O derrube do muro de Berlim (09/Nov/89)
por Daniel Vaz de Carvalho
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A queda da RDA atingiu-me duramente, mas, tal como muitos outros companheiros
de luta, não perdi a convicção de que o socialismo
é a única alternativa para uma sociedade mais humana e mais
justa. Desde a existência do capitalismo que os comunistas pertencem aos
perseguidos neste mundo, mas não pertencem aos sem futuro.
Hoje é considerado moderno etiquetar comunistas íntegros de
estalinistas.
Erich Honecker,
Memórias da Prisão
[1]
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1 Uma idiótica euforia
Em 30 de setembro de 1938, o primeiro-ministro francês Daladier regressa
a Paris, vindo de Munique, após ter celebrado o acordo que entregava aos
nazis uma parte da Checoslováquia. Ao sair do avião uma
multidão espera-o com cartazes que festejavam o acordo: "a paz
tinha sido salva". Daladier olha-os espantado, esperava ser vaiado, e
murmura: "Idiotas
se eles soubessem."
Esta cena faz evocar a euforia, com raias de histerismo, que percorreu as
hostes anti-marxistas desde a extrema-direita a uma dita extrema-esquerda (do
anarquismo ao trotsquismo) juntando-os num triunfalismo inconsequente. Na
realidade, tal como em Munique se preparou a entrega aos nazis do
domínio sobre a Europa, o derrube do Muro de Berlim preparou a entrega
aos EUA, como líder do grande capital transnacional, do domínio
mundial.
Se a direita exultava com a derrota do seu arqui-inimigo, a social-democracia
acompanhava-a fantasiando o enterro definitivo do "comunismo"
propagandeando "um socialismo de rosto humano". Na sua cegueira
acreditavam que afastado o "espectro do comunismo" (Marx) que os
afligia: as massas populares pertenciam-lhe política e sindicalmente.
Era o "fim da História" e a "paz social"
através da colaboração de classes.
Sem o mínimo de contraditório as massas foram submersas pela
propaganda que prometia a "economia social de mercado" ou a
"economia de mercado com justiça social".
Contudo, o derrube do Muro de Berlim e o fim da URSS vieram exaustivamente
confirmar as teses marxistas-leninistas: o capitalismo humanista não
existe. Os avanços sociais e civilizacionais conquistados pelos povos
foram somente obtidos à custa de duras lutas e sacrifícios,
contra capitalismo.
O que se passou a seguir demonstra, por um lado a incapacidade de a
social-democracia, presa nos seus preconceitos e calúnias, e incapaz de
avaliar as consequências das suas orientações para os
povos, os Estados, para a própria democracia. Por outro lado, mostra
como a sua degradação ideológica levou a cedências
quase inimagináveis e compromissos com a exploração mais
desbragada, a corrupção, a agressão imperialista,
até com ditaduras fascizantes.
Nos países ex-socialistas toda uma série de oportunistas, de
especialistas neoliberais, ONGs ao serviço do imperialismo, de
indivíduos educados nos EUA, alguns obtendo dupla nacionalidade,
apossarem-se desses países, tal como o crime organizado. Foi
então imposta a democracia oligárquica que se traduziu numa
inaudita regressão civilizacional.
A devastação em termos de direitos humanos foi silenciada pela
incessante propaganda de calúnias contra a realidade socialista.
Milhões de desempregados foram deixados sem apoio, jovens desesperados
abandonaram os seus países para irem trabalhar no estrangeiro em
condições muitas vezes humilhantes e de exploração
brutal, quando não à mercê das máfias. Os
indicadores de saúde e esperança de vida da URSS caíram
quase de imediato para valores do chamado terceiro mundo.
O neoliberalismo devastou instituições culturais e
artísticas, escolas e universidades, submetidas aos critérios da
mercantilização neoliberal. Vários dos países
ex-socialistas, são hoje dominados por demagogos da extrema-direita e
neofascistas que, com a cumplicidade e apoio da UE e dos EUA, se aproveitam da
miséria criada pela instauração do capitalismo.
Por detrás do derrube do Muro de Berlim, está patente a atitude
de traição de Gorbatchov, citando Lenine para melhor destruir o
seu partido, assumindo-se depois como social-democrata e confessando serem
aquelas citações uma estratégia. No seu discurso do
70º aniversário da Revolução de Outubro, Gorbatchov
caracterizou a industrialização socialista, a
colectivização da agricultura e a revolução
cultural como acontecimentos de dimensão histórica para o
reforço da potência soviética. Mais tarde denegriu e
renegou o que dizia defender.
