A degradação ideológica da direita: três componentes
(1)
por Daniel Vaz de Carvalho
[*]
Escreveu mestre Miguel Urbano Rodrigues, acerca do nível de
degradação politica a que desceu a escória encastelada no
poder: "O discurso deste governo, é um discurso insano,
neofascista, que inverte a realidade e ofende a inteligência."
[1]
Com o neoliberalismo, atual suporte teórico do capitalismo, o pensamento
da direita atingiu o grau zero da racionalidade. Evidenciamos a
degradação política e ideológica da direita em
três das suas componentes: solipsismo, malthusianismo, obscurantismo. E
como dialeticamente tudo está ligado, veremos, 3 em 1: sempre o aumento
da exploração e da arbitrariedade.
[2]
1 - Solipsismo, a fuga ao real
Aos ricos dá-lhes riqueza, Hossana.
Dá-lhes a virtude por acréscimo, Hossana;
Dá àqueles que já possuem, Hossana.
Dá-lhes a cidade e o Estado
Bertolt Brecht, Ópera dos três vinténs
Face ao descalabro das suas políticas a direita desligou-se da
realidade, mergulhou no que podemos classificar de solipsismo. No solipsismo, a
realidade consiste no que cada indivíduo concebe como tal. A realidade
torna-se um produto da consciência: o que se pensa, "é".
Está na base das "críticas construtivas" dos
propagandistas do governo ao dizerem que o problema deste governo seria a
"comunicação". Adotam o lema salazarista de que
"em política o que parece, é". As
contradições do sistema eram então "suprimidas"
pela polícia política.
A própria base teórica evidencia já uma desconexão
da realidade, tomando como real a aparência das coisas. É o caso
de assumir como valor o que resulta da oferta e da procura. É o caso do
capital fictício dos produtos financeiros, sejam ações,
sejam os "produtos derivados", aparência de bens ou
serviços que não existem. O rebentamento das bolhas financeiras,
as falências bancárias reduzem a nada estas
conceções.
Exemplos de fuga à realidade, são as medidas avulsas dos governos
e da UE, sejam para o "crescimento e o emprego" sejam para o
"aumento da natalidade". Não passam de cosmética para
ganhar tempo e iludir a opinião pública, por parte de gente
incapaz de reconhecer que a raiz do problema está nas suas
próprias conceções ideológicas: "A
questão não é sobre as regras que estão definidas e
são reconhecidas é sobre a qualidade da
execução".
[3]
O BES como reincidência, à semelhança do que se tem passado
por todo o mundo neoliberal, traz evidencia que para troika, Banco de Portugal
(BP), governos, a realidade é-lhes opaca quando se trata da oligarquia
financeira. Auditorias, análises, estudos servem para a encobrir e
ilibar, culpabilizando socialmente as camadas populares que consumiriam sempre
acima das possibilidades.
No caso BES como no BPN as declarações dos governadores do BP e
ministros das Finanças são patéticas, a fuga à
realidade manifesta-se escondendo-se atrás de formalismos. Outra
é a atitude quando se trata de atacar salários, pensões,
reformas ou direitos laborais com normas anticonstitucionais!
A austeridade aparece então como um novo mito de Sísifo, tentando
ilusoriamente, à custa das camadas populares, transformar o
fictício em real. Ora, não é possível encontrar
solução para situações das quais não haja
compreensão. Dizia Espinosa no seu "Tratado do Entendimento":
"Toda a confusão provém de a mente conhecer apenas
superficialmente uma coisa que é um todo ou se compõe de muitos
elementos (
) essa coisa terá de conhecer-se não
parcialmente, mas na totalidade ou então não se conhecerá
de todo".
A fuga ao real evidencia-se no falhanço das previsões e dos
objetivos das estratégias, na atitude perante a
renegociação da dívida. A atual maioria PSD-CDS, os
membros do governo criam cenários fictícios, divorciados da
realidade económica. Os próprios dados económicos
são apresentados como abstrações retiradas dos contextos
gerais ou muito simplesmente falseados.
Para não se reconhecer os erros dos seus pré-conceitos
ideológicos, o quadro social é omitido. As consequências
das suas políticas, são tratadas como questões subjetivas:
"se tu queres, tu podes". Esta é a base da
alienação
[4]
e voluntarismos como o empreendedorismo. É a forma de manter o sistema
capitalista, que seria perfeito como "coisa em si", e "tornar o
indivíduo responsável pelas relações de que
é socialmente um produto". (Marx)
Segundo "o fundador do pensamento conservador anglo-saxónico,
Edmund Burke (1729-97) "o mercado em regra resolve tudo bem; se
excecionalmente algum homem não conseguir trabalho, então ele
fica fora da responsabilidade do Estado e passa para a misericórdia
divina". Burke afirmava ainda: "O Estado só tem de encorajar a
indústria e garantir a propriedade privada (
) para além
disso quanto menos o Estado fizer, melhor, o resto fica nas mãos de
Deus" e caso não se conformem com a retribuição pelo
seu esforço: "as classes populares devem ser ensinadas a acreditar
na consolação plena que encontrarão nas
proporções da justiça eterna".
