Os tabus e as alternativas

por Daniel Vaz de Carvalho [*]

 
A liberdade de um povo está na força e na duração da sua Constituição e a sua liberdade morre sempre com ela.
Discursos e Relatórios, Saint-Just, Ed. Estampa
Só conheço um meio de resistir à Europa: é opor-lhe o espírito da liberdade.
(Idem)

Saída limpa. 1 – A LÓGICA AXIOMÁTICA

A lógica axiomática permite a construção de raciocínios perfeitamente coerentes, embora possam nada ter a ver com a realidade. A partir do momento em que se definam os axiomas o resto vem por acréscimo de acordo com a própria lógica.

Um exemplo muito curioso é o das geometrias. Euclides, perante a impossibilidade de demonstrar alguns conceitos da sua geometria, admitiu-os como verdadeiros e indemonstráveis. Assim, foi considerado durante 22 séculos até no século XIX os seus axiomas serem contestados construindo-se as geometrias ditas não euclidianas: a esférica ou elíptica e a hiperbólica. [1]

A economia política ao serviço do capital impôs uma lógica axiomática, da qual resultou o neoliberalismo, destacando-se neste processo os srs. Hayek e Friedman. Mesmo desmentida pelos factos e posta ao serviço de horrorosas ditaduras, a argumentação baseada nessa lógica dava os subterfúgios necessários à exploração capitalista, permitindo contestar quer o marxismo quer o keynesianismo, vendo um tão ameaçador como o outro para os interesses do grande capital e multinacionais.

As sociedades europeias estão dominadas por axiomas como a eficiência dos "mercados" financeiros, o euro como moeda única, a UE como espaço de democracia e progresso. Se não se começar por contestar esses axiomas a crítica é apenas circunstancial, não sai da lógica do sistema. O discurso de ministros, deputados da maioria e do PS, comentadores, pode então ser perfeitamente lógico… mas sem relação com a realidade ou incapaz de a alterar. A sua coerência tem a ver apenas com os axiomas assumidos: sem estes a assertividade e o país das maravilhas de Coelho, Portas & Cia, não passa de um baralho de cartas.

Para além das invocações propagandísticas, os axiomas que referimos funcionam como se as pessoas não existissem, fossem descartáveis; tratados ao nível da peça de mobiliário da empresa: um custo. A noção de necessidades sociais simplesmente não existe. Para se ser eficiente é preciso ser-se anti-social. Dizia o sr. César das Neves: "Direitos são muito bonitos mas é preciso pagá-los". (RTP, INF, Contas Certas. 8/5) Por outras palavras: os direitos da agiotagem estão antes do das pessoas. Os seus axiomas levam-nos a subordinar a utilidade social aos interesses financeiros e monopolistas.

Os apoios sociais, o próprio salário, são considerados uma concessão ao nível da esmola, nunca como direito humano e apenas para que a pobreza não chegue a gerar revoltas que ponham em causa os seus axiomas.

Os mercados são considerados entidades absolutamente racionais e eficientes. É falso. Os "mercados" são entidades corruptas, fraudulentas, que convivem com o dinheiro do crime organizado, que apenas se guiam pelos seus interesses e que transformaram em legal o que ainda há escassas décadas era crime (paraísos fiscais, livre transferência de capitais, fuga aos impostos, etc.).

A partir do momento em que tudo fica nas mãos dos "mercados" e do que isto significa em termos de poder político e social, o mito liberal da igualdade, o "personalismo" democrata-cristão ou o "Estado Social" do PS, vão para o caixote do lixo da retórica, pois, como proclamam os srs. César das Neves, M. Carreira, V. Bento, etc., "só podemos ter o Estado que podemos pagar", ou seja, só podemos ter a democracia e a solidariedade social que os detentores do dinheiro permitam em função dos seus interesses.

O sr. Vítor Gaspar definiu bem o nível axiomático, das políticas atuais: "A questão não é sobre as regras que estão definidas e são reconhecidas (!) é sobre a qualidade da execução". (debate no ISCTE em 19/4) Os alquimistas do século XVIII não falavam de forma diferente.

