A "explosão da cidade" e a trajectória do capitalismo
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"A produção capitalista procura constantemente superar
essas barreiras que lhe são imanentes, mas só as supera por meios
que lhe antepõem novamente essas barreiras e em escala mais poderosa. A
verdadeira barreira da produção capitalista é o
próprio capital (...)".
Karl Marx, Livro III de "O Capital"
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Há já alguns anos que se constata o facto histórico
certamente assinalável de que o mundo é hoje um lugar
predominantemente urbano, ou seja, que mais de metade da
população mundial vive em cidades. Mas essa
constatação recorrente parece vir sempre acompanhada por dois
sentimentos contraditórios: por um lado, uma espécie de
celebração do que parece considerar-se ser em si mesmo uma
conquista civilizacional; mas, por outro lado, uma profunda
sensação de assombro, porque na verdade não sabemos
exactamente muito bem como chegámos aqui, porque não se
prevê que a tendência geral refreie e porque os problemas
usualmente associados à urbanização parecem não
parar de aumentar.
É extremamente difícil estimar com exactidão para as
épocas pré-modernas a quota-parte urbana da
população mundial. O que sabemos é que, após oito
mil anos de urbanização, a quota-parte urbana da
população mundial no ano de 1800 era de apenas 2% e que desde
aí progrediu rapidamente, chegando aos 30% em 1950, aos 47% em 2000 e,
de acordo com as Nações Unidas, ultrapassou os 50% em 2008. O que
aqui desde logo parece relativamente claro é que a força do
crescimento urbano moderno não possui equivalente nas sociedades
pré-modernas. Mas também não é difícil
verificar que nas épocas pré-modernas a urbanização
de uma cidade era bastante independente da urbanização (ou do
declínio) de outra, enquanto que a sociedade moderna constituiu um
sistema urbano verdadeiramente mundial, onde a urbanização de
certas regiões não é autónoma do que acontece
noutros pontos do mundo. Este sistema urbano mundial é na verdade pouco
mais do que a expressão territorial do sistema mundial de trabalho
abstracto que é o fundamento do capitalismo, algo que nenhuma estimativa
estatística nos poderá revelar por si mesma. Por isso, a
problemática da urbanização moderna também
não é apenas a de uma questão quantitativa ou de
mudança de ritmo do crescimento das cidades; é antes a da
própria relação entre cidades e capitalismo.
Claro que o problema pode ser ultrapassado se simplesmente declararmos, como
faz Fernand Braudel, que "no Ocidente, capitalismo e cidades, no fundo,
foi a mesma coisa" (Braudel 1992: 453) ou que se falarmos em
"dinheiro, o mesmo é dizer as cidades" (Braudel 1992: 450).
Com isto, não só se afirma uma identidade entre cidade,
capitalismo e dinheiro, como se afirma uma identidade trans-histórica de
cada um dos fenómenos consigo mesmo. A cidade pré-moderna e
moderna são a mesma coisa; o capitalismo nasceu no neolítico e o
dinheiro sempre foi capital. Ou seja, está-se no bom caminho para
não se perceber nada nem de cidade, nem de capitalismo, nem de dinheiro.
Pouca coisa é tão conceptualmente desastrosa e ideologicamente
consequente quanto a retroprojecção de categorias e
fenómenos especificamente modernos (como o trabalho, o dinheiro, o
capital, o mercado, etc.) em todas as sociedades do passado ou a sua
hipostasiação como dados da "natureza humana".
