por Daniel Vaz de Carvalho
No final dos anos 40 do século passado a Direção
soviética decidiu elaborar um Manual de Economia Política. O
motivo principal estava ligado à chegada de novos países à
via socialista e de muitos novos militantes formados na luta contra o
nazi-fascismo, mas sem a experiência e conhecimentos necessários
à construção do socialismo. Tornava-se assim
necessário proceder à sua formação
ideológica e que a experiência soviética fosse deste ponto
de vista avaliada.
A tarefa incumbiu a diversos académicos e no final de 1951 o documento
foi posto à discussão. Estaline participa elaborando o texto
Problemas económicos do socialismo na URSS datado de
setembro de 1952, dedicado aos participantes na discussão sobre
economia. O Manual foi publicado em 1954.
[1]
Abordamos alguns aspetos que nos parecem importantes na atualidade, tanto do
ponto de vista teórico como prático, de questões
relacionadas com a transição para uma sociedade socialista. O
texto, que evidentemente não se esgota, nas partes selecionadas,
contém também uma resposta concludente às teses que para
denegrir o socialismo falam em "capitalismo de Estado" e
"sistema de comando administrativo".
É relevante o que nos recorda sobre as nacionalizações,
sobre as relações com os agricultores individuais e em
cooperativas, sobre a lei do valor. Tal como a sua abordagem acerca da lei
económica fundamental do socialismo e a do capitalismo.
A social-democracia recusa a lei fundamental do capitalismo: assume lucro
privado como eficiência, centra as suas políticas sociais em
formas de redistribuição que não vão além do
empobrecimento relativo. Na verdade, centrava, hoje já não centra pois alinha nas teses
neoliberais do empobrecimento absoluto, aceita capital fictício como
"riqueza", nega a lei da mais-valia e aposta em
"revoluções digitais" em que a exploração
e opressão do grande capital tende a agravar-se. Porém, como o
texto evidencia, apenas sob o socialismo é possível conciliar a
revolução científico-técnica com a social.
1 - O carácter das leis económicas no socialismo
A primeira questão colocada no texto é sobre das leis
económicas. Ignora-las ou despreza-las conduz por um lado ao radicalismo
aventureirista o esquerdismo como tática para atacar as
fases de transição para o socialismo e dividir as forças
populares; por outro como o socialismo não "pode tudo",
renega-lo e adotar, já sem complexos puristas, a "economia de
mercado" da direita e da social-democracia.
"O marxismo entende as leis da ciência quer as das
ciências naturais, quer as da economia política como o
reflexo de processos objectivos que ocorrem independentemente da vontade das
pessoas. O socialismo, alegadamente, permitiria eliminar as leis existentes do
desenvolvimento económico e "formar" novas. Isto é
falso" (p.4) "As pessoas podem descobrir, conhecer, estudar, ter em
conta as leis
(da ciência)
nos seus atos, utilizá-las no interesse da sociedade, mas não
podem modificá-las nem aboli-las. Muito menos podem formar ou criar
novas leis da ciência". (p.2)
"A violação das leis da natureza, provoca o fracasso do
procedimento. O mesmo se deve dizer a respeito das leis do desenvolvimento
económico, das leis da economia política, tanto faz tratar-se do
período do capitalismo ou do período do socialismo".(p.
3) "Pode-se limitar a esfera de ação destas ou daquelas leis
económicas, pode-se prevenir a sua ação destruidora, caso
exista, mas não podem ser "transformadas" ou
"eliminadas". O poder soviético não pode eliminar as
leis da ciência e formar novas leis".(p. 5 e 6)
É por isso uma tese completamente errada considerar que "apenas
graças à atividade consciente dos cidadãos
soviéticos ocupados na produção material se impõem
as leis económicas do socialismo".(p.53)
2 A lei económica fundamental do socialismo
"Diz-se que a lei económica fundamental do socialismo é a
lei do desenvolvimento harmonioso, proporcional, da economia nacional. Isto
é errado. A ação da lei do desenvolvimento harmonioso da
economia nacional só pode ter livre curso quando apoiada na lei
económica fundamental do socialismo. (
)
Por conseguinte: (no socialismo) em lugar da garantia de lucros máximos,
a garantia da satisfação máxima das necessidades materiais
e culturais da sociedade; em lugar do desenvolvimento da produção
com interrupções, do crescimento à crise e da crise ao
crescimento, o crescimento ininterrupto da produção; em lugar das
interrupções periódicas no desenvolvimento da
técnica, acompanhadas pela destruição das forças
produtivas da sociedade, o aperfeiçoamento ininterrupto da
produção na base de uma técnica superior. (
)
A lei económica fundamental do socialismo pode ser formulada,
aproximadamente, do seguinte modo: garantia da satisfação
máxima das necessidades materiais e culturais sempre crescentes de toda
a sociedade por meio do crescimento ininterrupto e aperfeiçoamento da
produção socialista na base de uma técnica superior".