[5]
Também, segundo o sr. Vítor Bento "para que a sociedade
funcione corretamente", deve organizar-se, pela religião: "a
religião proporciona um quadro de valores fundamentais (
).
[6]
.
Sempre que a religião saiu do foro das crenças individuais para
se "impor às sociedades" o resultado foi desastroso, com o seu
rasto de misérias, repressão, excessos,
justificação da arbitrariedade dos poderosos, guerras religiosas,
depravação e ganância do clero. Nem sequer é preciso
falar da Inquisição, para citar o lastro de obscurantismo e
irracionalidade na História das religiões.
Não nos parece sério querer colocar a religião ao
serviço de doutrinas económicas iníquas, mas esta sempre
foi a intenção das oligarquias. O seu pensamento nesta
matéria é exemplarmente desvendado por Voltaire: "Meu amigo,
acredito tão pouco como tu nas penas eternas, mas é bom que a tua
criada, o teu alfaiate e até o teu procurador, acreditem nelas."
A forma mais eficaz que os oligarcas e seus defensores encontraram para
controlar os povos, foi apresentar os seus interesses privados quer em termos
morais quer baseados numa pseudo ciência económica. É a
forma de iludirem os "termos coletivos" e fugir á realidade.
Considera então que o principal problema da economia no século
XXI é a moral: "o que falta é um padrão moral como
aquele que a religião impôs às sociedades".
[6]
Preocupado com os "padrões morais" o sr. Vítor Bento
fala que "uma sociedade não pode funcionar assim". Era de
supor que se referisse aos banqueiros fraudulentos, às suas
ilegalidades, aos paraísos fiscais, aos contratos leoninos das PPP,
à extorsão financeira dos SWAP, etc. Mas não, pelo exemplo
dado, o problema são os borlistas nos transportes públicos
[6]
Está, assim, plenamente justificada a sua ida para o BES!
O refúgio em "valores", entendidos como moral individual, tem
sido de facto um alibi para a direita e a extrema-direita. As
contradições deixariam de pertencer à realidade objetiva
sendo explicados por fatores subjetivos. E isto tanto mais, quanto mais se
verifica a corrupção, a fraude: "uma classe
cleptocrática tomou conta da economia".
[7]
É este capitalismo corrupto, infiltrado pelo crime organizado em conluio
com a finança, que se pretende regenerar com pregação
moral
Moral que a UE reduz à baixeza mais vil ao propor que se
introduzam no PIB (por estimativa) as atividades dos tráficos e
crueldades do crime organizado. Afinal, os "valores" que contam
são apenas os do dinheiro.
Quando se afirma que o "Estado Social tem de ser associado às
disponibilidades que o Estado tem", está a dizer-se que as
prioridades são as da especulação e da agiotagem fomentada
e protegida pelo BCE. Porém, que "disponibilidades" existem ou
se criam quando o Estado deixa fugir a riqueza criada no país para
paraísos fiscais e entrega ao desbarato a grupos privados empresas
públicas lucrativas?
Que padrão moral existe num sistema que apela ao consumismo como virtude
e vive disso, para depois condenar à austeridade povos que alegadamente
teriam cedido aos seus apelos? Eis como o solipsismo remete as questões
sociais para a moral individual. Santo Antão resistiu às
tentações do demónio, mas era santo
Para a direita a "ciência económica só existe enquanto
"economia de mercado". Rotundo disparate. O que será
"economia de mercado"? O neoliberalismo ou capitalismo keynesiano de
economia planeada? O termo mercado refere-se a realidades muito diversas:
mercado das MPME, mercado mono e oligopolista, mercado globalizado das
transnacionais. Em socialismo há mercado. Ignora-se que a economia
moderna é pela sua complexidade planificada. Sê-lo-á pelo
Estado em função de custos e benefícios sociais ou pelo
grande capital em função dos seus exclusivos interesses.
"Economia de mercado" foi a que Pinochet e outros criminosos que os
EUA promoveram na América Latina: "Ninguém fez mais que
Pinochet e os seus conselheiros para demonstrar a
superioridade da economia de mercado"
[8]
Michael Hudson recorda-nos que no Chile a chamada escola de Chicago verificou
que para impor o "mercado livre" controlado pelos bancos era
necessário controlar a imprensa, o sistema educativo, e neutralizar a
oposição. Sindicalistas, jornalistas, professores, juntamente com
outros democratas, foram assassinados por toda a América Latina e mesmo
nos EUA por se oporem à rapina da oligarquia financeira e à
teoria económica que racionaliza estes métodos.
