por Daniel Vaz de Carvalho
1 Contradições no seio do capital
Quando Marx escreveu
A luta de classes em França
configurava
uma forma diferente de análise dos acontecimentos históricos, o
materialismo histórico, não determinada por
"personalidades" e "heróis", mas pelas
relações de produção e pela luta de classes, isto
sem que o papel de dirigentes e protagonistas deixasse de ser significativo.
É por isso que considerar Macron "um mal menor" ou Marine le
Pen (M le P) a "extrema-direita" sem que do ponto de vista marxista
isto seja explicitado, são expressões vazias de conteúdo e
portanto alienantes. Parece-nos que em vez de se repetir de forma
acrítica as formulações ideológicas que o capital
veicula, se deveria começar por analisar como se desenrola luta de
classes na UE.
O que separa aqueles protagonistas resulta das contradições do
capitalismo a nível nacional e internacional, mergulhado numa
interminável crise, suportada pelo proletariado e pelas MPME (Micro,
Pequenas e Médias Empresas), enquanto a oligarquia acumula riqueza como
nunca, desbaratada em paraísos fiscais e na especulação.
Perante a crise capitalista agravada com o euro, a França encontra-se
num processo de decadência. Desde 1999 em termos constantes o PIB cresceu
a uma média anual de 1,4%, porém desde 2008, inferior a 0,5%. A
dívida pública atinge 100% do PIB, o desemprego 10,5% em 2016. A
deriva reacionária da UE tornou a França um país
dependente, submetido aos interesses da Alemanha.
A grande burguesia financeira e monopolista tornou-se, tal como nos chamados
países periféricos, subalterna dos países dominantes e do
imperialismo como forma de defender os seus interesses. A UE e o
"atlantismo" da NATO são as suas primeiras linhas de defesa.
Esta situação faz-se em detrimento de todas as demais camadas
não monopolistas, MPME, quadros (a pequena e média burguesia) e
proletariado.
Contudo, analisando os resultados na primeira volta verificamos que o
triunfalismo europeísta não passa de fogo-de-vista para
disfarçar o seu nervosismo. Todos os candidatos se pronunciaram por
"mudanças" e os que claramente se opunham à UE e seus
tratados, apesar da manipulação mediática atingiram perto
de 50%.
2 Democracia, direita e extrema-direita na UE
Extrema-direita e extrema-esquerda (os extremismos) fazem parte da
linguística ("novilíngua") adotada para ilibar o
neoliberalismo e o federalismo "europeísta", atacando tudo o
que mexa contra estes desígnios.
No entanto, a democracia da UE esgota-se quando estão em causa os
interesses do grande capital e da finança, basta ver como se processaram
as negociações para o TTIP, em total desprezo pelos parlamentos
nacionais e pelo europeu e até por regras que obrigavam a ter em conta a
opinião expressa em abaixo-assinado pelos cidadãos. Bem dizia
Engels que "os partidos da ordem, afundam-se com a legalidade que eles
próprios criam".
A UE usa todos os meios antidemocráticos para suprimir a soberania e
portanto a democracia. Basta ver como se transformou o governador do Banco de
Portugal (e os outros) em mero funcionário do BCE, como foram sonegadas
informações que implicaram milhares de milhões de euros no
caso BANIF. Como foi e é tratada a Grécia. Como burocratas
interferem nas políticas internas dos países sem
consideração pelas opções democráticas. Como
espreitam qualquer deslize das contas nacionais para submeter o país
às suas imposições e mesmo sanções, que a
direita (não será extrema-direita?) desejaria, e não perde
oportunidade de aplaudir e fazer campanha por isso.
Após as eleições em França, Moscovici veio exigir
mais "reformas" em França; Junquer diz ser
"flexível", quanto ao mesmo tema. É o habitual papel
do
polícia (político) bom e do polícia mau na UE.
O projeto "europeísta" pretende conciliar/submeter as classes
médias e o proletariado à ideologia e interesses
oligárquicos, consolidando o domínio destes, mascarando-o com
conceitos abstratos e contraditório de democracia. Burocratas,
políticos e propagandistas exibem arrogância face aos interesses
das camadas populares que desprezam ("sindicatos
irreformáveis"). Limitam-se a seguir o que os centros de
ingerência do imperialismo determinam como "politicamente
correto", o que cai fora desta escolástica taxam de
"extremismo". Não passam de acólitos do capitalismo
internacional.
Para definir o que é extrema-direita é necessário partir
da luta de classes. O fascismo é a ditadura terrorista do grande
capital, a extrema-direita é a ditadura do grande capital com a
máscara da democracia. A UE tem sido o garante da
manutenção desta ordem á custa de todas as demais classes
e camadas não monopolistas, políticas que são de facto
extrema-direita.