Ora, o facto de a cidade não ser um fenómeno especificamente
moderno não significa que possamos assumir para ela uma mesma identidade
trans-histórica em desenvolvimento desde o neolítico. Este
entendimento ideológico positivista, que se limita a constatar a
continuidade histórico-empírica do artefacto urbano e sua
inércia material, nunca consegue ver nas cidades nada para além
de um amontoado de pedras, tijolos e cimento. Contra este banal positivismo,
não é por isso inteiramente inútil a
distinção clássica da cidade como associação
humana civitas e a cidade como lugar e artefacto físico
urbs. Impõe-se no entanto uma correcção fundamental
à interpretação moderna tendencialmente politicista do
conceito de civitas e que nele não vê outra coisa senão
sucessivas formas políticas de associação humana,
conscientemente escolhidas e sem quaisquer pressupostos. É que desse
modo escamoteia-se o carácter inconsciente das próprias formas de
integração e consciência social até hoje existentes
e as correspondentes "matrizes apriorísticas" (Robert Kurz)
autonomizadas de percepção e acção humana; aquilo
que Marx tentou captar com o seu conceito de "fetichismo". Esse
momento fetichista estava aliás flagrantemente presente no significado
original do conceito romano de civitas, que exaltava justamente o
carácter transcendental e apriorístico de toda a estrutura social
romana, enquanto vínculo social metafísico acima dos
cidadãos, e que entre outras coisas se traduzia em
celebrações religiosas específicas no acto sagrado de
fundação das cidades, a maior parte das quais ainda hoje
existentes. O que importa talvez assumir da distinção
civitas/urbs é que se trata, no fundo, da diferença entre o
processo (social) e o resultado (material) intrínsecos à
urbanização, mas em que o primeiro está longe de ser
verdadeiramente consciente para os próprios agentes e o segundo
sobrevive historicamente às formas de integração social
que lhe deram origem.
Mas de que modo é que isto nos pode ajudar a compreender a
relação entre as cidades e o desenvolvimento histórico do
capitalismo? Parece-me que devemos fazê-lo através de um
aprofundamento de quatro problemas: em primeiro lugar, realizar uma
diferenciação muito clara entre as cidades
pré-capitalistas e capitalistas, tanto nas suas diferentes formas
sociais fetichistas quanto nas respectivas formas urbanas; em segundo lugar, o
processo histórico de constituição do capital, ou seja, o
problema da "transição do feudalismo para o
capitalismo" e o papel das cidades nesse processo; em terceiro lugar, a
lógica e o funcionamento interno do capitalismo "que se move sobre
sua própria base" (Marx 2011: 195), ou seja, a
territorialização progressiva do capitalismo como "sociedade
do trabalho" e "modo de produção baseado no valor"
(Marx), sobretudo desde a segunda metade do século XIX, que se traduziu
na "explosão urbana" do último século; e em
quarto lugar, a expressão territorial da crise global no sistema urbano
mundial. Claro que não posso aprofundar aqui todas estas
questões; mas posso procurar balizar um pouco melhor as
problemáticas e alongar-me um pouco mais naquelas onde a
retroprojecção das categorias modernas é mais comum.
Um dos anacronismos recorrentes é o de procurar explicar a origem das
cidades a partir do "mercado". Desse modo claramente
ideológico, Jericó (8000 a.C.) e Çatal Huyuk (7500 a.C.),
ou pelo menos Ur (3800 a.C.) e Uruk (4000 a.C.), já se destacavam como
importantes mercados ou até mesmo como importantes locais de
"produção simples de mercadorias". Com mais ou menos
ênfase, esta ideia aparece em autores tão diferentes como Braudel
ou Jane Jacobs. Claro que desse modo também já se fala aí
da existência de trabalho, dinheiro, valor e capital. E por isso o
marxismo tradicional também participou nesse ontologização
das categorias modernas, procurando demonstrar empiricamente as teses de Engels
sobre o "papel do trabalho na transformação do macaco em
homem" e de que a "lei do valor" tem "validade
económica geral" pelo menos desde há "cinco ou sete
milénios" (Engels 1986: 328). Por tudo isso, foram sempre
desvalorizadas e minoritárias as tentativas modernas de explicar a
génese das primeiras cidades sem recorrer às categorias modernas
de mercado, mercadoria, trabalho, etc., como aquelas de Rykwert (1988) ou
Mumford (1998), que realçavam antes o carácter originalmente
religioso das primeiras ocupações humanas, inclusivamente ao
nível da própria forma urbana. No entanto, mesmo em textos
fundadores do entendimento moderno da origem das cidades não deixam de
aparecer pistas para compreensão do carácter fetichista
específico das sociedades pré-modernas e sua matriz religiosa: o
arqueólogo marxista Gordon Childe, por exemplo, no seu ensaio
clássico "A Revolução Urbana", constata que um
dos dez critérios distintivos das primeiras cidades é que
"cada produtor primário pagasse, a partir do pequeno excedente que
ele conseguisse retirar do solo com o seu ainda muito limitado equipamento
técnico, uma dízima ou imposto a uma deidade imaginária ou
rei divino que assim concentrava o excedente. Sem esta
concentração, devida à baixa produtividade da economia
rural, nenhum capital efectivo teria estado disponível" (Childe
1950: 11-2). Apesar dos anacronismos evidentes de se falar em
"economia", "dízima", "imposto" e
"capital" já para o período neolítico, Childe
não deixa de constatar que o destinatário dessa quota do
excedente material é uma entidade transcendente ou um ser humano
divinizado, o qual se revela um verdadeiro problema para o seu entendimento da
história como "luta de classes". Esta
personificação de um princípio transcendente que
caracteriza a forma religiosa e que atravessa toda a estrutura social das
sociedades pré-modernas subsistiu, com mais ou menos intensidade,
até à constituição do mundo moderno capitalista.