2 – TABUS E FALÁCIAS

Perante o falhanço das políticas atuais, os seus defensores procuram manter a opinião pública iludida fazendo dos seus axiomas tabus, algo sagrado, intocável. Os "mercados" financeiros, o euro, os tratados da UE, são como que a "santíssima trindade" da dogmática vigente. Daqui a "religião" do dinheiro parte para outros "mistérios": a economia do lado da oferta que justifica a descida do IRC, as desigualdades crescentes, os intocáveis paraísos fiscais; o salário mínimo e os direitos laborais como fatores de desemprego; o pacto orçamental da UE, base do euro, como "regra de ouro".

Quando se diz, para justificar os desmandos da troika: "gastava-se mais do que se produzia", ou "gastava-se acima das possibilidades", nunca se pergunta porquê, pois isso levaria a pôr em causa os tabus instituídos. O sr. César das Neves acha que "É bom que os países sejam humilhados" e comenta escandalizado que "o povo comprou casa, carro, frigoríficos (!), fez viagens". (RTP Informação, Contas Certas, 5/5)

Esta afirmação, mesmo sendo uma falácia, só prova que os seus dogmas estão errados: quem fomentou o consumismo foi o sistema bancário sem regulação, entregue a uma hipotética eficiência pelo mercado; bem como as pretensas "escolhas racionais" que desviaram o crédito do sector produtivo para a especulação imobiliária e o consumo, em busca de elevados lucros a curto prazo.

Tratava-se na realidade de corromper os povos, afastá-los dos seus interesses fundamentais e da defesa dos seus direitos, corrompe-los com o crédito e o consumismo. Os que se opunham a este modelo eram então classificados de dinossauros e… "estalinistas".

Finalmente quem consumiu de mais? Segundo um relatório da OCDE Portugal foi dos países onde a riqueza do 1% mais rico mais cresceu. Entre 1980 e 2012 o rendimento do 1% aumentou105%, ou seja, mais que duplicou, aparecendo em terceiro lugar a seguir aos EUA e Reino Unido. Portugal tem o segundo mais elevado índice de desigualdade da zona euro e os 25 mais ricos valem mais de 10% do PIB.

Todos os indicadores que a propaganda do governo apresenta como sucessos, não passam de falácias. O desemprego está escamoteado pela emigração, o trabalho parcial e os que deixaram de figuram nos registos. Quanto ao PIB esconde-se que o país está ao nível de há 15 anos, e o investimento ainda mais. A baixa dos juros é outro "sucesso": atingem 3,4 ou 3,6% a 10 anos, omitindo que o BCE concede aos "mercados" dinheiro a 0,25%, com cobertura de riscos garantida, para estes investirem nas dívidas públicas.

O sucesso da "saída limpa", é desmentido pelas agências de rating que mantêm Portugal como "lixo" financeiro, pelos relatórios da troika exigindo austeridade permanente e continuando a fiscalizar Portugal duas vezes por ano.

A lógica das oligarquias com os seus "mercados", está em que "controlando a dívida controla-se tudo". Com 94% do PIB de dívida pública diziam que estávamos na "bancarrota", a "5ª coluna" neoliberal tudo fez para a ocupação do país pela troika; agora com 130% festejam o sucesso. O chamado programa de ajustamento serviu apenas para compensar a finança (em primeiro lugar a alemã) dos desajustes provocados pelo euro e pelo seu projeto económico. Mas o sr. Daniel Beça (Prós e Contras, 5/5) diz que "os credores estiveram cá durante quase três anos a ajudar o país". A direita teve o sucesso que queria.

Os elogios aos sacrifícios dos "portugueses" fazem lembrar os do fascismo colonialista aos sacrifícios dos soldados numa guerra perdida, que estava a ser "ganha em todas as frentes" ainda no dia 24 de Abril. A mentira é crónica na direita. O que há a fazer é em primeiro lugar discutir a fundamentação, a validade, as consequências dos seus axiomas.

