A UE não existe
por Daniel Vaz de Carvalho
1 Ascensão e queda do mito europeu
A UE existe? Não, o que existe é um projeto de fundamentalismo
neoliberal conduzido por tecnocratas. O que temos é uma
"união" de desemprego, pobreza, desesperança e revolta
cidadã, em que milhões de pessoas são deixadas à
margem, esmagadas pela austeridade enquanto a oligarquia acumula riqueza e
todas as hipóteses de equilíbrio ou convergência
estão excluídas na prática.
Uma "união" que se constrói comandada pela oligarquia
alemã e que, face ao seu total falhanço, ensaia já
soluções de extrema-direita como no leste europeu, e de que o
drama ucraniano é sintomático.
Segundo o Eurostat o risco de pobreza ou exclusão social atingia em 2013
na Grécia 35,7% da população, na Espanha 27,3%, na
Roménia 40,4%, na Letónia 35,1%, no Reino Unido 24,8%, na
própria Alemanha 20,3%. Em Portugal como se sabe era de 27,4%. No
entanto, como estes dados se referem a medianas podemos avaliar os
níveis de pobreza pelos respetivos salários mínimos
(brutos) que abrangem crescentes faixas de trabalhadores. Assim, na
Roménia era de 157,5 , na Letónia de 286,66 , na
Polónia 392,73 .
A UE tornou-se até risível para seus próceres como
Christine Lagarde, ao afirmar temer que uma dieta de dívidas elevadas,
crescimento fraco e desemprego se torne a nova normalidade na Europa.
[1]
A UE encaminha-se para nova recessão e o sistema bancário apesar
de todas as medidas apresentadas desde 2008 como condições
sine qua non
para a "salvação" de quê?!
está tão ou mais fragilizado que antes.
A propaganda evolui no meio de ilusões, não apenas sobre a
realidade, mas sobre as soluções adotadas. Este falso otimismo
é apenas uma máscara para impor aos povos a austeridade que toma
a forma de uma guerra social. A estabilidade económica da UE é
ilusória. Pior, a UE encontra-se na terrível
situação de as únicas soluções que poderiam
resolver os problemas existentes levariam à destruição dos
seus mitos e ambições de grande potência continental, para
onde os seus tratados pretendiam convergir.
Para os impor, a propaganda dizia ser necessário a "Europa (?)
falar a uma só voz". Como se os interesses nacionais pouco ou nada
importassem aos seus "ideais europeístas". Que espécie
de UE é esta em que a única igualdade estatuída é
para o capital multinacional? Em que os cidadãos são cada vez
mais marginalizados, suas esperanças e projetos de vida negados em nome
da "eficiência dos mercados". Em que a
contestação se generaliza e é cada vez maior o
descrédito dos políticos e das instituições que
suportam este estado de coisas.
Quaisquer que sejam os acontecimentos futuros, o poder enfeudado a
Bruxelas/Berlim afastou-se de tal modo das pessoas e dos seus problemas, que,
face à dissolução do poder dos Estados e à
decadência económica, a contestação a uma
"união" que na realidade não existe, continuará
a acentuar-se.
Que a UE não existe confirma-o Draghi ao afirmar, e com ele comentadores
e políticos do conformismo vigente, que o contrato social europeu
é obsoleto e há que substituí-lo. É a "nova
ordem europeia" em marcha: o neofascismo. A oligarquia dominante, a
finança e seus políticos não estão em estado de
suportar uma liberdade e uma democracia em que as aspirações
populares sejam tidas em conta.
2 O euro uma aberração económica e social
Com o euro foi preparado o caminho para os países deixarem de ter
soberania. No Manifesto, Marx refere-se à moeda, ao dinheiro, como a
ligação social dominante à qual todas as outras
relações se reduzem. A tese da neutralidade da moeda um
dos dogmas do monetarismo conduz à
"independência" dos bancos centrais, entidades que não
dependem do poder político democrático, tendo como objetivo
apenas garantir o que a oligarquia financeira define como prioritário e
essencial. Os resultados estão à vista com o sistema financeiro
europeu próximo do caos, mascarado pela austeridade e pela
comunicação social controlada.
Os preços monetários resultam de compromissos e conflitos de
interesses, nisto decorrem da distribuição do poder. A moeda
é um instrumento na luta entre indivíduos e grupos sociais
à volta da apropriação deste tipo de direito. O
cálculo monetário não tem sentido senão a partir de
um conhecimento da distribuição de rendimentos. Ele é
portanto dependente da organização social e não
prévio ou a sua essência.