Mas neste, o princípio social apriorístico não se encontra
mais personificado em nenhum ser humano mas é antes objectivado nas
mercadorias e no dinheiro (sobre isto ver Kurz, no prelo). E a história
desta transformação não deixou de ficar também ela
territorializada.
Apesar das inúmeras diferenças entre as cidades
pré-modernas, há um elemento comum que, embora não seja
absoluto, as distingue em conjunto profundamente das cidades modernas: as
muralhas. Diversos historiadores chamaram já a atenção
para este aspecto mas parece-me que as respectivas ilações
estão longe de estarem suficientemente exploradas. A esmagadora maioria
das cidades pré-modernas era muralhada; as excepções
são raras e estão identificadas e justificadas, tanto pelas
condições naturais da própria cidade ou da região
onde se insere (ex.: Veneza, ou Inglaterra e Japão), como pela
existência de uma teocracia estável ou de um poder militar de tal
modo avassalador que tornavam as muralhas desnecessárias (ex. antigo
Egipto, Esparta). Nesse sentido, para as sociedades pré-modernas era
absolutamente impensável uma cidade não ser muralhada. Não
é por isso mero acaso que as palavras que em inglês,
alemão, holandês, russo e chinês designam hoje
"cidade" designavam primitivamente "muralha" ou seus
semelhantes (cerca, muro, baluarte, etc.). O entendimento usual é que as
estruturas das muralhas medievais subsistiram até ao advento do mundo
moderno e, a partir do século XIX, foram sendo sucessivamente demolidas
para dar lugar às expansões urbanas modernas. Esta
história é entretanto muito mais complicada e parece-me que nos
pode ajudar a compreender um pouco melhor a chamada
"acumulação original do capital".
A propósito da chamada "transição do feudalismo para
o capitalismo", historicamente balizada pelos séculos XIV e XVI,
duas polémicas são hoje consideradas clássicas para o
entendimento do papel da cidade na constituição capitalista: o
"Debate Dobb-Sweezey" (Dobb et al. 1978), desenvolvido na
década de 1950 e que foi exclusivamente intramarxista; e o chamado
"Debate Brenner" (Aston and Philpin 1995), desenrolado na segunda
metade da década de 1970 e com um carácter teórico e
disciplinar mais amplo. Ambos os debates, de modo mais ou menos
explícito, tinham a cidade como pano de fundo da discussão, sem
no entanto prestarem muita atenção às profundas
transformações urbanas desse período. O que aí
estava em causa, e mais uma vez de forma anacrónica, era a cidade como
mercado e nada mais. Entretanto, uma questão diversas vezes colocada em
ambos os debates mas nunca verdadeiramente aprofundada foi a da crescente
necessidade dos senhores de novas fontes de receita para alimentar as guerras
daquele período. E aqui se verá que a cidade foi muito mais do
que pano de fundo.
