A degradação ideológica da direita: três componentes
(3)
por Daniel Vaz de Carvalho
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Um homem de cultura é simplesmente aquele que tem consciência da
era em que vive. Essa tomada de consciência exige uma ampla
compreensão da História da humanidade, não apenas para bem
do conhecimento, mas para permitir ao homem de cultura perceber a
inevitabilidade do progresso histórico e até contribuir para ele.
[1]
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3 Obscurantismo, a cultura como "não utilidade"
Podemos dizer que o objetivo principal do obscurantismo é impedir os
trabalhadores de reconhecerem as relações económicas e
sociais, as relações de produção, em que
estão inseridos. Toda a economia política do sistema capitalista
está baseada na alienação do conceito de valor, na
alienação dos resultados do trabalho: "Trabalho alienado,
significa vida alienada, ser humano alienado, ser humano desapossado."
[2]
O obscurantismo está ao serviço da alienação.
O ódio à cultura manifesta-se no ataque aos professores, na
programada destruição do ensino público igualitário
e inclusivo, no abandono do apoio das atividades culturais para ficarem
entregues ao "mercado". Nos cortes de verbas para a
investigação, alegadamente para serem entregues a empresas. No
desprezo com que trata os investigadores, ditos "bolseiros", em
condições de precariedade, insegurança e salários
de miséria para as suas funções e
qualificação.
Para o governo do PSD-CDS, cultura é "despesa",
educação é "despesa", a
investigação é "despesa", tal como o são
a saúde ou eliminação da pobreza. São estas afinal
as "gorduras do Estado" de que farisaicamente falavam. Em
contrapartida, baixar o IRC, subsídios e benefícios fiscais ao
grande capital passam a ser "investimento".
As universidades debatem-se com falta de verbas e funcionários. A
política é serem postas em concorrência umas com as outras
e funcionarem de acordo com os interesses das empresas. Para a
direita/extrema-direita no governo o quadro social foi perdido, procurando-se
que a cultura seja submetida aos interesses do capital.
O grande matemático e democrata (um comunista) Bento Jesus
Caraça, no seu texto "A cultura integral do individuo",
fala-nos da cultura globalmente entendida como fator decisivo na capacidade de
evoluir e melhorar humana e materialmente. Eram estas as teses a ser ensinadas
e divulgadas nas escolas. Mas não, o que temos são as doutrinas
utilitaristas e elitistas do ministro Crato.
Propagandista do ultraliberalismo e do governo, o sr. Camilo Lourenço
afirmava que os professores de História não são
necessários, pois a História não tem utilidade para a
economia. Muito provavelmente foi isto que aprendeu nos cursos que frequentou
nos EUA
[3]
A importância das disciplinas ditas de humanidades é fundamental
para o desenvolvimento económico. A produção e o seu
desenvolvimento implicam um trabalho de equipa. A necessidade de
compreensão dos fatores humanos é um dado fundamental da
gestão e do progresso. Não entende-lo é uma
boçalidade.
A especulação, os "mercados", são totalmente
alheios à condição humana, as suas
considerações e estratégias estão num vazio moral:
homens e mulheres vistos como coisas, peças de uma máquina para
dar lucro, em que a sua "utilidade" se valoriza na medida em que se
reduzam os seus custos salariais. É a moral da "herren volk",
a moral de senhores, uma moral da propriedade e do dinheiro para a qual
direitos laborais são "privilégios" e a
Constituição não é para aplicar no que prejudique a
oligarquia.
O desprezo pelos interesses do país e do seu povo é justificado
porque "Portugal é como alguém que esteve a beber durante 10
anos e que depois entra o médico e diz você vai ter de deixar de
beber e fazer dieta. Antes sentíamo-nos bem. Estando sóbrios a
falta da bebida faz-nos sentir mal. (Agora) é preciso cortar mais para
pagar juros"
[4]
Os gregos acreditavam que os deuses enlouqueciam os mortais para os levar
à perdição. Pelos vistos, os "mercados"
"embebedam-nos". O obscurantismo faz o seu caminho, deformando a
realidade, usando a boçalidade, um humor soez, inconsequente, agressivo
na ausência de argumentos. É uma estratégia típica
da extrema-direita.
Para a direita/extrema-direita a bebedeira ter-se-á iniciado no 25 de
Abril: "Há 40 anos que andamos nisto"
[5]
É como quem diz: queriam saúde, educação
pública para todos? Emprego com direitos? Salários e reformas
decentes? Tudo isto como manda a Constituição? Só podiam
estar bêbados! No capitalismo isso é para quem pode e a prioridade
é para a agiotagem e a especulação.