[2]
A desorientação que reina no sistema financeiro da UE pode ser
avaliada pelo contorcionismo técnico a que o BCE recorre ao comprar
títulos classificados como "lixo". É esta a forma de
mascarar a verdadeira situação da banca europeia. Porém,
isto apenas aumenta o descrédito do sector e da própria moeda, o
euro.
O BCE colocou o interesse dos banqueiros acima dos interesses dos povos. O
facto de largo conjunto de bancos terem colapsado ou terem-se arrastado na
fraude (por ex. casos Barclays, Deutsch BanK, Dexia, etc). A falta de
credibilidade do sistema ficou demonstrada quando bancos colapsaram após
terem passado nos testes de stress. Tal ocorreu na Irlanda, em Portugal, na
Grécia e depois de as regras terem sido supostamente tornadas
mais eficazes, os bancos continuam a ir à falência atulhados de
casos fraudulentos, como no Dexia ou no BES, verdadeiro "case study"
político e económico de todo o sistema financeiro da UE.
O euro, com o seu BCE, mais parece uma arma de vândalos que procedem
à devastação e ruína dos povos para manter o seu
poder discricionário. Porém, para que serve tudo isto? Dado que
os países cederam o seu poder de criar dinheiro ao BCE e à banca
privada, aceitando o uso do euro, é de facto possível irem
à falência. Isto apenas torna a política do BCE mais
idiótica ao tornar ainda mais difícil a vida dos países
que se debatem para pagar as suas dívidas.
[3]
O euro é um instrumento do domínio alemão, impondo a moeda
que mais lhe convêm, não permitindo a criação de
moeda sem juros por bancos centrais dos Estados, dependentes do poder
político democrático. A catástrofe não é
sair do euro, é permanecer no euro que apenas trouxe
estagnação, insuportável endividamento, dependência
e, consequentemente, inevitável pobreza.
3
LARGO AL FACTOTUM
No estado a que a UE chegou, pretende-se que as eleições sejam
uma farsa. Uma farsa que faz lembrar o
"largo al factotum"
(deixem passar o faz-tudo) das Bodas de Fígaro
(Mozart Da Ponte). A "mulher mais poderosa da Europa", a
Merkel, não passa do factótum do sr. Schauble, ignorante como
qualquer fanática, tal como Isabel de Castela, obedecendo ao inquisidor
Torquemada.
Que dizer de Draghi, de Hollande, dos políticos do "arco do
poder" em Espanha, na Grécia, ou Portugal com Passos Coelho, Maria
Luís Albuquerque e Cavaco Silva? Não passam de factótuns
que mestre Miguel Urbano qualificava como uma "casta de aventureiros sem
escrúpulos que a política de direita fez florescer e tornam o
país um microcosmos do capitalismo no seu estado mais apodrecido."
[4]
O B de P é na realidade um departamento do BCE. O seu governador
é um mero funcionário do BCE às ordens dos burocratas para
os quais os interesses do povo português estão resumidos nos
formulários que lhes foram atribuídos. Os governadores limitam-se
a cumprir ordens e olhar para o lado quanto à má gestão e
às fraudes.
Vejam-se os presidentes da CE do inepto e subserviente Barroso a Junker,
envolvido num escândalo (rapidamente abafado) de acordos fiscais secretos
no Luxemburgo a centenas de multinacionais. Centenas de milhares de
milhões de euros extorquidos aos países e aos povos! São
indivíduos sem perfil, que agem como vozes do dono, repetem
clichés, esgotam promessas que, de tão falseadas, se tornam meras
mentiras que as pessoas ignoram ou desprezam.
A austeridade é aplicada com a argumentação de pretender
reconstituir um pretenso equilíbrio económico, resultado
mecânico duma "concorrência livre e não falseada"
que produziria mercados perfeitos. É a economia a funcionar como uma
máquina hidráulica
Em nome de uma hipotética eficiência, impõe-se a
lógica do mercado como regulador absoluto ignorando os riscos que lhe
estão associados, como a corrupção, a fraude, as crises
ditas "sistémicas". Este "mercado livre", com
monopólios e especulação, está espartilhado num
conjunto de regras autoritárias e determinações de agentes
burocráticos. Porém, construir ou reformular a sociedade de
acordo com um modelo pré-definido como ideal e perfeito e julgar as
pessoas e as sociedades de acordo com esse modelo, releva da teologia
fundamentalista.
[5]
Os políticos do sistema nem sequer põem a questão de
avaliar se o tal equilíbrio financeiro é socialmente justo. A
"ciência económica" vigente não passa de uma
superstição destinada a subordinar os povos e o funcionamento das
economias nacionais aos interesses das megaempresas transacionais e seus
multimilionários.