Ora, antes de mais é preciso ter em mente que aquilo que em termos
categoriais está em causa na transição do feudalismo para
o capitalismo é o processo histórico de
"transformação do dinheiro em capital" (Marx). É
sabido que o dinheiro existia antes do capitalismo, mas de modo algum a sua
função social pode ser considerada idêntica à que
desempenha no capitalismo. Nas sociedades pré-modernas o dinheiro possui
uma função religiosa ou de intermediação de
relações de reciprocidade e obrigação pessoal
(dádivas, contra-dádivas, oferendas, sacrifícios, etc.),
também elas vincadamente religiosas, que de modo nenhum pode ser
equiparada à lógica autonomizada de "riqueza abstracta"
(Marx) e "encarnação de trabalho abstracto" (Marx) que
é específica do capitalismo. Diversos historiadores e
antropólogos, como Karl Polanyi (2001), Jacques Le Goff (2003) e Marcel
Mauss (2001), forneceram pistas no sentido dessa diferenciação,
mas sem que estas tenham sido estudadas de forma sistemática, como
Robert Kurz (no prelo) procura fazer na sua obra recente "Dinheiro sem
valor". Por isso, também de modo algum se pode dizer que as
sociedades pré-modernas possuíam uma "economia";
chamada de atenção que aliás há muito foi feita por
Moses Finley (1980), no que respeita a antiguidade greco-romana, e por Polanyi
de um modo mais abrangente com a sua tese da
"desincrustação" da economia capitalista. A economia,
como esfera autonomizada e desvinculada das relações sociais e
caracterizada por um mercado impessoal e anónimo, é algo
específico da sociedade capitalista. E o que aí está em
causa é o dinheiro como pressuposto e finalidade da
produção, como "deus das mercadorias" (Marx), valor que
se valoriza a si mesmo, ou seja, capital.
O que investigações mais aprofundadas poderão mostrar como
absolutamente decisivo para a "transformação do dinheiro em
capital" são as exigências impostas por aquilo a que
historiografia chama a "revolução militar", quer dizer,
os processos históricos estruturais associados à
invenção das armas de fogo no século XIV e à
formação das máquinas militares e estatais modernas que
garantiram a supremacia da Europa do homem branco nos séculos seguintes
(seguimos aqui Kurz, no prelo). Foi, por um lado, o canhão (inventado no
século XV) e a formação e manutenção de
exércitos de mercenários (que são também os
primeiros verdadeiros assalariados) e, por outro, as brutais e correspondentes
transformações arquitectónicas nas
fortificações das cidades que, em conjunto, se tornaram um
verdadeiro monstro insaciável de recursos que promoveu a brutal
monetarização de toda a reprodução social e a
constituição do capital.
Do lado da artilharia temos uma primeira corrida ao armamento, pautada pela
procura crescente de metais, o desenvolvimento das indústrias mineira e
siderúrgica e o aparecimento de uma proto-indústria das armas de
fogo. Do lado das fortificações urbanas temos
transformações igualmente marcantes: as velhas muralhas medievais
deixaram de cumprir a sua função face ao canhão; foram
erguidas novas muralhas mais baixas mas substancialmente mais largas e
aumentado o espaço de manobra interno para permitir a
deslocação dos canhões de defesa da cidade; no final, o
espaço exigido para a nova muralha era quase sempre superior à
área da própria cidade (Mumford 1998: 390; Kostof 1992: 31).
Essas novas fortificações, com a conhecida
configuração em estrela (a chamada trace italienne) e cujo
exemplo mais conhecido é porventura a cidade italiana de
Palmanova
, eram
extremamente difíceis de erguer e ainda mais de alterar. Exigiam uma
mobilização de recursos em tudo equivalente à da
proto-indústria do armamento, e em conjunto com ela provocaram por toda
a Europa a monetarização generalizada de todos os impostos e o
correspondente "esmiframento" da população com o fim de
alimentar a ascendente máquina estatal militar desvinculada da
reprodução social. Não é à toa que Marx
constata: "No tempo do advento da monarquia absoluta, com a
transformação de todos os impostos em impostos em dinheiro, o
dinheiro aparece de facto como o Moloch ao qual é sacrificada a riqueza
real" (Marx 2011: 145-6). No caso das muralhas, o seu papel até era
duplo: por um lado, serviam de defesa da artilharia pesada; por outro, cumpriam
igualmente um papel enquanto barreira alfandegária sorvedoura de
dinheiro. Foi assim mesmo, de cima para baixo e de forma sangrenta, que o
dinheiro tomou conta de toda a produção e
reprodução social e foi através desse processo
violentíssimo que as cidades-capitais e aquilo a que nós modernos
chamamos "estado" e "economia" vieram ao mundo. Com eles
veio também "o trabalho livre e a troca desse trabalho livre por
dinheiro a fim de reproduzir e valorizar o dinheiro" (Marx 2011: 388).