Sim, para esta gente agora estamos sóbrios, cumprimos os "nossos
compromissos". Em 2009 pagámos de juros 4 800 M, de 2014 a
2018 está previsto pagar em média cerca de 7 800 M e
até 2019 cortar mais 7 000 M de austeridade, tudo para satisfazer
uma corrupta e insaciável finança. Entretanto com a nossa
"sobriedade" a dívida passou de 94% para 133% do PIB. Quanto
mais pagamos mais devemos!
Os trabalhadores com contratos de trabalho são diabolizados. É
afirmado que "os transportes públicos funcionam bem para quem
lá trabalha, com bons salários, reformam-se cedo. Numa empresa
privada é preciso agradar aos clientes, têm de ser competitivos:
numa empresa pública é diferente: os incentivos em empresas
públicas são para quem trabalha lá porque são os
que podem fazer greve. Quando há tanta gente que se emprega no Estado
não há incentivo a que se trabalhe bem.
[4]
O ódio aos trabalhadores e seus direitos revela-se na boçalidade
e na mentira. As lutas dos trabalhadores do sector privado são
escamoteadas da opinião pública tal como antes do 25 de Abril.
Escondem-se lutas travadas nas indústrias do papel, na alimentar,
metalurgia, material elétrico e eletrónico, na têxtil etc.
Nas cantinas, nos hotéis, nos correios, nas empresas privadas de
transporte de passageiros, na comunicação social, etc. Tal como
as lutas pelos baldios, dos produtores de leite, dos vitivinicultores do Douro,
dos estudantes, etc.
Escamoteia-se que as empresas privadas de transportes públicos
são sorvedouros de dinheiros públicos, enquanto adequados
financiamentos e compensações são negados às
empresas públicas. Propagandeia-se a superioridade da iniciativa privada
um mito desmentido pelas sucessivas fraudes e falências bancárias,
como nos casos GES, BPN, BPP, BANIF. Supostos sucessos são feitos
à custa do Estado, como as PPP, a GALP, a REN, a ANA, a EDP.
[5]
A despesa com PPP atinge 1,6 mil milhões em 2014, 1,8 mil
milhões em 2015!
O obscurantismo, promove o ódio ao que é público e
coletivo: tudo deve ser privatizado e gerido de acordo com os interesses do
grande capital. Ignora a corrupção e as ilegalidades na banca,
afirmando-se que há corrupção porque o Estado tem tanto
peso, quando é o resultado da captura dos interesses públicos
pela oligarquia monopolista e financeira. Como foi divulgado, 25 elementos do
GES/BES fizeram parte de governos. Isto sem contar com deputados e outros
cargos políticos. No BPN estava alojada toda uma clique do PSD.
Enquanto a miséria aumenta, centenas de milhares de famílias
vêm reformas, salários, contas bancárias penhoradas por
dívidas, para a direita/extrema-direita finalmente «estamos a viver
de acordo com as nossas possibilidades» afirmando-se que a economia deve
ser "libertada do peso crescente do Estado Social".
A economia tem é de ser libertada da livre transferência de
capitais e rendimentos, libertar-se do garrote do euro e dos
"paraísos fiscais", paraíso para os oligarcas, inferno
para a democracia e os cidadãos. A título de
subvenções públicas os apoios estatais em 2012 a empresas
e instituições atingiram 2 241 M. Os
"estágios" são mais uma forma dos contribuintes
subvencionarem grandes empresas com trabalho a custo zero, à parte uma
irrisória verba para transporte. Com outros critérios do BCE
poderíamos poupar por ano 4 a 5 mil milhões de euros de juros.
Exemplo do obscurantismo vigente, é afirmar que um país deve ser
gerido como uma boa dona de casa faz. Falso. Ignora-se o que sejam
finanças públicas, o papel do OE na economia e a possibilidade de
um país criar moeda, o que não acontece à dona de casa.
Claro que na UE isso foi entregue *a banca privada, via BCE, sem qualquer
justificação teórica e desastrosas consequências
práticas orientando o crédito para as atividades especulativas.
Se a propaganda diz que a economia política deve ser feita à
medida da "dona de casa", para que são necessários
pomposos títulos académicos? Para entregar o país
às transnacionais e estas dizerem para onde temos de ir e como?
O obscurantismo serve-se da mentira. Os mercados são considerados
entidades absolutas, equilibradas e racionais. Na realidade o que existe
são "relações de mercado" correspondentes a
determinadas relações de produção e determinadas
formações económicas. Mascara-se a existência de
monopólios e monopsónios. Os fornecedores das grandes cadeias de
distribuição são sujeitos a constrangimentos e
pressões para fornecerem os seus produtos. Os descontos e
promoções "oferecidos" são pagos pelos
fornecedores. Um estudo da
Corporatewatch UK
mostrava que os oligopólios da grande distribuição chegam
a absorver 88%.do preço final, cabendo apenas 12% à
produção;
Os "mercados" são dominados pela oligarquia, tendo ao seu
serviço os políticos neoliberais da troika externa e da interna
do "arco da governação". Afirmar que "o mercado
somos todos nós", é um exemplo de obscurantismo. Omite-se
que na "economia de mercado" há o que se designa por
"poder de mercado", o poder financeiro detido pelo grande capital.
