Para além da globalização liberal:
Um mundo melhor ou pior?
1- O futuro visto pelas potências dominantes
2- É viável o projecto europeu?
3- O Sul pode fazer recuar o imperialismo?
4- Na frente cultural: tudo em recuo
5- Reconstruir o internacionalismo dos povos perante o imperialismo
1- O futuro visto pelas potências dominantes
1-
A massa de informações de todo tipo referente a todos os
países do mundo colectada pela CIA é inigualável. Aquela
instituição, contudo, não faz qualquer análise que
se afaste da total banalidade sem dúvida porque os seus
dirigentes
estão fechados nos seus preconceitos, incapazes de sair do seu mundo
anglo-saxónico, e por isso mesmo sem espírito crítico e
imaginação.
O
relatório da CIA sobre o mundo em 2020
não imagina que os
princípios da globalização liberal em vigor, qualificada
de "projecto Davos", sejam postos em questão. Pois esses
princípios são, para Washington e seus parceiros,
indubitavelmente perfeitos. Portanto sem alternativa crível; e os que
não pensam assim só podem ser seres irracionais, ou demagogos sem
princípios. O liberalismo globalizado é considerado portador de
um bom crescimento económico onde quer que seja seriamente aplicado.
A globalização liberal é por definição feliz.
Claro que no seu sentido real este projecto que constitui "o fim da
história" (para os seus defensores, claro) sofre de
insuficiências geradoras de fracassos passageiros , engendra
reacções absurdas (porque põe em causa os bons
princípios do liberalismo) na origem de situações
caóticas. Nesta visão "os povos", os
"políticos" e os "ideólogos" são os
únicos responsáveis pelos maus resultados e pelo caos, a
lógica da expansão do liberalismo globalizado (ou seja, a
lógica
da acumulação do capital) não sendo portadora senão de
benfeitoriad para todos (ou quase todos).
Estas maneiras de pensar e estas visões do mundo não não pertencem
apenas às equipes de poder de Washington. Elas reproduzem um discurso
dominante dos poderes na sua grande maioria, e testemunham os limites estreitos
imposto pelos preconceitos nos quais são fundadas. Uma
análise da realidade que aspirasse ser tão verdadeira quanto
possível deve partir da colocação em causa destes
preconceitos, e submeter as teses que o inspiram a uma crítica rigorosa.
Os "afastamentos" entre o mundo em 2020 visto pelo
establishment
dos Estados Unidos e o mundo de hoje têm apenas importância
relativa. Estes "afastamentos" não se referem senão ao
lugar da Ásia (China e Índia em especial) na economia mundial
devido à busca de um crescimento forte para estes dois países de
maior porte. Este crescimento inscrever-se-ia na globalização
liberal e seria perfeitamente compatível com a continuação
da liderança dos Estados Unidos. Em nenhum momento se coloca a
questão de saber se este modelo poderá ser seguido
indefinidamente sem que as contradições internas nos
países referidos imponham bifurcações em
direcções novas e imprevistas.
De resto, "nada a assinalar" ou quase.
A Europa permaneceria encerrada nas suas "impotências" (a
reformar-se radicalmente no sentido liberal, a adoptar um modelo de
gestão dos seus imigrados inspirado pela prática dos Estados
Unidos...) e assim a sua economia seria atacada de atonia de opinião.
Mas em momento algum se pensou que esta pudesse tornar-se insuportável a
ponto de pôr em causa o liberalismo a níveis nacionais,
pan-europeu ou nas relações com o resto do mundo. Nem se imagina
que a Europa possa sair do atlantismo e da protecção dos Estados
Unidos face aos terroristas que só Washington seria capaz de jugular
através de guerras preventivas.
A Rússia, sempre refractária à democracia, seria incapaz
de se reconstituir em potência modernizada e dinâmica, e
tornar-se-ia uma potência exclusivamente petrolífera (como a
Arábia Saudita). Incapacitada pela sua demografia em declínio,
afundada nas relações tensas com os novos estados da Ásia
Central e do Cáucaso, definitivamente separada da Ucrânia,
preferiria navegar na esteira de Washington do que tentar uma
aproximação com a Europa, a qual está desinteressada.