O neoliberalismo associado á globalização e seus tratados
de "comércio livre" é um neofascismo, que impõe
a ditadura das transnacionais, o totalitarismo de instituições
burocráticas, sanções, ingerência, agressões.
A austeridade neoliberal é um processo de extrema-direita. Que fariam
PSD e CDS se permanecessem no governo? No seu projeto, tentar mudar a
Constituição, usando para isso as "regras europeias",
anular o Tribunal Constitucional, agravar a austeridade, liquidar mais direitos
laborais.
Políticas consideradas normais e democráticas nos anos 60 e 70 do
século passado passaram a ser de extrema-direita (ou extrema-esquerda!).
Mas por exemplo o controlo de fronteiras era uma função
básica da soberania, que os países socialistas justificadamente
praticavam, tal como o controlo sobre a imigração. Mas tal
já não choca os "bons espíritos" quando nos EUA
- e não foi nada inventado pelo Trump mesmo um turista tem de
declarar não ter afinidades com o comunismo.
O apoio ao neonazismo em Kiev, o fechar os olhos ao fascismo na Hungria,
Polónia, países Bálticos, o apoio à agressão
à Síria, à Líbia, ao Afeganistão nos anos 70
aquando na sua via para o socialismo, a diabolização de
dirigentes que defendem a soberania ou vias de desenvolvimento diferentes na
Venezuela, na Rússia, na Coreia do Norte, etc. configuram
expressões de extrema-direita, de desprezo pela vontade dos povos.
Hollande e Macron estiveram e estão entre os mais
acérrimos defensores de uma intervenção militar direta na
Síria.
Votações contrárias aos desígnios das oligarquias
são, sempre que possível, rejeitadas e atribuídas à
ignorância do "proletariado suburbano" que se deixa seduzir
pelos valores materialistas de "ter dinheiro na carteira". O
desprezo
pelas massas populares é característico dos sistemas dominados
por burocracias. São, como no Brexit, ou em França, os
ignorantes, os sem cultura que votam contra a "Europa" e o seu
"projeto". Claro que os interesses das oligarquias são sempre
nobres, tal como "nobre" o ataque aos direitos laborais e
"nobre" o facto das "empresas francesas terem pago 50 mil
milhões de euros de dividendos aos seus acionistas, um recorde".
(Renault Lambert, em
Le Monde Diplomatique,
maio.2017).
3 O Projeto Macron
È importante saber quem apoia e quem financia qualquer projeto
político. Neste aspeto Macron é apoiado em peso pela
finança pelos media controlados, mas não só. Juntaram-se
responsáveis do PCF, o secretário-geral da CGT, inclusive o Sr.
Tsipras quis dar uma prova do seu "europeísmo", talvez grato
pelo que a UE tem feito contra o povo grego. Macron foi considerado um
democrata e M le P uma protofascista.
Na sua intervenção inicial exibiu o requentado catálogo
das promessas e habituais boas intenções sem conteúdos
concretos exceto os que são desde logo negados pela
manutenção da ordem oligárquica existente e a
participação ativa nos objetivos imperialistas.
Vagas declarações quanto a reformas, a habitual melodia
encantatória com que se procura seduzir e desmobilizar as massas
trabalhadoras, são acompanhada de ameaças. Veja-se por exemplo, a
propósito do Brexit,
Hollande, dizendo que o Reino Unido "não pode ficar numa
situação mais favorável fora da UE do que dentro".
Espantoso em termos democráticos? Claro que não quando nos
referimos à UE.
Diz Macron que entre as suas prioridades está "liberalizar o
trabalho", ou seja, a agenda neoliberal de supressão de direitos
laborais. Passado o período eleitoral, fortalecido pela
votação obtida, à custa de certa esquerda, apoiantes e
comentadores mobilizam-se contra os sindicatos franceses,
"irreformáveis".
O que Macron pretende é mais liberalismo, mais
precarização da força de trabalho, mais
globalização neoliberal e federalismo europeu gerido na
concertação entre Berlim e Paris. Os
"europeístas" vendem este objetivo ao nível das
crenças religiosas, à margem de qualquer análise.
Macron representa as classes que defendem a manutenção das
estruturas capitalistas implantadas na UE, mesmo que admitam a necessidade de
"reformas", a habitual cosmética para imporem a sua agenda:
concentração de poder, decisões tomadas por burocracias
que se assumem como elites. Decisões que resultam da
concertação entre as várias forças do grande
capital. Governos que se limitam a controlar o aparelho estatal, sob a
vigilância de autoridades burocráticas, recebendo da oligarquia
orientações diretas (por ex. Bidelberg) ou indiretas
("entidades independentes", analistas e comentadores dos media).