A defesa do euro e dos tratados da UE são exemplos de obscurantismo e
manipulação: procura-se mascarar pela coação e o
medo a catástrofe em curso. É o argumento dos fanáticos
derrotados pela realidade. Não admira, pois, que tal como no fascismo,
que encomendava artigos elogiosos a jornais estrangeiros, o governo tenha pago
a técnicos da OCDE um texto de propaganda apresentando-o
falsamente como "um relatório da OCDE"!
A direita/extrema-direita não se conforma com o regime
democrático. Os ataques ao TC são a tentativa de liquidar a
Constituição, invocando tratados europeus e, claro, os
"mercados", para destruir pela raiz o projeto libertador do 25 de
Abril. O sr. C. Lourenço afirmava na TVI em tom indignado contra o TC,
que "a troika quando cá chegou devia ter dito: meus senhores,
façam favor de mudar a Constituição". Para satisfazer
a agiotagem internacional Portugal teria de deixar de ser um Estado de direito
democrático.
Para este programado golpe de Estado, a direita/extrema-direita, reivindicava
uma maioria, um governo, um Presidente. Pela mentira e pela
alienação promovida pela comunicação social
controlada, obtiveram-no. Concluem que não basta: precisam de um TC ao
seu serviço. Porém, quando o tivessem, chegariam à
conclusão, tal como no fascismo, que não dispunham do povo,
quereriam então implementar uma nova PIDE/DGS.
Com argumentos de um obscurantismo digno do pensamento medieval, uma proposta
do PCP para que a Constituição fosse ensinada nas escolas foi
rejeitada pela maioria: os alunos não estariam preparados para a
entender
A boçalidade chega ao ponto de ser afirmado que
países que não têm Constituição funcionam
melhor que o nosso. Seria bom dizer quais
Se se referem ao Reino Unido,
fazem por ignorar que na Inglaterra a Magna Carta foi instituída no
século XIII.
Onde estão os jovens dos anos 80 e 90 que acreditaram nas tretas dos
partidos da troika sobre a "modernidade", o sindicalismo que
"não queria saber dos jovens", o crédito fácil e
barato da "Europa" e do euro, que dava milhões para consumir o
que "livremente" era importado? Muitos deles abstêm-se nas
eleições e dizem mal dos "políticos",
estão desempregados ou precocemente com reformas de miséria. Mas
não serão também muitos dos que apoiaram a galhofa da
"cassete dos dinossauros" quando se alertava para a beberagem
neoliberal que era impingida?
A mentira só tem poder se decidimos aceita-la, por isso o obscurantismo
e a boçalidade procuram criar medos e exercer chantagem colocando as
pessoas em estado passivo, de forma a não tomarem decisões
racionais de acordo com os seus interesses, mas sim em função
desses medos e dessa chantagem. Tal não se afasta dos preceitos
fascistas.
Leonor Pimentel
, a revolucionária portuguesa que no final do século XVIII
combateu pela República na Itália, teria dito "Não
posso perdoar aqueles que só pensam na sua própria glória
ou bem-estar. Pensam ser mais civilizados. São desprezíveis.
Malditos sejam todos eles".
[7]
Notas
[1] Naguib Mahfouz, prémio Nobel da Literatura, em entrevista à
revista cultural egípcia
Prism
em 1989.
[2] Marx, Manuscritos de 1844, p.72 e 71, Ed. Avante
[3]
expresso.sapo.pt/camilo-lourenco-a-historia-e-a-utilidade-economica=f790202
. C L tem cursos de jornalismo pela Universidade de Columbia, Nova Iorque e
Michigan; com especialização em jornalismo económico e
financeiro.
[4] Apresentação do livro "O economista insurgente" na
RT1 (Portugal no Coração) e TVI (Você na TV) em 20 e 22 de
maio, respetivamente.
[5] Maria João Avilez,
observador.pt/opiniao/ja-se-pode-dizer-bem-de-passos-coelho/
[6] Ver "O mito da gestão privada",
www.ionline.pt/iopiniao/mito-da-gestao-privada
,
[7] Em "A Amante do Vulcão", Susan Sontag, ed. Quetzal, 1992.
Leonor foi enforcada em Nápoles após a reação
recuperar o poder com apoio britânico.
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