A América Latina ficaria com a vêem hoje. Crescimento no
liberalismo no cone Sul e no México, avanços na
direcção da integração imaginada pelo projecto de
zona de comércio livre das Américas, reconhecimento neste quadro
de liderança de Washington. O "vestígio do passado"
(Cuba) desaparece, os sobressaltos populistas (tipo Chavez) não
têm futuro, o ascenção dos indigenismos absorvível.
A África negra nunca entraria na era da indústria, incapaz de
seguir os exemplos da Ásia e da América Latina. Incapacitada pela
extensão da pandemia da SIDA e pela tradição de "maus
governos" só registaria crescimento para a exploração
das suas matérias-primas (petróleo) e talvez alguns
produtos agrícolas.
Enfim os mundos árabe e muçulmano do Marrocos à
Indonésia ficariam paralisados pela entrega maciça dos
seus povos ao fantasma da reconstrução de um "Califado"
mítico. O insucesso permanente deste projecto produziria então a
instabilidade política tornando impossível o progresso
democrático e a mediocridade das realizações
económicas, sem no entanto a deriva terrorista permanente que as
acompanha seja de natureza a ameaçar realmente o resto do mundo. O
insucesso do terrorismo tem sempre um preço: a ocupação
permanente do Iraque (de resto prevista por Washington antes mesmo da sua
agressão) e o adiar para as calendas da democracia nesse
país; a não regularização do problema palestiniano!
Como preço igualmente as restrições aos direitos
democráticos nos países do Ocidente "civilizado".
As evoluções "prováveis" descritas acima levam
à conclusão que a liderança dos Estados Unidos não
será ameaçada. Nem mesmo pela Ásia triunfante,
pela Europa afundada na estagnação e deste facto presa pelo
atlantismo (NATO) ao carro dos Estados Unidos. A ONU continuaria o seu
declínio, substituída pelo governo político do sistema
mundial pelos Estados Unidos com o apoio eventual (mas não
necessário) da NATO. Guerra preventiva, dever de
intervenção (dita humanitária), propagação
(de facto manipulação) dos direitos do homem constituiria o
essencial do discurso de legitimação do novo imperialismo, em
2020 como hoje.
2- Esta imagem do futuro do mundo coloca problemas.
Este futuro é apresentado no quadro de pretensos
"cenários", que na realidade se resumem à alternativa
"o mundo segundo Davos" (ou seja o aprofundamento da
globalização liberal, asseguram a liderança mais ou menos
exclusiva dos Estados Unidos) ou o "caos". É apenas um falso
contraste, pois na realidade é a perseguição do
"projecto Davos" que cria o caos (as reacções
"populistas" aos insucessos sociais, o terrorismo, etc.). Trata-se
apenas de um único cenário: a procura do projecto liberal
garantido pela liderança dos Estados Unidos e a gestão da caos
pela militarização da globalização.
O
establishment
dos Estados Unidos (mas igualmente a maioria das forças
políticas no poder no mundo actual) recusa enfrentar o contraste
verdadeiro que se estabelece entre precisamente este projecto e os que
corresponderiam a mudanças sensíveis nas relações
de força sociais e políticas a favor das classes populares e das
nações dominadas, que são de resto a
condição dum recuo do "caos". De resto eles recusam
igualmente examinar as chances, o alcance e as consequências duma
"saída à direita" do liberalismo mundial em crise, como
a que os Neo-cons dos Estados Unidos mantêm.
Nessas condições temos sem dúvida o direito de colocar as
seguintes perguntas: porque os "especialistas" do governo dos
Estados Unidos nos propõem uma visão do futuro tão pobre?
A quem se dirigem os seus documentos? Que fins procuram? São sinceros
ou encobrem o jogo?
Pela minha parte creio que o objectivo real do documento não é
fazer o leitor reflectir mas pelo contrário convencê-lo de
"que não há alternativa ao liberalismo globalizado e
à liderança dos Estados Unidos". Os redactores são
de resto provavelmente mais democratas que republicanos e embora tanto uns como
os outros persigam os mesmos objectivos, os primeiros evitam cuidadosamente o
estilo arrogante da equipa no poder em Washington. Estão convencidos que
o capitalismo liberal globalizado pode ser "bom" para todos (ou
quase) seja ele ao preço de alguns regulamentos (como a "luta
contra a pobreza" o exigiria)? Estarão eles convencidos de que os
Estados Unidos estão investidos de uma missão histórica e
são portadores de uma mensagem de democracia para todos? Estarão
convencidos de que a hegemonia de Washington é por natureza
"gentil"? Ou são cínicos conscientes de que o sistema
actual garante ao capital das grandes multinacionais um rendimento
máximo, e que está aí a sua exclusiva
preocupação, desprezando os direitos sociais das classes
populares? Que não querem saber da "democracia" para os povos
do Planeta? Que não hesitam a dar prioridade à pilhagem dos
recursos naturais dos países submetidos ao seu protectorado para
benefício único dos consumidores dos Estados Unidos?