[1]
Gorbatchov, desprezado no seu país, publicou recentemente, um livro
"New Russia", fazendo coro com o "ocidente" (leia-se NATO)
contra Putin. Aí cita Lenine: "não se pode ultrapassar o
povo". Foi o que ele e outros como ele fizeram.
Quando a URSS foi dissolvida e o socialismo liquidado, de 70% a mais de 80% da
população (conforme as Repúblicas) desejavam a
manutenção da URSS; 85% o socialismo. Também o povo da RDA
não foi consultado sobre a anexação da sua pátria
pela RFA, que Gorbatchov acordou nas costas do povo e dos órgãos
soberanos da RDA.
Quando se entra na via da traição não se para... A
"perestroika" acabou rendida ao neoliberalismo e ao imperialismo.
Exemplo, foi a figura patética de Chevarnadze (último ministro
dos Negócios Estrangeiros da URSS) que acabou afundando-se numa guerra
civil na Geórgia de que se tornara presidente, alimentada pelos seus
amigos da NATO.
Vivemos hoje as consequências do que aconteceu então. A
social-democracia está morta rendida ao neoliberalismo fascizante e ao
imperialismo. O mundo enfrenta intermináveis guerras de agressão,
crises económicas, tragédias sociais e humanitárias. O
perigo de uma confrontação global é uma realidade
eminente.
O imperialismo impôs um intolerável totalitarismo pretendendo
aplicar a todos os povos o mesmo modelo económico, social e
político ao serviço dos interesses oligárquicos, a
globalização capitalista, sem qualquer consideração
pela vontade e interesses dos povos. Um modelo imposto pelo poder militar
(agressões, invasões), político
(conspirações, ingerências) e económico
(sanções).
Na fronteira de Berlim foram mortas 74 pessoas, cidadãos aliciados nas
redes organizadas pelos serviços secretos ocidentais para fugirem, por
razões políticas ou por delitos comuns. E. Honecker lamentou-o
até ao fim. Porém quantos trabalhadores, estudantes, etc, foram
mortos pelas polícias em manifestações na Europa
Ocidental? Nos EUA foram mortas 500 pessoas só em 2015, alegadamente por
não acatarem ordens da polícia. (
US Police Killed Over 500 People This Year
). Quantos foram e são mortos ao tentar passar a fronteira entre os EUA
e o México? Isto, sem contar com os milhões de vítimas do
colonialismo, das guerras de agressão, ditaduras, para impor o
capitalismo.
O socialismo não é uma sociedade perfeita, nunca o marxismo o
afirmou, representa a natural evolução e progresso da sociedade
humana. É construído por homens imperfeitos em
circunstâncias muitas vezes dramáticas. De facto, em parte alguma
é possível uma democracia perfeita enquanto houver imperialismo.
2 - As "Memórias da Prisão" de Erich Honecker
Após o fim da RDA Honecker, foi preso, simbolicamente regressando
à mesma prisão, Berlim-Moabit, onde em 1935 os nazis o tinham
encarcerado.
A felonia do imperialismo manifestou-se desde logo na
criminalização da RDA, e de militantes íntegros. Isto
apesar de em 1987 Honecker, a convite do chanceler Kohl, ter visitado a RFA,
tendo sido tocado o hino da RDA e rendida homenagem à sua bandeira. De
seguida, Kohl fez uma vista não oficial à RDA.
Doente, com cancro, em Moscovo, o traidor Ieltsin revelou mais um traço
da baixeza do seu carácter ao extradita-lo para a Alemanha. Pretendia-se
apresenta-lo, debilitado e vergado ao infortúnio, perante o capitalismo
triunfante.
Tal não aconteceu, Honecker em 1993 perante o tribunal que o julgava,
fiel aos ideais pelos quais lutou desde a juventude, assumiu todas as
responsabilidades pela defesa da RDA como Estado soberano, demonstrou a
superioridade do socialismo e denunciou o julgamento como mais um
episódio nos "quase 190 anos de perseguições da
burguesia alemã aos comunistas, a todos os lutadores pela paz e pelo
socialismo"; transformou os acusadores em réus.
Os objetivos da direita e da social-democracia falhavam, optaram por
silencia-lo e o julgamento terminou com a alegação do seu estado
de saúde, como se tal não estivesse evidenciado desde o
início. Faleceu em 1994 no Chile (pátria do seu genro) na
companhia deste, da mulher e da filha.
Face aos conspiradores e traidores, Honecker fica como um exemplo do
revanchismo e da perseguição aos comunistas que se seguiu e
prossegue nos países ex-socialistas. Os textos seguintes são
baseados nas "Memórias da Prisão", de Erich Honecker.