Mas como Marx (2011: 432) também afirmou: "É da natureza do
capital mover-se para além de todas as barreiras espaciais". Nesse
sentido, as novas muralhas não tardaram por isso a revelar-se elas
próprias um obstáculo à plena constituição
do capitalismo. Por um lado, a formação do estado moderno havia
tornado supérflua a sua função defensiva; por outro lado,
a dissolução dos vínculos pessoais associados à
propriedade fundiária feudal pela transformação do solo em
mercadoria tinha promovido um significado completamente monetarizado de todo
aquele amplo espaço ocupado pelas muralhas em centenas de cidades
europeias. O sinal destas mudanças foi dado em Paris. A tomada da
Bastilha, que marca "oficialmente" o princípio da
Revolução Francesa, foi precedida em dois dias por um
acontecimento porventura mais significativo: uma revolta popular generalizada
contra a muralha exclusivamente alfandegária erguida por Luis XVI,
(chamada de Ferme Générale) desenhada pelo arquitecto
Claude-Nicholas Ledoux, e que culminou no saque e incêndio de
vários dos seus postos alfandegários.
Até agora limitámo-nos geograficamente ao que se passa fora e no
limite das cidades. Mas o processo de constituição do capital foi
promovido paralelamente também pelo que se dava dentro das cidades.
Considerando que o valor é uma forma de "riqueza abstracta"
baseada no "dispêndio de força de trabalho humana sem atender
à forma do seu dispêndio" (Marx), cuja magnitude é
medida em tempo, é evidente que a temporalidade é uma componente
fundamental da constituição do capitalismo. A partir de pistas
dadas por historiadores medievalistas, o historiador americano Moishe Postone
abriu caminho para uma promissora interpretação crítica da
temporalidade moderna. Depois do seu crescimento demográfico nos
séculos XII e XIII, as cidades medievais começaram a desenvolver
uma maior necessidade de regulação do tempo social. Alguns
autores defendem que foram as necessidades materiais da densidade e
complexidade da vida urbana que levaram ao desenvolvimento das horas
constantes; Postone defende, no entanto, e a nosso ver acertadamente, que o
surgimento da forma temporal abstracta característica da sociedade
moderna não pode ser compreendida adequadamente apenas em termos da
natureza da vida urbana per se. Afinal de contas já existiam grandes
cidades noutras partes do mundo muito antes do desenvolvimento das horas
constantes nas cidades medievais do ocidente; e para além disso,
até ao século XIV, o dia de trabalho na Europa medieval
continuava a ser medido de forma natural pelo tradicional sol-a-sol,
instituído pelo 'tempo da igreja' (horae canonicae). Neste sentido, a
razão para o surgimento das horas constantes deve ser baseada numa forma
sócio-cultural particular e não num factor material geral como a
concentração urbana ou o avanço tecnológico.
Para Postone, os sinos de trabalho eram uma expressão de uma nova forma
social que tinha começado a aparecer no fim da Idade Média,
particularmente nas cidades que se tinham especializado na
produção de tecido, como as da Flandres. Numa primeira fase, o
trabalho era pago ao dia pelos próprios mercadores de tecido; isto
significou que durante a crise económica dos fins do século XIII
que afectou profundamente a tecelagem, os trabalhadores deste ramo ficaram
profundamente vulneráveis a situações de pobreza, passando
eles próprios a exigir o prolongamento do dia de trabalho, para
além do dia tradicional de sol-a-sol, de forma a aumentar os seus
salários não podemos esquecer que a riqueza ainda era
medida pela produção absoluta de tecido. De acordo com Le Goff,
foi justamente nesta fase, e como forma de controlo pelos mercadores da 'real'
dimensão do dia de trabalho, que se multiplicaram os sinos municipais de
trabalho pelas diversas cidades medievais europeias, pondo fim ao
domínio histórico do tempo da igreja. Não foi preciso
muito tempo para que os sinos dessem lugar aos relógios mecânicos,
ainda de horas variáveis. Durante a segunda metade do século XIV
espalharam-se por todo o mundo urbano europeu diversas torres municipais com
relógios de um só ponteiro, que passaram lentamente a reger toda
a vida quotidiana urbana. No final desse século a temporalidade
abstracta e homogénea das vinte e quatro horas já servia como
ordenador temporal de diversos trabalhos concretos nos principais centros
urbanos europeus, e com isso a própria cidade do fim da Idade
Média ganhava um novo significado. Como constatou o medievalista Aron
Guretvich: "Dissemos que a cidade se tinha apropriado do seu
próprio tempo e isto é verdadeiro, no sentido em que o tempo
escapou ao comando da Igreja. Mas, em contrapartida, foi também
precisamente na cidade que o homem deixou de ser dono do tempo. Tendo, com
efeito, recebido a possibilidade de se escoar sem ter em conta os
indivíduos e os acontecimentos, o tempo impôs a sua própria
tirania, à qual os homens tiveram de submeter-se. O tempo subjugou-os ao
seu ritmo, forçou-os a agir mais depressa, a despachar-se, a não
deixar escapar um instante" (Gurevitch 1990: 174-8). Esta "tirania do
tempo" é no fundo a tirania da "valorização do
valor" (Marx) como forma social fetichista emergente, intermediada pela
paralela coerção estatal e a máquina militar desvinculada.