(p. 24)
3 - Planeamento e economia política
"A lei do desenvolvimento harmonioso da economia nacional oferece aos
nossos órgãos de planificação a possibilidade de
planificar corretamente a produção social. Mas não se pode
confundir possibilidade com realidade". "Para que esta possibilidade
se torne realidade, é preciso estudar esta lei económica,
é preciso assimilá-la, é preciso aprender a
aplicá-la com pleno conhecimento de causa. Não podemos dizer que
os nossos planos anuais e quinquenais refletem plenamente as
disposições desta lei económica".(p. 5)
A rentabilidade
(deve ser analisada)
não do ponto de vista de cada empresa ou ramos isolados da
produção durante o período de um ano, mas do ponto de
vista de toda a economia nacional e ao longo de um período, de 10 a 15
anos, única forma correta de abordar a questão, (
) a forma
superior, estável e constante de rentabilidade, que nos garante a
ação da lei do desenvolvimento harmonioso da economia nacional e
a planificação, livrando-nos das crises e assegurando-nos o
crescimento ininterrupto com ritmos elevados.(p.14)
O desenvolvimento harmonioso da economia nacional e a
planificação da economia nacional nada podem dar se o objectivo
em nome do qual se realiza o desenvolvimento planificado da economia nacional
for ignorado ou não estiver claro.(p.24)
Os problemas da organização racional das forças
produtivas, da planificação da economia nacional, etc.,
não são objecto da economia política, mas da
política económica dos organismos dirigentes. Trata-se de dois
domínios distintos que não se podem misturar. A economia
política estuda as leis do desenvolvimento das relações de
produção entre as pessoas. A política económica
tira daqui conclusões práticas, concretiza-as e assenta nelas o
seu trabalho quotidiano. Sobrecarregar a economia política com problemas
da política económica significa arruiná-la como
ciência.(p. 44)
É um engano afirmar-se "que no socialismo não existe
contradição alguma entre as relações de
produção e as forças produtivas da sociedade. Há e
haverá seguramente contradições, uma vez que o
desenvolvimento das relações de produção atrasa-se
e continuará a atrasar-se em relação ao desenvolvimento
das forças produtivas. Com uma política justa dos
órgãos dirigentes, estas contradições não se
tornarão antagónicas e não se chegará a um conflito
entre as relações de produção e as forças
produtivas da sociedade.
(
) O caso será diferente se seguirmos uma política errada.
Neste caso, o conflito será inevitável e as nossas
relações de produção podem tornar-se num
travão muito sério ao desenvolvimento contínuo das
forças produtivas. Por isso, a tarefa dos órgãos
dirigentes consiste em descortinar em tempo útil as
contradições que se formam e tomar oportunamente as medidas
necessárias para a sua superação, mediante a
adaptação das relações de produção ao
crescimento das forças produtivas. (p. 41)
4 - A questão da produção mercantil e da lei do valor no
socialismo
"Não se pode identificar a produção mercantil com a
produção capitalista. São duas coisas diferentes. A
produção capitalista é a forma superior da
produção mercantil. A produção mercantil só
conduz ao capitalismo se existir propriedade privada dos meios de
produção, se a força de trabalho se apresentar no mercado
como mercadoria, passível de ser comprada e explorada pelo capitalista
no processo da produção". (p.9)
"Onde há mercadorias e produção mercantil, a lei do
valor existe necessariamente. No nosso país, a lei do valor conserva
naturalmente, dentro de certos limites, um papel regulador. Será isto
bom? Não é mau, esta circunstância educa os administradores
da nossa economia no espírito da gestão racional da
produção (
) ensina-os a melhorar sistematicamente os
métodos de produção, reduzir os custos da
produção, realizar o cálculo económico e procurar
que as empresas sejam rentáveis. (
) O mal está no facto de
os nossos administradores económicos e planificadores, com poucas
exceções, estarem pouco familiarizados com a ação
da lei do valor e não saberem levá-la em conta nos seus
cálculos". (p. 11 e 12)
No nosso sistema económico, a esfera de ação da lei do
valor está rigorosamente limitada e enquadrada. É precisamente
isto que explica o facto "surpreendente" de que, apesar do
crescimento ininterrupto e impetuoso da nossa produção
socialista, a lei do valor não conduz a crises de
sobreprodução, enquanto nos países capitalistas essa mesma
