A agressão ao Iraque no quadro da política geral do imperialismo norte-americano
A invasão e ocupação do Iraque em Março de 2003
não é um facto isolado na política geral do imperialismo
estadunidense. O expansionismo tornou-se a política de Estado dos EUA
já no principio do século, quando o presidente McKinley ordenou a
guerra de conquista das Filipinas (assim como a invasão e
ocupação de Cuba) baseado numa "revelação
divina" que teria recebido. A sua execução levou ao
massacre de 200 mil patriotas filipinos, assassinados friamente pela tropa
norte-americana. Personalidades eminentes como o escritor Mark Twain
protestaram contra a infâmia cometida nas Filipinas, mas a jovem
burguesia norte-americana queria expandir mercados para a sua indústria
e, além disso, utilizar aquele país como entreposto carvoeiro
para a sua frota naval e base para a conquista da China.
Passados mais de cem anos, verifica-se que a única coisa de substancial
que mudou foi o nível de ambição. Os presidentes dos EUA
também recorrem a "divinas inspirações" para os
massacres que ordenam, também querem expandir o seu domínio
agora a nível planetário e garantir fontes de
aprovisionamento de energia, substituindo o carvão pelo petróleo.
Trata-se de uma política consistente, fria e deliberada do Estado
norte-americano. Há inúmeros documentos oficiais e oficiosos que
a descrevem. Pode-se afirmar que esta é, hoje, a política da
classe dominante dos EUA. Pouco importa o partido de turno ou a personalidade
que esteja no governo.
Não se pode entender uma questão particular como a
última invasão do Iraque, em 20 de Março de 2003
sem que se tenha compreendido previamente a questão de ordem geral.
Esta é a política geral do imperialismo estadunidense desde o
princípio do século XX até hoje. A execução
de tal política significou uma série monstruosa de atrocidades
durante mais de um século, guerras, invasões, massacres, golpes
de Estado, golpes sujos, chacinas, esquadrões da morte assassinatos de
chefes de Estado e responsáveis políticos. A lista negra dos
crimes cometidos pela barbárie imperialista é tão grande
que dispenso-me de recapitulá-la aqui pois iria gastar todo o tempo
disponível. Basta dizer que nunca houve um único golpe militar
na América Latina em que os golpistas não tivessem tido
previamente o sinal verde da Embaixada Americana. Basta recordar por exemplo
que 60 mil polícias e militares latino-americanos passaram pela infame
School of Americas
, em Fort Benning, Georgia, e que a seguir os Esquadrões da Morte
começaram a disseminar-se por todo continente, mesmo entre países
geograficamente distantes entre si como o Brasil e os da América
Central. Recordo factos como este para mostrar a continuidade da
política estadunidense, em que o Iraque é apenas o mais recente
episódio.
Pode-se afirmar, então, que não há nada de novo nos EUA?
Não, não é verdade. A partir do desaparecimento da URSS e
do mundo socialista, poderoso factor de contenção, o imperialismo
ganhou uma nova agressividade. Isto verificou-se com qualquer dos presidentes,
Bush pai, Clinton e Bush filho. Desde então o imperialismo sente-se
livre para actuar
urbi et orbi
. Desde 1990 o número de agressões directas aumentou de forma
bárbara (Afeganistão, ex-Juguslávia, Colômbia, Haiti
e Iraque). As ameaças explícitas contra outros países
(Síria, Paquistão, Irão, Coreia, etc) também
aumentaram. Hoje, o número de bases militares americanas no mundo chega
à ordem dos 800.
Há uma linha de continuidade na política dos governos americanos.
Com o de Bush, no entanto, intensificaram-se as ambições
hegemónicas da classe dominante estadunidense. O seu roteiro foi
cristalizado no documento
"Um novo século americano"
, elaborado pelos neo-conservadores e aprovado no ano 2000. É um
projecto de longo prazo para a dominação mundial por parte dos
Estados Unidos. Foi lançado, paradoxalmente, numa época
histórica em que a economia real dos EUA começa a entrar em
decadência, numa nítida perda de velocidade. As bases da sua
pretensão têm de repousar, por conseguinte, sobretudo no
domínio da tecnologia militar.