"No Chile de Pinochet os monetaristas da escola de Chicago mostraram a sua
intolerância intelectual ao fecharem todos os departamentos de economia e
ciências sociais exceto na Universidade Católica onde regeram
inquestionados"
[9]
As intervenções do ministro da "solidariedade social",
Mota Soares, assemelham-se a delírios retóricos, enquanto a
pobreza não cessa de aumentar. A política liberal é oposta
à redistribuição de rendimento. O liberalismo no
século XIX, como no século XXI, só trouxe pobreza e
desigualdades crescentes. As leis de proteção aos pobres que
existiam na Inglaterra desde o século XVI foram revogadas pelo
capitalismo triunfante.
A melhoria das condições de vida foi arrancada a ferro e sangue
pela luta dos trabalhadores, pelo sacrifício das vidas de tantos
heróis anónimos que lutaram contra o arbítrio dos
poderosos. Contra o que agora se pretende repor a coberto de hipotéticos
"ajustamentos orçamentais".
O neoliberalismo conduz os países à estagnação, ao
desemprego, à austeridade "ad eterno". A sua política
laboral centra-se na total dependência do trabalhador em
relação ao patronato, promovendo o contrato individual de
trabalho, procurando anular a contratação coletiva, esteio do
progresso social e também económico, direito conquistado pelos
trabalhadores já antes do 25 de ABRIL,
O neoliberalismo, é na realidade um neofascismo. Pode pregar-se moral e
religião, mas ignora-se um sistema iníquo que produz 30
milhões de pessoas em condições de escravatura, segundo o
"Global Slavery Index 2013". Em nenhuma época histórica
existiram tantos escravos no mundo, esta a realidade do capitalismo global.
Afirma-se que o desemprego só é "moralmente
condenável" se houver uma ação deliberada para o
criar.
[6]
Claro que pode ou não haver uma ação deliberada do
capitalista, apesar da legislação abrir a porta a toda a
espécie de arbitrariedades. O que há sem dúvida é a
ação deliberada de um sistema iníquo. É mais um
exemplo de solipsismo.
O relatório OXFAM sobre as desigualdades no mundo fala-nos de um
"sistema falseado em benefício de alguns": 1% da
população detêm 50% da riqueza mundial, os restantes 99%
partilham a outra metade. Nos EUA os mais ricos confiscaram 95% do crescimento
após a crise financeira de 2008 e os mais pobres empobreceram. Portugal
é dos países com maior nível de desigualdades da OCDE. Em
Portugal a parte dos mais ricos duplicou entre 1981 e 2012. Quem andou a
consumir acima das possibilidades?
Exemplo da desconexão da realidade e degradação
ideológica que a direita atingiu verifica-se nas
declarações do PR Cavaco Silva perante o PR da Alemanha:
"aprendemos bem a lição, o povo português teve um
comportamento responsável e ficamos agora de forma clara para entrar
numa trajetória de crescimento". Seria interessante saber se Cavaco
Silva considera "comportamento responsável" 65% de
abstenção nas eleições para o PE!
Para além de evidenciarem uma total submissão aos ditames da UE,
leia-se interesses do grande capital alemão, aquelas palavras parecem
conter um tal grau falta de discernimento e alheamento da realidade vivida que
mereceriam uma análise por especialistas em perturbações
mentais.
A seguir: 2 Malthusianismo, o fim do imperativo moral
[1] O discurso insano, Miguel Urbano Rodrigues,
www.odiario.info/?p=3300
ou
resistir.info/mur/mur_09jun14.html
[2] Este conjunto de textos dá sequência a outros
apresentados em resistir.info sobre o mesmo tema, designadamente: A
ética do dinheiro e o dinheiro da ética; A teoria da
relatividade
do empobrecimento; Os tabus e as alternativas; O
populismo: antecâmara do fascismo
[3] Vítor Gaspar, atual diretor no FMI, jornal
Público,
20/03/2014
[4]
www.odiario.info/?p=2398
[5] Citado por Freitas do Amaral que critica estas posições.
Visão,
20/12/2012.
[6] Entrevista ao
Diário de Notícias,
31/05/2014, a propósito do seu livro "Economia, moral e
política".
]7]
www.informationclearinghouse.info/article21041.htm
[8] Robert J. Baro, "A step in the right directions for Iraq",
Business Week,
5/4/2004
[9] The Bubble and Beyond,
Michael Hudson, Ed. ISLET,
p.17 e 167
[*]
Autor de "Girassóis", uma história de antes,
durante e depois do 25 de Abril. A obra pode ser obtida na
secção
livros para descarregamento
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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