lei do valor, conduz periodicamente a crises de superprodução,
apesar dos baixos ritmos de crescimento da produção. (p. 13)
5 - As cooperativas e a nacionalização
"No que respeita aos pequenos e médios produtores individuais,
deve-se promover gradualmente a sua associação em cooperativas de
produção. Manter por um certo tempo a produção
mercantil (a troca através da compra e venda), como a única forma
aceitável para os camponeses de relações económicas
com a cidade, e desenvolver amplamente o comércio soviético,
estatal e cooperativo-kolkhoziano, banindo todo o tipo de capitalistas da
circulação de mercadorias. (
) Os kolkhozes não
aceitam outras relações por isso, a produção
mercantil e circulação de mercadorias são atualmente
tão necessárias". (p. 8 e 9)
"Alguns camaradas pensam que basta simplesmente nacionalizar a propriedade
kolkhoziana, declarando-a propriedade de todo o povo, como foi feito, em seu
tempo, com a propriedade capitalista. Esta proposta é totalmente
incorreta e absolutamente inaceitável. A propriedade kolkhoziana
é uma propriedade socialista e não podemos de nenhum modo
tratá-la como propriedade capitalista. O facto de a propriedade
kolkhoziana não constituir propriedade de todo o povo não
significa em caso algum que a propriedade kolkhoziana não seja
propriedade socialista. (p. 54)
"Os marxistas não podem seguir esta via absurda e criminosa, uma
vez que colocaria por muito tempo o campesinato no campo dos inimigos do
proletariado. A transferência para a propriedade do Estado não
é a única, nem sequer a melhor forma de
nacionalização, mas sim a forma inicial de
nacionalização, como justamente refere Engels no
Anti-Dühring. Certamente que enquanto existir o Estado, a
transferência para a propriedade do Estado é a forma inicial de
nacionalização mais compreensível. Mas o Estado não
existirá eternamente". (p. 54)
6 - A questão da lei económica fundamental do capitalismo
"Constituirá a lei do valor a lei económica fundamental do
capitalismo? Não. A lei do valor é, antes de mais, a lei da
produção mercantil. Dizem que a lei da taxa média do lucro
é a lei económica fundamental do capitalismo contemporâneo.
Isto é errado. O capitalismo atual, o capitalismo monopolista,
não pode contentar-se com o lucro médio, o qual além do
mais tem tendência para baixar devido ao aumento da
composição orgânica do capital.
(
) Aquela que mais se aproxima do conceito de lei económica
fundamental do capitalismo é a lei da mais-valia, a lei da
formação e do crescimento do lucro capitalista. Mas a lei da
mais-valia é uma lei demasiado geral, Para preencher esta lacuna
é preciso tornar mais concreta a lei da mais-valia e desenvolvê-la
continuamente, de acordo com as condições do capital monopolista,
tendo em conta que este último exige não um lucro qualquer, mas
precisamente o lucro máximo. É esta a lei económica
fundamental do capitalismo atual". (p. 22)
"A garantia do lucro máximo capitalista (
é obtido
) por via da exploração, da ruína e da
depauperização da maioria da população de um dado
país, por via da subjugação e espoliação
sistemática dos povos de outros países, particularmente dos mais
atrasados e, finalmente, por via das guerras e da militarização
da economia nacional, que são utilizadas para garantir lucros
máximos." (p. 22 e 23)
7 - Socialismo desenvolvido e comunismo
Nas condições económicas socialistas, o desenvolvimento
económico processa-se, não através de
revoluções, mas através de modificações
graduais, em que o velho não é pura e simplesmente suprimido, mas
muda de natureza para se adaptar ao novo, (p. 32)
A emulação socialista adquiriu um carácter de massas
(
) formaram-se grupos inteiros de camaradas entre os operários,
que não só assimilaram um mínimo de conhecimentos
técnicos, como foram mais além e atingiram o nível do
pessoal técnico começando a superar normas caducas em vigor e a
introduzir novas normas mais modernas, etc. Se, a maioria dos operários
tivesse elevado o seu nível técnico e cultural ao nível
dos técnicos e dos engenheiros a nossa indústria
alcançaria um nível inacessível à indústria
dos outros países. (p. 16)
(Dizer)
que mesmo com a circulação mercantil se pode passar do
socialismo ao comunismo, que a circulação mercantil não
constitui um obstáculo a esta transição. Isto é um
profundo equívoco que nasce da incompreensão do marxismo. (p. 57)
Em apoio desta tese é mencionado Engels em Anti-Dühring.