Pela sua formação e pela sua cultura, estes indivíduos
estão sem dúvida amplamente convencidos de que não
há alternativa ao capitalismo, porque será "o melhor sistema
possível" em termos de eficácia e de equidade, que seria o
melhor a corresponder à "natureza humana", seria portador da
democracia, etc. Eles e elas acreditam frequentemente na missão
histórica dos Estados Unidos. Na sua maneira de "analisar" a
realidade separam o objectivo da boa "económica" (na realidade
reduzida à expansão de mercados) e a da boa
"política" (reduzida por sua vez à democracia
representativa e à boa governação). O conceito de
"contradição" é estranho à sua cultura e
a ideia de que as contradições do capitalismo realmente existente
devem, pela própria lógica do seu desenvolvimento, agravar-se
é, para eles, rigorosamente incompreensível. Os "problemas e
as dificuldades" não sendo o produto da lógica do sistema,
são sempre o das circunstâncias do lugar e do momento. É
nesse sentido que na origem destes problemas haveria sempre uma
responsabilidade dos "povos", e que as soluções
poderiam ser-lhes trazidas sem sair das lógicas de princípio do
sistema. Não se negará que possam existir
discriminações raciais, ou relativamente às mulheres, que
as exigências de uma gestão saudável do ambiente possam ser
esquecidas; mas trata-se sempre de "problemas particulares",
separados uns dos outros.
Esta apologia a favor da "inocência" dos responsáveis em
questão não deve fazer ignorar que a sua cultura serve
perfeitamente os interesses particulares promovidos pelos políticos que
ela legitima. Neste sentido esta cultura pode ser lida validamente como
expressão cínica dos interesses do capital dominante. E certos
promotores dos políticos em questão podem perfeitamente ter
suficiente lucidez para saber que são os interesses que eles defendem.
Para lá destes assuntos de moral em aparência projectam-se as
carências que eu atribuiria ao encerramento dos responsáveis do
establishment
dos Estados Unidos na sua cultura anglo-saxónica. O texto peca por
ignorância que difunde de todas as civilizações do planeta.
O racismo banal em relação aos "africanos" (leia-se os
"negros") e dos "hispânicos" dita largamente as
conclusões respeitantes aos povos mencionados. Uma boa dose de desprezo
é igualmente atribuída no que respeita à "velha
Europa".
A conclusão a que chega este
establishment
no fim das suas "reflexões" a saber que o mundo de
2020 não será diferente do nosso, excepto que o lugar comercial
da Índia e da China será mais marcado (em detrimento da Europa,
não dos Estados Unidos) poderia parecer
"plausível". Com efeito quinze anos não constituem um
período suficientemente longo para imaginar as
transformações qualitativas das sociedades, sobretudo quando
como é hoje o caso nenhuma alternativa coerente e
crível pelo menos na aparência (como era o caso com o modelo do
socialismo no século XX) se apresenta no horizonte visível.
A minha análise do capitalismo realmente existente leva-me a uma
conclusão inteiramente diferente. Este sistema na sua forma
liberal globalizada não é viável. O caos que
engendra não é "dominável" através dos
meios imaginados pelas classes dirigentes do sistema. Tais meios só
podem agravar este caos, rapidamente e em proporções
dramáticas. O revés político e militar do Iraque, a
rejeição crescente do "projecto europeu" pelos povos
envolvidos, as explosões de violência (como as que agitaram em
Novembro 2005 os subúrbios das cidades francesas) e muitos outros
fenómenos já quotidianos o testemunham. Isto posto, não
concluo que uma saída aceitável "se imporá
necessariamente". O mundo de amanhã mesmo no horizonte
próximo de 2020 será diferente do de hoje, mas não
necessariamente melhor. Poderia ser igualmente pior.