Por outro lado, a presente fúria expansionista americana tem tudo a ver
com o esgotamento progressivo dos recursos mundiais e pelo controle do
remanescente. Dentre estes recursos avulta, no imediato, o petróleo. O
seu esgotamento no planeta Terra já tem data anunciada no
calendário. O ritmo actual de consumo, 84 milhões de barris por
dia, não poderá ser sustentado de forma indefinida. A Curva de
Hubbert mostra que estamos num
plateau
que poderá perdurar até 2007 e a partir dessa data será o
declínio inexorável. Quando foi realmente atingido o pico da
produção só saberemos provavelmente
a posteriori
. Embora oficialmente o governo procure ignorar o problema, a classe dominante
americana está agudamente consciente desta realidade. Daí a
ânsia pelo controle rápido dos recursos remanescentes no
Médio Oriente e na Ásia Central, onde o Iraque é uma
cabeça de ponte.
Esta estratégia desesperada do imperialismo estadunidense tem uma forte
componente exterminista. Exterminista, sim, porque ameaça destruir as
condições de habitabilidade da espécie humana neste
planeta. Não se trata só do petróleo, problema mais
gritante. Trata-se, em última análise, de todos os recursos
existentes, desde a água, às florestas, aos bancos pesqueiros,
à diversidade genética das espécies vegetais, ao ar que se
respira. Assim, pode-se e deve-se acusar o império estadunidense de
exterminismo num sentido amplo e não apenas no sentido imediato e
directo, ou seja, das mortes e da barbárie que leva a todos os
rincões do mundo.
Mas no caso do Iraque esta política exterminista está a
concretizar-se também no sentido directo e de uma forma atroz. Os 12
anos de embargo e bombardeamento do Iraque levaram à morte de centenas
de milhares de pessoas. Aviões estadunidenses bombardearam
então, fria e deliberadamente, instalações para o
tratamento de água, centrais eléctricas, hospitais e escolas.
Com a invasão, em Março de 2003, agravou-se a política
criminosa da coligação comandada pelos EUA. Foi cometido no
Iraque assim como na ex-Juguslávia e no Afeganistão
um crime nefando de lesa humanidade: o espalhar de 330 toneladas de
urânio empobrecido, o equivalente a várias bombas nucleares, que
terá efeitos teratogénicos ao longo de milhares de
gerações futuras. O envenenamento químico,
radiológico e genético atinge até mesmo os próprios
soldados estadunidenses. Mas nada disto transparece na
desinformação publicada pelos domesticados media que se dizem
"de referência". Na verdade, nem mesmo a tropa hitleriana
cometeu crimes que perdurassem ao longo de milhares de gerações
futuras. O IV Reich americano é muito pior do que o III Reich
hitleriano.
Caro amigos:
Poderia alinhar aqui os inúmeros factos que constituem o dossier Iraque.
Este dossier é imenso. Ele compreende factos como
- as mentiras em que se baseou toda esta guerra de agressão, como a das
célebres armas de destruição maciça que nunca
existiram;
- o assassínio da população civil da cidade de Faluja por
meio de napalm e armas químicas como gás de mostarda e gases que
afectam o sistema nervoso, tal como foi reconhecido pelo próprio
ministro da Saúde do governo títere iraquiano;
- a política degradante da tortura e humilhação de
prisioneiros, autorizada e ordenada por Bush;
- os mais de 100 mil mortos civis desde o início da invasão;
- a tentativa de implantar Esquadrões da Morte no Iraque, de acordo com
o modelo adoptado para a América Latina;
- a tentativa de provocar guerras inter-religiosas entre a
população iraquiana e de seccionar o país de acordo com
divisões étnicas (tal como fez o imperialismo na
Juguslávia);
- o roubo, o saque e a pilhagem de riquezas arqueológicas milenares que
constituem um património de toda a humanidade;
- o roubo do petróleo iraquiano, com a legislação ilegal
imposta pelo "governo" do fracassado Paul Bremer.