3– A "EUROPA" E O EURO

A UE tornou-se um espaço antidemocrático que trata os países mais vulneráveis como colónias. Convive com a extrema-direita em vários países, tornou-se xenófoba, fomenta miseravelmente o nazismo na Ucrânia, apoia o terrorismo na Síria, agiu criminosamente na Líbia, na Jugoslávia, etc. Hostiliza a Venezuela, a Bolívia, o Equador, Cuba. Os partidos da social-democracia/socialismo reformista alinham nestes procedimentos, de que são vergonhosos exemplos as posições do sr. Hollande.

A burocracia que enxameia pelas instituições europeias não foi eleita, não representa o povo da UE, mas são eles que decidem os nossos destinos. Funcionários coligados nas troikas assustam a opinião pública com seus tabus. Dominam cultivando uma aparente discórdia que não põe em causa os seus axiomas, irrelevante para os seus interesses.

Assis e a sua alma gémea. Como conciliar a coesão social e o próprio regime democrático com o tratado orçamental da UE? Francisco Assis, dizia que o PS havia de o cumprir "de forma inteligente", só não diz como. Constança Cunha e Sá (TVI-24, 21/04) replicava dizendo que só havia uma forma inteligente de o fazer: "é não cumprir". Ricardo Pais Mamede referiu como um triângulo de impossibilidades : o tratado orçamental, o pagamento da dívida nos termos atuais e o Estado Social. Assumir os dois primeiros torna incompatível o terceiro.

J. Ferreira do Amaral considera com razão que o euro transforma o país numa junta de freguesia da UE. Portugal fica às ordens de um Alto-Comissário como um qualquer protetorado. O PS qualifica isto de "soberania partilhada". Afinal, idêntica à do Egipto dos paxás perante o império britânico, no século XIX…

A riqueza produzida em Portugal é levada para a Holanda e para outros paraísos fiscais. Trabalhamos para a finança, em grande parte devido às empresas privatizadas. Saint-Just dizia que vencidos os inimigos da Revolução no campo de batalha "esses povos, ou antes quem os domina, são nossos inimigos, declararam-nos guerra com seu ouro".

O presidente do Eurogrupo diz que Portugal precisa encontrar um equilíbrio entre nível salarial e produção competitiva, para se terem produtos baratos para exportar e ganhar dinheiro. É um exemplo acabado da lógica axiomática, no entanto não conseguem (ou não querem) definir que nível de salários deveria ser atingido no seu modelo competitivo.

A perspectiva é uma "economia Wall-Mart" e "fast-food" em que os trabalhadores são vigiados e perseguidos com processos ou despedimentos por atividades sindicais e reivindicativas. É aqui que a troika quer chegar, subvertendo toda a proteção legal aos trabalhadores, estabelecendo uma corrida para o nível mais baixo possível das condições de trabalho e salários. À pretendida destruição da contratação coletiva o primeiro-ministro chama "dinamizar". É concretamente um objetivo fascizante.

O sr. F. Assis, diz que o governo PSD-CDS é "excessivamente liberal". Portanto aceita todos os axiomas do neoliberalismo, mas não "excessivamente". Não adianta o PS iludir-se e iludir com "menos austeridade" baseada no programa da troika, quando afinal perspectiva uma coligação com o PSD, segundo Ana Gomes pode ser necessário…

Para António Costa "enquanto não se resolver o efeito assimétrico que o euro tem sobre as economias dificilmente sairemos disto." Sendo assim, que propõe? E se a "Europa" não estiver interessada nessa resolução, se tal for impossível atendendo aos interesses da Alemanha (ou de quem a domina) e de outros países? Qual é o plano B?