Os cenários interessantes e úteis para o avanço da
reflexão são portanto os que imaginam o pior e o melhor e
identificam as condições da emergência.
O método e os preconceitos sobre os quais se funda a visão das
classes dirigentes (e em particular o
establishment
dos Estados Unidos) não o permitem. Não que os julgamentos
severos a respeito dos Estados (e das sociedades) tanto europeias como do
terceiro mundo não sejam fundamentados. São-no, e aqueles que me
proponho examinar a seguir não o são menos. Mas a severidade em
si não chega. È preciso agarrar a natureza dos verdadeiros
desafios com os quais as sociedades se defrontam, precisamente o que os
preconceitos que caracterizam a ideologia dominante proíbem fazer.
2- É viável o projecto europeu?
1-
Os discursos eufóricos que dizem respeito ao "projecto
europeu" são o pão de cada dia da grande maioria dos
políticos do continente, tanto da esquerda como da direita. Só,
segundo parece, os extremistas do "populismo" (partilhado pela
extrema direita e pela extrema esquerda) rejeitariam o projecto que não
teria alternativa para o futuro dos povos respeitantes. E no entanto os
indicadores de uma decepção crescente desses povos não
faltam.
Pois de facto o projecto europeu é muito curioso: procura,
principalmente depois do tratado de Mäestricht (1992) reduzir as margens
das políticas económicas nacionais sem fazer surgir em
contrapartida uma governação de substituição ao
nível da União! Ou como quem diz a União Europeia funciona
na realidade como a região do mundo mais perfeitamente
"globalizada" no sentido mais brutal do termo
(aniquilação da margem de autonomia dos Estados). O que
não é de certeza o caso dos Estados Unidos, nem mesmo o de outras
regiões do mundo em que o Estado, mesmo frágil e
vulnerável, se mantêm em princípio senhor das suas
decisões, limitado "apenas" pelas regras da OMC (estas tendo
pelo menos em perspectiva igualmente o aniquilamento progressivo dos direitos e
prerrogativas dos Estados). A Europa está assim, à frente do
resto do mundo, no grande salto para o salto atrás.
Esta mutilação que os Estados europeus se infligiram diz respeito
a todos os domínios da vida económica: já não
existe na Europa nem política monetária, nem política de
mudanças, nem política orçamental, nem política de
emprego, nem política industrial.
O Banco Central Europeu (BCE) proíbe-se de efectuar uma política
monetária qualquer, à qual ele substituiu o objectivo exclusivo
da garantia da "estabilidade dos preços", pela
proibição absoluta feita aos Estados de financiarem o seu
défice através do recurso aos "seus" bancos centrais.
Este, operando nessas condições, já não tem
interlocutor público (nem os Estados, nem a União) junto dos
quais seria obrigado a justificar a sua política. Esta
opção deflacionista por princípio constitui um
obstáculo suplementar permanente à dinamização da
economia.
O BCE também não pode executar nenhuma política de activa
de mudança, cujos objectivos (euro "forte" ou euro
"fraco") deveriam ser definidos por um interlocutor público
que já não existe. O governo dos Estados Unidos, ao
contrário, conservou todas as suas prerrogativas no domínio da
gestão monetária. É assim que Washington decide se o
dólar será forte ou fraco, enquanto o euro só pode
registar a decisão e ajustar-se a ela. Acrescentemos que o
padrão dólar é de facto um padrão
petro-dólar: os preços do petróleo estão fixados em
dólar e os Estados Unidos actuam, pela intervenção militar
se necessário (como foi o caso do Iraque), para impedir os países
produtores de petróleo de oferecer o seu petróleo contra o
pagamento em euro. De resto os Estados europeus tem, até agora, recusado
entrar nesse jogo e "afligir" o seu amigo d'além
Atlântico. Assim mutilado, o euro não pode tornar-se uma moeda
internacional como o dólar.
O "Pacto de estabilidade" anunciou o fim de qualquer possibilidade de
pôr em acção políticas orçamentais. Esta
opção foi justificada pelo recurso a uma teoria duvidosa da
equivalência da cobertura de um défice das finanças
públicas por imposto ou empréstimo. Justificação
de resto supérflua visto que o Pacto limitou a 3% o défice
máximo autorizado e a 60% do PIB o tecto de endividamento! Nem os
Estados Unidos nem qualquer outro país do mundo (excepto as
semi-colónias submissas à administração do FMI!)
não se infligiram uma tal mutilação, qualificada de
simplesmente "estúpida", com razão, por Prodi.