Esta interpretação também poderá dar um novo
significado à constatação de Le Goff de que "o
século do relógio é também o do canhão"
(Le Goff 1980: 70-1).
Mas antes de se generalizar por toda a vida social, como nos diz Kurz, "o
tempo começou por se tornar abstracto, independente e absoluto apenas
num espaço social determinado, que é precisamente o espaço
funcional da economia empresarial desvinculado" (Kurz 2004). No
âmbito do processo histórico de valorização do valor
emerge assim uma dissociação social, temporal e espacial das
actividades produtivas em relação a todas as outras actividades e
momentos da reprodução social quotidiana, que passam daí
em diante a ser encaradas como um entrave à 'produtividade', uma
noção que começava então a surgir. Não se
trata por isso da definição de um mero espaço de
produção de bens materiais; trata-se antes de um espaço de
valorização do trabalho abstracto e de "riqueza
abstracta". A relevância histórico-social desta
desvinculação é mais evidente na separação
trabalho-residência, mas na verdade não se trata propriamente de
uma separação; é que não estamos perante o simples
separar de duas coisas que estavam juntas mas antes da
constituição de ambas em separado. A vida quotidiana
pré-moderna é um todo social integrado, no qual não existe
nem trabalho nem propriamente residência; apenas o capitalismo constituiu
tais esferas desvinculadas que se pressupõem reciprocamente, ao mesmo
tempo que a cada uma foi atribuída uma conotação sexual
específica: os homens para os espaços de trabalho e de
valorização da "riqueza abstracta" e as mulheres para
os espaços domésticos e do consumo material-sensível das
mercadorias.
Aquilo que progressivamente se generalizou e consolidou, sobretudo a partir do
meio do século XIX, foi uma definição de cidade como
espaço de concentração e valorização do
trabalho abstracto. Desse modo assiste-se a uma generalização da
separação social e espacial das práticas humanas, que se
expande das fábricas para o espaço urbano, e cujo primeiro
exemplo é porventura as obras de Hausmann em Paris. Aqui
começamos já a falar do capitalismo como totalidade social
constituída, como "sociedade do trabalho", ou como Marx
falava, do funcionamento do capitalismo "sobre a sua própria
base".
Ora, a forma temporal da medida da "riqueza abstracta" implica uma
relação contraditória e dinâmica entre valor e
trabalho abstracto, entre riqueza abstracta e produtividade material. Mediada
pela concorrência, esta contradição inerente à
"valorização do valor" implica uma trajectória
histórica e geográfica muito particular: uma produtividade
material crescente em unidades temporais cada vez mais pequenas e uma
correspondente necessidade de expansão do mercado. Ou seja: a
"valorização do valor" é um processo social
dinâmico e objectivo de crescente intensidade temporal (produtividade) e
progressiva expansividade geográfica (mercado mundial). Este processo
imprime na modernidade uma dinâmica interna, objectiva e inconsciente,
completamente desconhecida nas sociedades pré-modernas. Enquanto nestas
o princípio social metafísico mantinha-se transcendente e
funcionava como matriz religiosa personificada de referência e
estabilização social, a metafísica social da
"valorização do valor" é um processo
sistemático e contraditório de objectivação em
mercadorias, tornando-se assim imanente ao mundo e imprimindo-lhe uma
dinâmica histórica de brutal transformação social
cega, na qual se inclui evidentemente a urbanização moderna e o
actual sistema urbano mundial.