[1]
Acerca do socialismo
A RDA não pode ser apagada da História. As
realizações da RDA ficarão na memória do povo e
influenciarão no futuro. A comparação com a democracia
burguesa também devia ser abertamente discutida a partir dos exemplos da
RDA e da RFA. Na RDA não havia desemprego em massa, mas sim pleno
emprego, não havia sopa dos pobres, mas sim comida para todos,
não havia falta de vagas na formação profissional ou na
educação.
Na RDA havia 9,5 milhões de postos de trabalho. A
desindustrialização destruiu metade. Foram vítimas do
lucro que encheu abundantemente os bolsos do grande capital. Muitas pessoas
encontraram-se na pobreza e em situação de necessidade em
consequência desta barbaridade. Depois da anexação pela
RFA, desapareceu o que era querido aos trabalhadores da RDA: a segurança
em matéria social garantida pelo socialismo.
A RDA era um país com uma indústria e uma agricultura modernas,
dispondo de uma ampla rede de proteção social. A agricultura da
RDA conseguia assegurar o abastecimento alimentar interno e exportar alimentos.
Não há nenhuma razão nem ninguém tem o direito de
denegrir as realizações dos trabalhadores, por muitos erros e
insuficiências que tenham afectado o socialismo e que foram objecto de
debates. Como os desequilíbrios no desenvolvimento económico, os
problemas quanto a produtos de consumo, a escassez de matérias-primas, a
incapacidade da indústria ligeira dar resposta às necessidades,
os problemas de abastecimento de bens de consumo, a política de
preços, a qualidade dos produtos.
Foi um erro não se ter dado rápido seguimento às propostas
apresentadas no Plenário realizado em 1988, no sentido de uma maior
participação das pessoas na gestão direta da sociedade,
das empresas, dos bairros. Contudo, pretender que não havia democracia
no socialismo ou até mesmo afirmar que a democracia burguesa é
superior à democracia socialista não corresponde nem à
verdade nem às realidades da sociedade capitalista, que estão
à vista de todos.
É necessário romper o véu da conversa sobre uma democracia
acima das classes. Só pode haver uma verdadeira
democratização se as pessoas que criam riqueza forem as
proprietárias dos principais meios de produção e da terra.
A democracia burguesa, onde funciona, reduz-se a espaços de liberdade
conquistados ao capital pela luta dos trabalhadores. Quando o poder está
nas mãos do capital, o povo é tutelado.
Foi subestimada a influência de inúmeras estações de
televisão e rádio sobre o comportamento das pessoas, bem como os
perigos resultantes da ação da RFA no seio da NATO.
A RDA sempre defendeu uma política de paz e coexistência
pacífica, deu um grande contributo para afastar o perigo guerra na
Europa. Com a sua liquidação, Honecker perguntava então de
forma premonitória: quanto tempo durará esta paz? Será que
a França se deixará esmagar pelo abraço da Alemanha?
A anexação da RDA pela RFA
Apesar dos bem pagos hinos entoados ao capitalismo, ninguém pode negar
seriamente a situação extremamente difícil em que se
encontram milhões de operários e empregados, cientistas e
artistas, sejam eles defensores ou adversários da "economia de
mercado".
A Treuhand, organismo criado "para a boa administração das
empresas" estatais não foi senão uma
instituição para desbaratar o património do povo,
entregando as empresas do Estado a preços de saldo aos trusts
capitalistas ou destrui-las para eliminar concorrentes. A
liquidação das empresas públicas da RDA foi um polpudo
negócio para os capitalistas
O desemprego é uma tragédia para todos. Ninguém o conhecia
na RDA. Imagine-se qual teria sido o resultado se então o chanceler Kohl
tivesse declarado abertamente aos eleitores que haveria quatro a cinco
milhões de desempregados, as rendas de casa aumentariam de três a
dez vezes e que grande parte das prestações sociais seria
eliminada.
Não estava em causa derrotar um "poder pessoal", derrotar
"a dominação do Politburo", mas sim expropriar as
empresas pertencentes ao povo, liquidar as cooperativas agrícolas,
restituir as terras aos grandes proprietários, eliminar a propriedade
socialista. Tratou-se da liquidação da RDA, das suas
instituições científicas, dos equipamentos de
saúde, de tudo o que estava relacionado com o Estado da RDA.
O poder do capital foi pura e simplesmente restaurado. Era isso que estava em
causa. Ninguém pode negar que o guião seguido em todos os
países socialistas consumado na contra-revolução foi
dirigido a nível internacional. O mesmo guião levou à
destruição dos partidos marxistas nestes países.