A abolição por princípio de toda a forma de
política industrial nacional (sob o pretexto de que a
"competição" transparente ou seja, sem
protecção ou subvenção implica a
alocação mais eficaz dos investimentos) e de toda a
política de emprego, abandonada apenas às leis do mercado
(supondo-se que a flexibilidade resolva os problemas!), reforçada pelo
desmantelamento dos serviços públicos e pelas
privatizações, não foi compensada ainda que
parcialmente por políticas comunitárias. Na ordem do dia
não existe nem a "Europa industrial" nem a "Europa
social". Deste ponto de vista aproxima-se sem dúvida do modelo que
sempre foi o dos Estados Unidos, que se empenharam muito antes na ruptura com
todas as tradições que no século XIX e depois no XX
estiveram na origem do seu êxito. Ainda que nos Estados Unidos exista
uma estratégia do complexo militar-industrial fortemente apoiada pelo
Estado (apesar do discurso "liberal") sem igual na Europa. É
divertido notar que os dois únicos avanços da tecnologia europeia
(o Airbus e o foguetão Ariana) foram o resultado de
intervenções de serviços públicos e que, deixadas
à iniciativa privada, estas duas realizações simplesmente
nunca se teriam realizado!
Num domínio particular o da agricultura a Europa efectuou
uma política activa, comunitária, liberta do liberalismo
doutrinário. Esta política deu resultados invejáveis;
permitiu a modernização da agricultura familiar, o aumento das
superfícies e a intensificação do equipamento, uma
especialização mais forte, garantiu preços que asseguram a
equivalência entre a receita do trabalhador do campo e do trabalhador
urbano, e finalmente libertou excedentes de exportação
importantes (demasiado!) Que custou? Sem dúvida a metade do
orçamento da comunidade europeia, mas este é insignificante
(menos de 1% do PIB dos países interessados). Hoje, como se sabe, a PAC
está posta em questão.
Beneficiando do segundo posto de despesas da União (um terço do
orçamento) as políticas regionais assentam em graves ambiguidades
e veiculam ambições políticas discutíveis. O
objectivo não é tanto a redução das desigualdades
(entre os Estados da União no seio destes entre as regiões de
que são constituídos) e sim o apoio à sua capacidade de
"manter a concorrência", sendo esta supostamente portadora de
progresso para todos (o liberalismo doutrinário nunca foi posto em
questão apesar dos desmentidos contundentes que o passado e o presente
lhe infligem). Os apoios aos Estados menos desenvolvidos são de resto
destinados a perder importância (pelo menos relativa) depois da
incorporação dos Países da Europa Central e Oriental
(PECO) na União. Articulados principalmente nos apoios às
regiões para as suas despesas de infra-estrutura e de
educação, as políticas de regionalização
postas em acção acentuaram ainda mais as desigualdades e
favoreceram as "regiões portadoras do futuro" sobre os
terrenos abertos à concorrência global (como a Baviera, a
Lombardia ou a Catalunha). O objectivo político aqui tentado é de
resto reduzir o alcance de "unidades nacionais" em benefício
de fidelidades "regionais". O liberalismo globalizado prefere sempre
os pequenos Estados aos grandes, porque o desmantelamento das
funções do Estado é mais fácil nos primeiros . Na
União europeia prefere-se a afirmação
"bávara", "catalã" ou "lombarda"
à das Nações (sempre supostamente capazes de se tornarem
"chauvinistas").
Definitivamente as concepções que dominam as visões do
alargamento da União não são de natureza diversa daquelas
nas quais os Estados Unidos fundaram o seu projecto de integração
da América Latina numa vasta zona de livre comércio das
Américas. Estas formas foram chamadas a acentuar a ruptura junto os
parceiros periféricos (aqui a América Latina e lá a Europa
de Leste) entre pequenas zonas bem integradas e avantajadas, controladas pelo
capital dominante dos centros (aqui os Estados Unidos, lá a Alemanha) e
vastas reservas ao abandono. O discurso que pretende que a
"recuperação" se fará por si graças ao
fluxo progressivo de investimentos privados directos estrangeiros
só tem evidentemente funções de propaganda. Mas, enquanto
os povos da América Latina rejeitam a extensão do livre
comércio à escala continental e combatem os Estados Unidos nesse
terreno a Europa oriental acolhe com a maior ingenuidade o projecto
análogo cozinhado pelos centros capitalistas da Europa ocidental.