Esta lista de malfeitorias poderia estender-se, e muito. Vou poupá-los,
aqui, da grande cópia de pormenores que poderiam ser relatados. Os
crimes mencionados já são mais do que suficientes para uma
condenação. Mas, além da condenação deste
Tribunal, o imperialismo americano será condenado também pela
própria história. Mesmo neste momento negro em que vive a
humanidade, em que aparentemente não há forças suficientes
para conter o império decadente mas ainda dominante, há alguns
motivos para optimismo.
Tal como todos os impérios do passado, o americano também
cairá. Ele não poderá manter-se indefinidamente. Por um
lado temos a resistência dos povos de todo o mundo, de que é
exemplo a luta exemplar e heróica do povo iraquiano. A demografia
mundial é favorável à humanidade. Mesmo que se disponha
de muitas armas e muita tecnologia, só se pode dominar quando se ocupa o
terreno. Mas para isso seria preciso que o povo americano estivesse disposto a
morrer
em defesa da pequeníssima fracção de
arqui-milionários que constitui a sua classe dominante. Nada indica que
isso esteja para acontecer. Ao contrário, cresce e aprofunda-se o
movimento anti-guerra dentro dos próprios EUA. No próprio dia da
segunda posse de Bush, 20 de Janeiro de 2005, houve grandes
manifestações de resistência em Washington. E hoje, neste
segundo aniversário da invasão do Iraque, estão a haver
centenas de manifestações em centenas de cidades do mundo todo,
inclusive nos próprios EUA.
Por outro lado, as contradições económicas dos EUA
são inultrapassáveis no âmbito do sistema actual. O seu
endividamento interno é colossal, a sua economia é
parasitária e vive às custas da exploração do resto
mundo, o seu défice na balança de transações
correntes é da ordem dos US$ 600 mil milhões por ano, os seus
défices orçamentais são gigantescos, a sua dívida
externa é a maior do mundo, o dólar afunda-se, a ameaça da
deflação pesa como um fantasma sobre os EUA e o resto do mundo.
Um simples erro quanto à política monetária do "fio
da navalha" conduzida Greenspan pode resultar num colapso
sistémico. A entropia que caracteriza o sistema monetário e
financeiro pode fazer que um pequeno incidente venha a transformar-se numa
macro-catástrofe.
A possibilidade de a actual crise arrastada transformar-se subitamente num
colapso sistémico, tal como em 1929, é muito real. Se e quando
isto acontecer o império americano poderá esboroar-se. Povos,
países e até continentes inteiros poderão libertar-se,
pois as oligarquias locais já não poderão contar com apoio
externo. Devemos estar preparados para isso, preparados para aproveitar as
ocasiões favoráveis que surgirem as "janelas de
oportunidade", como dizem alguns a fim de conseguir desenlaces num
sentido favorável e progressista. Seria trágico se
tivéssemos oportunidades e não as soubéssemos aproveitar
por falta de consciência.
Dar um desenlace favorável à crise do império apodrecido
é essencial para a sobrevivência da humanidade. O desenlace tanto
pode ocorrer no sentido da sua libertação ou, ao
contrário, do extermínio. Não devemos desanimar perante
as actuais condições históricas, perante a
correlação de forças actual que nos é
desfavorável. Ela pode e deve ser mudada. Aumentar a resistência
e elevar o grau de consciência da humanidade é um imperativo de
sobrevivência.
19/Mar/2005
[*]
Depoimento no Tribunal Mundial sobre o Iraque Audiência Portuguesa
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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