As traições
Como qualificar de outro modo aqueles que trabalharam para a
restauração do sistema político e económico do
capitalismo sob a capa da democracia burguesa? Dê-se a volta que se der,
tratou-se da reconquista do poder da burguesia perdido 40 anos antes.
Sob a bandeira da luta contra o "estalinismo" conduziu-se a luta
contra o socialismo. Todos os "reformadores" renunciaram ao
socialismo, dando ouvidos ao "grande reformador" que, em seis anos,
conseguiu desarmar o seu partido, o PCUS, de que era secretário-geral, e
conduzir a URSS à sua aniquilação.
A RDA foi sacrificada no altar da "casa comum europeia", pela qual
Gorbatchov lutava com tanto afinco. Isto só foi possível porque
houve elementos dirigentes da RDA que objectivamente contribuíram para a
eliminação do socialismo. Entre estes havia traidores
conscientes, que se vangloriaram de terem aberto o caminho à
anexação da RDA, utilizando os seus contactos com a RFA em
concertação com o círculo de Gorbatchov. A
"renovação" da RDA traduziu-se apenas na sua
anexação pela RFA capitalista.
Uma desmesurada campanha de calúnias contra as principais personalidades
dirigentes, uma criminalização vinda das próprias fileiras
conduziu a uma ampla dessolidarização, facilitou às
forças reacionárias da RFA a condução da sua ampla
campanha de vingança contra os comunistas e outros elementos de esquerda.
Porque se organizou uma caça às bruxas contra todos os
colaboradores do partido e do aparelho do Estado, contra a segurança de
Estado, contra os soldados e oficiais do Exército Nacional Popular,
contra as tropas fronteiriças, contra professores, médicos,
cientistas, jornalistas e artistas? Tudo isto agravou ainda mais a
miséria na RDA. Centenas de milhares de famílias com as suas
crianças foram lançadas numa situação de desespero.
Aqueles que desfiguraram a história do socialismo, acentuando erros e
deficiências, reclamando-se eles próprios de comunistas sem
defeitos, tendo embora virado costas ao partido, contribuíram para a
desagregação, dificultaram o trabalho ideológico junto da
juventude. Foi assim que muitas pessoas perderam as suas
convicções nos ideais socialistas.
Porém, continua sem se saber o que seria o tão invocado
"socialismo democrático". O afastamento decisivo do comunismo
significa não só a negação dos ideais comunistas,
mas a negação das necessárias transformações
das relações de propriedade.
O futuro pertence ao socialismo
Com a destruição do socialismo na Europa, o mundo tornou-se
completamente caótico e desorientado. Os EUA, autoproclamados
polícias do mundo, atuam a seu bel-prazer e impõem a "nova
ordem mundial" a golpes de bombas e mísseis.
A tão glorificada nova liberdade priva o indivíduo da
mínima segurança. A "livre" economia de mercado penetra
em todos os domínios. As conquistas sociais foram condenadas a
desaparecer.
Numa nova sociedade tem de haver um lugar para cada um dos seus membros,
não obstante todas as evoluções tecnológicas e
outros condicionalismos. Antes de mais isso significa um posto de trabalho para
cada um. O capitalismo é incapaz de o garantir, isso é hoje mais
evidente do que nunca. A corrida aos lucros fixa os limites à sociedade
capitalista. Quer se queira quer não, no mundo capitalista atuam as leis
que Marx e Engels revelaram e provaram cientificamente em toda a sua obra.
Com a fé infantil de que "o mercado tudo soluciona" não
se resolve nenhum dos problemas da Humanidade. Por isso inevitavelmente novas
forças sociais, alcançarão e organizarão novas
relações sociais.
"Ou a humanidade é conduzida ao abismo pelo capitalismo ou
vencê-lo-á. A última hipótese é a mais
plausível, porque os povos querem viver. Apesar de todas as dificuldades
e perigos, apesar da situação sombria, estou e estarei confiante.
O futuro pertence ao socialismo".
09/Novembro/2016
[1] Erich Honecker (1912-1993) operário e filho de operários,
membro
da Juventude Comunista alemã em 1926. Estudou em Moscovo no
Colégio Internacional Lenine, em 1930 e 1931, regressando à
Alemanha em 1931. Foi preso pelos nazis em 1935 sedo libertado no fim da guerra
em 1945. Eleito secretário-geral do Partido Socialista Unificado da
Alemanha (PSUA) em 1971; eleito Presidente do Conselho de Estado em 1979.
Textos completos em:
Notas da prisão (I)
Notas da prisão (II)
Notas da prisão (III)
Notas da prisão (IV)
Honecker acusa
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