As políticas de cooperação da União com a
África subsahariana nunca foram senão "neocoloniais", e
perpetuaram o encerramento do continente num estatuto
"pré-industrial". O alinhamento liberal da União que
comanda os acordos do Cotonou (2000) e os aqueles ditos de "parceiros
económicos regionais" (APER) agrava esta evolução
desfavorável. A África é, nesta perspectiva, objecto de
uma "exclusão programada" (Amin e alii,
Afrique exclusion programmée ou renaissance?
2005). De facto, "a globalização aberta" associada
à conservação do continente num estatuto
pré-industrial é uma estratégia executada para dar ao
capital transnacional dominante os meios de pilhar o mais possível os
recursos naturais do continente. Mas é preciso saber que esta pilhagem
beneficiará mais as transnacionais dos Estados Unidos do que as da
Europa. Nesta perspectiva de manutenção do declínio da
África as políticas de cooperação (hoje qualificada
como "parceria"!) entre a União Europeia e os ACP estão
destinadas a perder progressivamente a sua importância em proveito de
outras iniciativas na direcção da América Latina, da
Ásia e da região mediterrânica. Mas até hoje nada
indica que as iniciativas poderiam inovar e distanciar-se das lógicas de
expansão do capital transnacional. Os projectos ditos
euro-mediterrânicos estão esvaziados de todo o alcance potencial
pela junção de facto dos europeus às iniciativas de
Washington e de Tel Avive, apesar de algumas contorções
retóricas aqui e ali. (Cf. S. Amin e A. El Kenz,
Le monde arabe
2005).
2-
O projecto europeu tal como é leva ao absurdo o alinhamento com as
lógicas sistematicamente desfavoráveis ao êxito de um
desenvolvimento económico do continente. Deve colocar-se então a
questão do porquê dessas opções (que Prodi qualificou
justamente como idiotas).
A única resposta razoável que podemos dar a este problema
é que a escolha foi feita pelo grande capital dominante porque era o
meio o único possível de ele de quebrar a
força social que os trabalhadores europeus (classes trabalhadoras em
primeiro lugar) haviam adquirido ao fim de dois séculos de lutas. O
afundamento do sistema soviético proporcionou esta ocasião. A
opção era assim perfeitamente "racional", mais
evidentemente relevante de uma lógica política de curto prazo,
que sempre beneficiou espontaneamente da preferência do capital.
Comportamento absurdo é o dos partidos socialistas e social-democratas
europeus que acreditaram que o desmoronamento dos partidos comunistas lhes
conviria, ao passo que a estratégia liberal visava liquidar uns e outros.
O projecto portanto, tal como é, convêm aos Estados Unidos, e
é realmente a razão porque Washington não vê
qualquer "ameaça" desenhar-se vindo de uma Europa com
"eficácia competitiva". De resto a estagnação
relativa em que a Europa se instalou por esta forma extrema da
opção liberal facilita o financiamento do défice dos
Estados Unidos, provocado pela liderança com que Washington se esmera em
afirmar. A estagnação produz com efeito um excedente de lucros
que, não podendo encontrar saída na expansão dos sistemas
produtivos europeus, são colocados nos mercados financeiros dos Estados
Unidos.
O discurso dominante atribui o problema da Europa à dificuldade que as
suas sociedades teriam em adoptar franca e integralmente os princípios
do liberalismo "à americana", sem nunca fazer a menor
alusão à assimetria que caracteriza as relações
entre as duas margens do Atlântico. De facto, se os europeus decidissem
utilizar em sua casa o excedente que emprestam aos Estados Unidos e
só esta decisão poderia levar o continente a sair da
estagnação os Estados Unidos seriam então
confrontados com a obrigação de reajustar a sua economia e
reduzir o esbanjamento do seu modo de consumo e de despesa militar. Isso
não aconteceria sem uma crise política maior.