4 - AS ALTERNATIVAS E O RUMO À VITÓRIA

Para Marx os filósofos tinham até ali tentado explicar o mundo, o que se tratava agora era de transforma-lo. É a diferença entre a crítica e a criação de alternativas. Para criar alternativas é preciso destruir tabus, não cair nos falsos dilemas dos axiomas. Sem isto, críticas, análises, enunciado de medidas mesmo aparentemente muito corretas nada alteram do essencial, são voluntarismo ou cosmética. O fascismo salazarista teve ministros tecnicamente competentes, nada alteraram ao contexto geral de pobreza, atraso, repressão.

Einstein teria dito que, nunca resolvemos os problemas que enfrentamos com o mesmo modo de pensar que os originou: torna-se necessário criar outro modo de pensar. Nisto consiste essencialmente a criação de alternativas.

O que se passa na Alemanha, na Áustria ou na Finlândia, nada tem de comum com o que se passa entre nós. É preciso ir às causas dos problemas e procurar as soluções. O euro, os mercados financeiros, os tratados da UE, são verdadeiras camisas-de-forças para o progresso e a democracia para Portugal, mas também para os outros povos da UE.

O primeiro passo para a criação de alternativas é a discussão sem tabus destes temas. No II Congresso Marx em Maio , Nuno Teles lembrou o avanço na compreensão da renegociação da dívida e da saída do euro desde há alguns anos. E com razão, é que as alternativas reais não aparecem como situações acabadas: são processos.

Os tabus europeus e neoliberais a que também o PS está aferrado, não passam de situações em que "o rei vai nu". Fora da UE: estão países como a Islândia e a Noruega e fora do euro países como a Dinamarca e a Suécia, não se dando nada mal com isso.

Ao falarmos de alternativas não podemos ignorar as lições que o "Rumo à Vitória" [2] encerra. Escrito em 1964, o "Rumo à Vitória" não é um livro datado. É uma obra importante do pensamento marxista, no que tem de análise da sociedade portuguesa, das suas contradições e do seu potencial revolucionário. A partir dessa análise foram elaboradas as teses para a construção e a concretização da alternativa que resultaria na Revolução de Abril e na sua Constituição.

O "Rumo à Vitória" foi feito num período em que o regime fascista exibia uma propaganda triunfalista de êxitos, que o governo atual copia: "crescimento e emprego" (que agora nem sequer existem) sobre uma estrutura económica e social cheia de vícios e contradições.

Em certos sectores mesmo alinhados à esquerda há a ideia de que determinados temas não devem ser discutidos porque as pessoas não estão preparadas e não ser oportuno. É o caso do euro, dos mercados financeiros, da UE. Também quando o "Rumo à Vitória" foi elaborado se podia dizer – e foi dito – que não havia condições e várias das suas propostas não seriam oportunas. Porém cabia justamente aos marxistas criar essas condições e alargar o debate com todos os democratas e progressistas.

No momento atual, é cada vez mais oportuno tornar evidente que a mudança é não só necessária mas possível. A Constituição de Abril foi e ainda é o maior consenso nacional. Todos os álibis são usados pelos seus inimigos para anularem os seus princípios. Porém continua a ser aí que encontramos as respostas para superação da crise atual, para a concretização de um novo "Rumo à Vitória" – que urge.

Notas
[1] Na geometria esférica ou elíptica de Rieman, os triângulos somam menos de 180º e numa esfera ao aumentar o raio do círculo pode diminuir o seu perímetro. Na geometria hiperbólica de Lobatchevsky, entre outros, os triângulos somam mais de 180º. A primeira verifica a relatividade generalizada de Einstein. A segunda, poderá aplicar-se no caso de uma permanente expansão do universo. Porém mesmo na Terra a geometria de Euclides deixa de ser válida em grandes distâncias. Assim, a linha mais curta entre dois pontos não é uma linha reta (a loxodrómica) traçada na carta de navegação, mas sim a ortodrómica que segue um círculo máximo.
[2] Rumo à Vitória, Álvaro Cunhal, Ed. Avante.


[*] Autor de "Girassóis", uma história de antes, durante e depois do 25 de Abril. A obra pode ser obtida na secção livros para descarregamento


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20/Mai/14