Antes de se passar à fórmula "a cada um segundo as suas
necessidades" é preciso passar por uma série de etapas de
reeducação económica e cultural da sociedade, no decurso
das quais o trabalho se transformará aos olhos da sociedade, de meio
para apenas garantir a subsistência, em primeira necessidade vital,
enquanto a propriedade social se tornará a base inabalável e
inviolável da existência da sociedade. (p. 40)
Para preparar a passagem efetiva ao comunismo, e não apenas declarativa,
é necessário reunir pelo menos três condições
fundamentais: Em primeiro lugar, assegurar solidamente, não uma
mítica "organização racional" das forças
produtivas, mas o crescimento ininterrupto de toda a produção
social, dando prioridade ao crescimento da produção de meios de
produção. O crescimento prioritário da
produção de meios de produção é
necessário não só para garantir os equipamentos às
próprias empresas do sector, mas também às empresas de
todos os outros ramos da economia nacional, e porque sem o seu crescimento
é absolutamente impossível realizar a reprodução
ampliada. (p. 41)
Será preciso reduzir a jornada de trabalho pelo menos para seis horas e,
depois, para cinco. Isto é necessário para que aos membros da
sociedade seja concedido tempo livre suficiente para adquirirem uma
instrução multilateral. (
)
Será preciso introduzir o ensino politécnico obrigatório,
necessário para que os membros da sociedade possam escolher livremente
uma profissão e não fiquem amarrados por toda a vida a uma
qualquer profissão. Será preciso igualmente melhorar radicalmente
as condições de alojamento e elevar o salário real dos
operários e empregados no mínimo para o dobro, senão mais,
tanto por via do aumento nominal dos salários, como principalmente por
via da redução contínua e sistemática dos
preços nos produtos de consumo dos artigos de consumo geral. Estas
são as principais condições da preparação
para a passagem ao comunismo. (p. 42)
(Na) sociedade comunista, a quantidade de trabalho despendido na
produção será medida não por via indireta, nem por
intermédio do valor e respectivas formas, como acontece na
produção mercantil, mas direta e imediatamente pela quantidade de
tempo, pelo número de horas, gasto na produção. Uma
sociedade em que a produção será regulada pelas
necessidades sociais, e o cálculo das necessidades da sociedade
adquirirá uma importância primordial para os órgãos
de planificação. (p. 13)
(Uma sociedade não guiada pelo)
primado do consumo, mas da subordinação da
produção socialista ao seu objectivo principal de garantir a
satisfação máxima das necessidades materiais e culturais
sempre crescentes de toda a sociedade. (p.47)
Como conclusão
A razão para se revisitar este texto reside na densidade dos conceitos
expressos, apresentados de forma simples, direta compreensível,
porém muitos deles esquecidos ou mal compreendidos. Na sua
negação é possível encontrar algumas das causas
fundamentais do fim da URSS. E o seu autor tinha disso a noção,
sabendo que o socialismo não era ainda um sistema perfeito, seria
realizado por seres imperfeitos, e que a planificação
económica era "apenas uma possibilidade". Note-se ainda a
preocupação com o facto de que políticas erradas poderiam
conduzir ao bloqueio das forças produtivas e a
contradições antagónicas.
Mas este texto é também uma resposta cabal aos que pretendem
associar fascismo e comunismo, ou seja, ao marxismo-leninismo. Ninguém
lutou e luta mais e mais abnegadamente contra o fascismo e todas
as formas de opressão e exploração, do que os comunistas
inspirando-se nos ensinamentos trazidos pela Revolução de Outubro
e pala construção da Pátria Soviética. Comparem-se
os valores éticos expressos neste texto, entre outros, que nada
têm da verborreia balofa ou destilando ódios e ameaças, dos
lacaios dos oligarcas sejam fascistas sejam da dita democracia burguesa.
Quando Lenine morreu, em janeiro de 1923, a Rússia era um país
devastado do ponto de vista humano e material pelos crimes imperialistas e a
URSS tinha sido fundada em dezembro de 1922. Década e meia depois a URSS
era um país avançado económica, social, científica
e culturalmente. O analfabetismo, a pobreza, a fome, a doença, a
miséria moral que ainda hoje grassam sob o capitalismo
tinham sido erradicados. Diferentes nacionalidades consideravam a URSS a sua
pátria, defenderam-na abnegadamente e até ao seu fim (só
conseguido pela violência e à sua revelia).
A propaganda capitalista a que muito "bons espíritos" se
convertem, pretende que as imensas realizações da URSS foram
afinal obra de um psicopata criminoso e de uma burocracia apodrecida, como se a
capacidade da liderança, a motivação por um ideal
humanista e o entusiasmo e participação de todo um povo pudesse
ser excluído daquelas realizações.
Os caluniosos absurdos que o anticomunismo divulga servem afinal para
ardilosamente se ignorar que as megaempresas transnacionais são monstros
burocráticos que só sobrevivem à custa da agressão
e das ameaças imperialistas.
1 - Os excertos e referências dos "Problemas
" referem-se
ao texto em português em
www.hist-socialismo.com/docs/ProblemasEconomicosSocialismo.pdf
. Disponível também em
resistir.info/livros/stalin_obras_escogidas.pdf
, pág.312.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
.