As políticas realizadas pela Europa não seguem o curso requerido
para que o seu poder económico potencial possa afirmar-se, mas
exactamente no sentido inverso. A privatização e os
desmantelamento dos serviços públicos de grande eficácia
na Europa (a SNCF, EDF e outros são bons exemplos) oferecem ao capital
financeiro dos Estados Unidos, principalmente aos Fundo de Pensões, uma
ocasião excepcional de tirar a nata dos lucros nos segmentos mais
interessantes das economias em questão, reduzindo assim os meios de
saída da crise à disposição dos europeus.
Deve-se então desesperar e aceitar o prognóstico de Washington
segundo o qual nada porá em causa as escolhas europeias por mais
absurdas que sejam? O risco existe e não deve ser subestimado pelos
movimentos alter-globalistas. A classe dirigente dominante no sentido estrito
do termo o grande capital dos oligopólios está
fortemente tentada a fechar-se nesta via sem saída para os povos
europeus. Pois em contrapartida beneficia das vantagens que a sua
participação no imperialismo colectivo da tríade lhe
proporciona. Sem dúvida o polícia que neutraliza os efeitos do
caos que este desenvolvimento imperialista implica os Estados Unidos
estão em condições de fazer pagar o preço
dos seus serviços aos seus parceiros subalternos. Mas estes não
têm alternativa e por isso aceitam as posturas servis que lhes são
destinadas. Depois de tudo, não será a primeira nem a
última vez no mundo actual que isso acontece.
Acrescento que é preciso tomar a medida das aflitivas
opções geopolíticas em curso, que reduzem as margens de
autonomia da Europa e lhe impõem navegar na esteira de Washington. A
Europa não escolheu construir uma Eurásia diante da qual os
Estados Unidos não pesariam muito, o que implicaria a
reaproximação com a Rússia e com a China. Pelo
contrário a Europa escolheu apoiar e até encorajar
os chauvinistas "anti-russos" bálticos e poloneses
(pensaríamos ter voltado a 1920 e ao "cordão
sanitário" anti-soviético de Versalhes!). Ela aceita o
expansionismo de Israel e valida a presença militar dos Estados Unidos
no Iraque, na Ásia Central e no Cáucaso.
O mais grave é sem dúvida o alinhamento da Europa nas
posições do projecto de controle militar do Planeta pelas
forças armadas dos Estados Unidos. Este alinhamento foi assinado no dia
em que, no momento das guerras jugoslavas, a Europa aceitou que a NATO fosse
investida de novas funções de polícia do mundo, associada
às forças dos Estados Unidos. Poder-se-ia acreditar que com o
desmoronamento da URSS, a NATO perdesse a sua razão de ser ("a
defesa da Europa contra uma eventual agressão soviética").
A decisão tomada foi exactamente no sentido inverso: substituir a ONU
pela NATO, tornada responsável pela gestão de
relações políticas internacionais. A partir daí a
deriva era difícil de evitar.
Esta deriva atingiu proporções que a opinião
pública na Europa geralmente ignora. Pois o que se seguiu foi nada menos
que a anulação unilateral pelas potências ocidentais da
Carta das Nações Unidas que haviam proscrito a guerra. Os
Estados Unidos na realidade outorgaram-se o "direito" de tomar a
iniciativa de "guerras preventivas" sem que os seus aliados da NATO
reagissem como deviam, desolidarizando-se oficialmente desta decisão.
É mais grave ainda visto que Washington se deu o direito de um primeiro
ataque nuclear, se o considerar "útil". Daniel Ellsberg fez
saber nessa ocasião que os documentos oficiais do Pentágono
calculando as "vítimas possíveis" de tais iniciativas
em nada menos que 600 milhões de seres humanos! (cem holocaustos
escreveu D. Ellsberg). A Europa e a NATO, calando sobre esta decisão,
tornam-se assim cúmplices do projecto criminoso dos Estados Unidos. A
única resposta eficaz que pode ser dada a esta deriva é a
organização de uma campanha mundial para a total
interdição do uso de armas nucleares (e sem dúvida
também as químicas). Pois é evidente que o tratado de
"não proliferação" que as potências da
NATO promovem é, nestas condições, inaceitável para
os povos da Ásia e da África, perfeitamente conscientes que
estão todos ameaçados de holocausto pelos Estados Unidos e pela
NATO.