É este o resultado do modelo defendido pela social-democracia/socialismo
reformista: um drástico retrocesso das condições sociais,
com a UE a desempenhar o papel da "Santa Aliança" do
século XIX.
4 A Grécia já está a arder?
A simples hipótese das eleições na Grécia serem
ganhas por um partido que não se afasta da social-democracia
tradicional, provocou ameaças, quedas na bolsa, juros a subirem para
inconcebíveis 9,7%; quando o BCE fornece dinheiro à banca privada
sem custos e sem riscos.
Os comentadores falaram em "nervosismo (!) dos mercados" e o FMI
suspendeu a "ajuda" até ao novo governo. Só não
se percebe é como uma "mão invisível" pode estar
nervosa! Esta gente já não hesita em usar o obscurantismo e a
estupidez como arma ideológica.
O ministro alemão das finanças, Schauble, disse que "as
políticas definidas por Bruxelas (que modéstia!), as reformas
duras estão a dar frutos (quais? a quem?), têm de ser mantidas e
não há alternativas." "As novas eleições
não vão alterar os compromissos que temos com o governo grego.
Qualquer novo governo tem de manter os compromissos assumidos pelos
antecessores."
Os nazis não pensavam de outra forma relativamente ao resto da Europa,
só que a hipocrisia era menor. Não escondiam ao que iam. Na
iminência da libertação de Paris, a questão colocada
pelo Alto Comando nazi foi: "Paris já está a arder?" A
versão atual de Paris a arder para que a "Alemanha" triunfe
é a austeridade, o fogo lento que consume económica e socialmente
os povos.
Na Grécia, como em Portugal e por toda a UE, a "ajuda" e os
"frutos" de que falava Shauble, estão envenenados, traduziu-se
em mais miséria, desemprego, recessão económica,
degradação das condições sociais e como vemos a
instauração do neofascismo liberal. Simultaneamente, as
instituições passaram a exercer um controlo desmedido sobre as
políticas nacionais impondo um Estado hiperautoritário,
designadamente uma estrutura de vigilância e punição
anti-laboral e anti-social.
[6]
A democracia na UE tornou-se meramente formal com tratados que impõem
à revelia dos povos as políticas neoliberais, fechando as portas
às opções dos povos. A democracia como ato de
participação e decisão coletiva deixa de ser
necessária face à transformação da econometria
neoliberal em ideologia. Cliques de "sábios", como os
provenientes dos grandes grupos financeiros, decidem "o que é
melhor para nós", o povo, tal como no fascismo.
Quando os países fragilizados por estes processos, mais precisavam de
poder democrático para decidir o seu destino e respirar a liberdade da
soberania, foram colocados sob iníquas tutelas hipocritamente apelidadas
de ajuda.
Perante o aumento da contestação à burocracia de Bruxelas
e à ditadura de Berlim, a Alemanha ensaia um recuo estratégico
com algumas apressadas promessas que apenas comprovam que tudo o que andaram a
obrigar os outros a fazer, não estava apenas errado, era absurdo e
socialmente criminoso.
Mas são remendos que nada alteram do essencial das políticas.
Trata-se apenas de disfarçar um pouco o descalabro de uma falsa UE
incapaz de resistir às perturbações que originou na
Grécia, que não representa sequer 2% do PIB da zona euro e 1,4%
da UE.
A UE não existe, o que existe é um problema, uma guerra de classe
contra os povos sob a designação de UE. Que democracia, que
vontade do povo se permite então nesta UE? Que partidos
democráticos aceitam esta chantagem? Portugal perdeu a soberania
monetária, económica e até a legislativa está
drasticamente limitada. Uma chantagem que se exerce contra as
opções eleitorais, como o PR se faz eco com os seus pseudo
consensos.
O Estado democrático e a soberania popular garantidos pela
Constituição, são as formas de proteger Portugal e os
portugueses e nunca um poder espúrio transferido para uma decadente UE
contra os interesses nacionais.
Notas
[1] Patrick Wintour in Brisbane,
The Guardian,
17 novembro 2014
[2] Jacques Sapir, Les trous noirs de la science économique, Ed. Seuil,
2013, p. 239, 240, 242.
[3] Geoff Davies, Sack the Economists - and Disband their Departments , Bwm
Books, Canberra, 2014, p. 184
[4]
Um zoo humano de inimigos do povo
[5] Jacques Sapir, obra citada, p. 108, 128, 129
[6] Jacques Sapir, obra citada, p. 98, 99
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