4 O Projeto Marine le Pen
M le P levou a FN para o centro do espectro político, aproximando-se das
teses gaulistas. Afastou-se da origem pró-fascista da FN conduzida pelo
pai e procura captar não só o chamado centro político,
como o proletariado, e a pequena burguesia das MPME. Sob o ponto de vista
económico defende um "estado estratega" na base do
keynesianismo.
M le P pretende que o seu projeto não é de esquerda nem de
direita, é dos "patriotas". Esta tese é assim um
projeto de conciliação e classes, que radica na visão que
De Gaulle sempre teve da sociedade, com o seu "capitalismo popular"
;.
Defende uma democracia direta em que as grandes opções nacionais
sejam apoiadas por referendo. É mais um ponto de contacto com o
gaullismo. Apesar de terem já sido expulsos das suas fileiras elementos
que expressaram afirmações racistas, a FN reúne tal como o
gaullismo gente que vai da extrema-direita, até próximos do
centro-esquerda, Marine diz que isso é normal, "não somos
uma seita", é a união dos "patriotas". Claro que
acima das classes.
A sua proposta no essencial tenta resolver as contradições do
capitalismo financeiro e transnacional, através do nacionalismo
defendendo a burguesia nacional. Soberania de fronteiras, legislativa
nenhum poder estrangeiro, leia-se UE, será superior ao poder
constitucional francês, soberania monetária (fim do euro, pelo
menos na circulação interna).
Estado estratega, de acordo, mas no interesse de que classes? A sua
"união nacional" de "patriotas" pretende
derrotar a
ingerência da UE e recuperar a plena soberania da França. Esta
"união" é defendida no sindicalismo, numa
espécie de corporativismo entre patronato e trabalhadores, unidos com
interesses idênticos, contra o inimigo comum a: UE, o seu totalitarismo
burocrático, a libertação da tutela de Berlim sobre a
França.
A qualificação de M le P como "a extrema-direita"
serve
contudo de álibi para condicionar as massas e viabilizar pela
manipulação os projetos europeístas associados ao
neoliberalismo.
Grande parte das suas propostas são comuns às de Mélenchon
(neste caso até de forma menos clara) e podem ser consideradas de
"esquerda", isto é, social-democratas
Claro que
não agrada ao imperialismo vigente a atitude anti NATO, a defesa de
relações normais com Rússia, as críticas à
intervenção na Síria contra Bashar-al-Asssd, contra
Kadhafi na Líbia (logo na sua ocorrência). Assim é muito
mais simples acusa-la de "extrema-direita" que concretizar uma
análise e um combate politicamente consistente.
M le P tem uma política de direita. Pode dizer-se que não iria ou
não vai fazer muito do que diz. Claro que não. As suas
críticas à finança e a intenção de a
combater, são dificilmente concretizáveis dentro dos seus
critérios, se é que credíveis. Porém, os
"valores" que Macron exibiu contra o proletariado e a favor da
oligarquia estão, parece-nos, muito mais próximas da
"extrema-direita".
5 - Posicionamentos de esquerda
Certa esquerda e o seu "eurocomunismo" (o que quer que isto fosse),
perdeu ou desistiu de dar voz à superação do capitalismo e
a uma ação revolucionária, reduzindo-se à tese do
"mal menor".
A aliança entre o capital monopolista e financeiro a nível
internacional coloca-se em conflito direto com as aspirações das
massas populares e as diversas camadas e sectores da burguesia e das classes
médias. Na ausência de um partido revolucionário, a luta de
classes acaba por centrar-se nas contradições dentro da
própria burguesia.
Mélenchon, conseguiu reunir em pouco tempo apesar de sabotado pelos
media, grande apoio das massas populares. Refira-se que grande parte das suas
propostas tinham pontos comuns com as das de M le P. Por pouco não
passou á segunda volta.
Macron quer agora "unir a França" por alguma
razão todos querem! a questão é à volta de
que projeto. Macron, à volta das teses que falharam rotundamente,
procurando ir mais longe no neoliberalismo de Hollande. Macron foi
também o álibi para os que abandonaram a
mobilização das massas populares para verdadeiras
transformações sociais. Macron ao contrário de M le P
não lhes vai exigir que se posicionem.
Para Engels, a luta pela democracia era parte inseparável da luta pelo
comunismo, condição do combate por uma sociedade socialista, esta
a real solução para concretizar as aspirações dos
trabalhadores e do povo em geral.
Numa perspetiva marxista qualquer forma de governo reflete os interesses de uma
ou várias classes sociais. Não existe democracia "pura"
;
à margem das classes como pretendem o reformismo e o revisionismo.
Transformar a diferenciação entre Macron e M le P num debate
sobre democracia ou falta dela é passar ao lado da
agudização das contradições entre as diversas
classes e camadas sociais no capitalismo atual. É enfim, ter perdido a
capacidade de ter uma voz autónoma à esquerda neste conflito de
direitas.
18/Maio/2017
Este artigo encontra-se em
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