Evidentemente que na base de tudo isto está a contradição
basilar insanável da relação de capital: por um lado, ele
precisa de absorver trabalho abstracto na maior quantidade possível; por
outro lado, a concorrência cria um aumento de produtividade
através da qual a força de trabalho se torna supérflua e
é substituída por capital objectivado na forma de maquinaria.
Esta contradição tem um conhecido mecanismo de
compensação que, dito de forma simplificada, se expressa na
capacidade do sistema, em cada aumento de produtividade, absorver maiores
quantidades absolutas de força de trabalho do que aquelas que foram
eliminadas através da racionalização ou
introdução de maquinaria. O exemplo disso foi o fordismo: ao
mesmo tempo que a linha de montagem reduzia o tempo de trabalho para cada
mercadoria, permitia também a absorção de maiores
quantidades absolutas de força de trabalho. O resultado foi uma
"sociedade do trabalho" a todo o vapor, o arranque da
urbanização mundial generalizada e o progressivo embaratecimento
generalizado de mercadorias inicialmente vendidas como bens de luxo
(automóvel, frigoríficos, máquinas de lavar, etc.). Datam
deste período as teses do urbanismo funcionalista dos CIAM, onde
é evidente a metafísica do trabalho e a temporalidade abstracta
da valorização do valor, sobretudo em Le Corbusier, para quem
"a cidade é um instrumento de trabalho" (Corbusier 1992: vii)
e que o planeamento urbano deve "ajudar no nascimento da alegria do
trabalho" (Corbusier 1995: 68); que defende que "a lei das vinte e
quatro horas será a medida de qualquer empreendimento
urbanístico" (1995: 10) e que "a cidade que dispõe de
velocidade dispõe do sucesso" (1992: 180).
Obviamente que o mecanismo de compensação interno da
trajectória do capitalismo só pode ser eficaz enquanto a
velocidade de inovação dos produtos é superior à
velocidade de inovação no processo produtivo. Mas no contexto da
3ª Revolução Industrial da micro-electrónica, a
relação inverte-se e pela primeira vez a
racionalização e cientifização das forças
produtivas torna supérflua mais força de trabalho do que aquela
que consegue absorver. E aqui não se trata apenas de indivíduos
mas de regiões, países e continentes inteiros. O trabalho
abstracto, que até aqui tinha funcionado como forma fetichista de
integração social, revela aquilo que nunca deixou de ser: uma
violentíssima forma de exclusão social. Há muito que isto
é evidente na urbanização do continente africano que,
incapaz de concorrer no mercado global, apresenta fenómenos de uma
miserável hiper-urbanização sem a correspondente
criação de emprego, ao contrário do que se verificou na
história da urbanização europeia. Mas também
há muito que os fenómenos de desemprego estrutural massificado
atingem as megalópoles dos países do centro do sistema mundial de
trabalho abstracto. E se a isto juntarmos a urbanização
financiada a capital fictício e o custo crescente de
manutenção de uma infraestrutura social urbana improdutiva do
ponto de vista do capital, ela própria garantida através de
dívida pública, parece de facto haver motivos para assombro no
sistema urbano capitalista mundial. Depois da "explosão
urbana" dos últimos dois séculos, existem agora
sérios riscos de muitas cidades se tornarem verdadeiros "barris de
pólvora".
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Livraria Martins Fontes.
Polanyi, Karl ([1944] 2001), The Great Transformation. The political and
economic origins of our time. Boston: Beacon Press.
Rikwert, Joseph ([1963] 1988), The Idea of a Town: The Anthropology of Urban
Form in Rome, Italy, and The Ancient World: MIT Press.
Do mesmo autor:
O paradoxo da nova escravatura global e os pressupostos cegos da ideologia antiescravatura hoje
[*]
Apresentação efectuada em Lisboa, a 3 de Outubro de 2013, na
sessão "A 'explosão da cidade' e a trajectória do
capitalismo" do seminário "Pensamento Crítico
Contemporâneo e Cidade", organizado pela Unipop e a revista
Imprópria, no âmbito da Trienal de Arquitectura de Lisboa 2013.
O original encontra-se em
o-beco.planetaclix.pt/bruno-lamas2.htm
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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