, apareceu também a espingarda
automática. Hiram S. Maxim manufacturou uma arma automática de
maior leveza, que disparava onze balas por segundo. Os britânicos
começaram a equipar as suas tropas coloniais com armas
automáticas desde muito cedo. Foram utilizadas contra os ashantis em
1874 e no Egipto em 1884.
Ao mesmo tempo, com o método Bessemer e outros novos processos, o
aço tornara-se tão barato que podia ser utilizado na manufactura
de armas em grande escala. Em África e na Ásia, por outro lado,
os ferreiros locais já não eram capazes de fazer cópias
das novas armas, visto que não tinham o material necessário, o
aço manufacturado industrialmente.
No final da década de 90 do século xix, a revolução
da espingarda tinha-se completado. Todos os soldados de infantaria da Europa
podiam agora disparar deitados por terra sem serem avistados, em todas as
condições atmosféricas, quinze disparos em quinze segundos
sobre alvos até a uma distância de mil metros.
Os novos cartuchos eram especialmente apropriados para o clima tropical.
Porém, nos "selvagens" a bala nem sempre tinha o efeito
desejado, já que eles continuavam frequentemente a atacar mesmo depois
de terem sido atingidos quatro ou cinco vezes. A solução para
este problema foi a bala dum-dum, cujo nome deriva da localização
da fábrica em Dum Dum, nos arredores de Calcutá, e que foi
patenteada em 1897. O centro de chumbo da bala dum-dum faz explodir o
invólucro, causando feridas grandes e dolorosas que não saram com
facilidade.
A utilização de balas dum-dum entre Estados
"civilizados" era proibida. Estavam reservadas para a caça de
animais de grande porte e para as guerras coloniais.
Em Omdurman, em 1898, todo o novo arsenal europeu foi posto à prova
canhoneiras, armas automáticas, espingardas de
repetição e balas dum-dum contra um inimigo numericamente
superior e muito determinado.
Um dos jornalistas que mais jovialmente descreveram a guerra, Winston
Churchill, mais tarde laureado com o Prémio Nobel da Literatura, era o
correspondente de guerra do
The Morning Post.
Descreveu a batalha em
A Minha Juventude
(1930), o primeiro volume da sua autobiografia.
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"Não voltará a ver-se nada que se assemelhe à batalha
de Omdurman", escreve Churchill. "Foi o último elo na longa
cadeia daqueles espectaculares conflitos cujo esplendor vivo e majestoso tanto
contribuiu para dar à guerra um carácter sedutor."
Graças aos navios a vapor e a uma linha de caminhos-de-ferro
recentemente lançada, até mesmo no deserto os europeus estavam
bem abastecidos com provisões de todos os tipos. Churchill observou
muitas garrafas de aparência convidativa e grandes pratos com carne de
vaca de conserva e pickles variados. Esta visão grata, aparecendo como
que por encanto no ermo na iminência da batalha, encheu o meu
coração com uma gratidão que excedia em muito o que
usualmente se sente quando nos sentamos à mesa e damos graças.
Ataquei a carne de conserva e a bebida fresca com grande
concentração. Toda a gente estava muito animada e bem disposta.
Era como um almoço nas corridas antes do Derby.
"Vai realmente dar-se uma batalha?", perguntei eu.
"Dentro de uma ou duas horas", respondeu o general.
Churchill considerava aquela ocasião um "bom momento para estar
vivo" e atacou a refeição com denodo. "É
evidente que venceríamos. É evidente que os
dizimaríamos."
Mas não houve qualquer recontro nesse dia. Todos eles se concentraram
nos preparativos para o jantar. Uma canhoneira aproximou-se e os oficiais,
"envergando as suas fardas brancas imaculadas", atiraram na
direcção da praia uma garrafa grande de champanhe. Churchill
entrou na água até aos joelhos e agarrou a preciosa oferta,
levando-a depois triunfalmente para a messe.
Este tipo de guerra estava cheio de emoções fascinantes.
Não era como a Grande Guerra. Ninguém contava morrer... Para a
maior parte dos que participaram nas pequenas guerras da Grã-Bretanha
nessa época longínqua e amena, era apenas um elemento desportivo
num jogo esplêndido.
__________
[1]
Martin Reuss, "The Disgrace and Fall of Carl Peters",
Central European History,
vol. 14 (1981), pp. 110 e seguintes. Consultar também
The Times
(26-27 de Abril de 1897). Para outros exemplos alemães, consultar
Lionel Decle,
Three Years in Savage Africa
(Londres, 1900).
[*]
O autor nasceu em 1932 em Estocolmo, onde reside. Viajou
largamente pela Ásia, América Latina e África. É
autor de três dezenas de livros, vários dos quais traduzidos em
muitas línguas. É doutorado em História da Literatura
pela Universidade de Estocolmo e tem um doutoramento honoris causa pela
Universidade de Uppsala.
Alguns dos 169 capítulos de
"Exterminem Todas as Bestas"
, de Sven Lindqvist, Editorial Caminho, Lisboa, 2005, 224 pgs, ISBN
972-21-1750-5.
Estes excertos encontram-se em
http://resistir.info/
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