Este servilismo dos segmentos dominantes das classes dirigentes e dos seus
papagaios políticos (de esquerda e de direita) poderá impor-se
indefinidamente às sociedades europeias? Duvido muito, porque
precisamente e é aí que se situa o essencial da minha tese
sobre o assunto as culturas políticas europeias não o
deveriam permitir. Não voltarei aqui a esta tese, que desenvolvi em
Le virus libéral
e em
Pour un monde multipolaire
cujas conclusões resumi na frase seguinte: o desenvolvimento da
lógica dos oligopólios dominantes aproxima os Estados Unidos e a
Europa, o das suas culturas políticas separa-os.
3-
Não creio pois que o projecto europeu, tanto na sua dimensão
liberal extrema como no seu alinhamento na geoestratégia de Washington,
seja viável.
A questão de saber como será ele posto em causa, aos
constrangimentos de quais evoluções será submetido
permanece em aberto.
Volto aqui ao ponto da minha análise que diz respeito às
"culturas políticas". As de uma boa parte do continente
europeu pode ser lida como uma sucessão de desenvolvimentos maiores que
modelaram a ruptura direita/esquerda: a Filosofia das Luzes, a
Revolução Francesa e principalmente a Convenção da
Montanha, a formação do movimento operário e socialista do
século XIX, o marxismo e a Comuna de Paris, a Revolução
Russa e a formação dos partidos comunistas. A direita
constitui-se como contraponto no decorrer da Restauração (a
"Santa Aliança"), pela formulação de ideologias
"antimarxistas" (derivando para os fascismos), pela
corrupção ideológica pro colonial (e racista), o
anti-sovietismo. As etapas da formação da cultura
política dos Estados Unidos nada tiveram a ver com esta história.
Esta cultura constitui-se numa sucessão diferente de desenvolvimentos
maiores: a imigração na Nova Inglaterra de seitas
anti-Iluminismo, o genocídio dos índios e a escravidão
dentro da sociedade (cujo impacto é diferente do da escravatura
praticada nas colónias longínquas), o abortamento da
consciência de classe, política em lugar da qual as vagas
sucessivas de imigrantes substituíram os comunitarismos. A cultura
política produzida por esta história não é muito um
contraste entre esquerda (potencialmente socialista) e direita, mas de um
"consenso" pro-capitalista relativizando fortemente a bipolaridade
eleitoral (Democratas/Republicanos).
O problema que hoje se coloca na Europa é saber se a herança da
cultura política está destinada a esboroar-se (e a esquerda a
desaparecer enquanto portadora de um projecto pós-capitalista) em
benefício da "americanização" em curso (os
partidos sociais-liberais aderem ao concerto dos defensores do
"capitalismo eterno"), ou se uma "nova esquerda"
será capaz de cristalizar-se em torno de programas à altura dos
desafios. Na minha opinião as duas evoluções são
possíveis.
A ofensiva ideológica da nova direita (que integra a maioria da esquerda
eleitoral) desenvolveu um agressivo discurso "anti-francês",
porque, a falar verdade, esta direita vê na França que
desempenhou um papel maior na cristalização das culturas
políticas na Europa "o elo fraco" do sistema europeu,
empenhado no caminho da americanização. "Colbertismo"
(ou seja um sistema que no seu tempo construiu -- com a Monarquia absoluta --
as bases da modernidade capitalista que ultrapassava o feudalismo),
"jacobinismo" (que entendera que sendo o liberalismo económico
o inimigo da democracia, a Revolução deveria ser popular e
não estritamente burguesa como fora a da Inglaterra),
"laicidade" (portanto o "radicalismo" impede a
maturação das identidades "comunitárias"
desejadas pelo modelo de direita pro-americana), ou seja o
gaulo-comunismo" (ao qual o Sr. Cohn Bendit prefere sem dúvida o
petanismo anti-soviético!) constituem todos temas repetidos até
ad nauseam por esta propaganda mediática. Ora é preciso constar
que todos estes temas são dominantes nos discursos "europeus"
(no sentido de pró União Europeia tal como ela é e tal
como a querem).
Para além da prática do projecto europeu seria bom fazer a
análise do discurso com o qual esta se veste. Neste discurso toda a
referência à herança da cultura política europeia
é qualificada de "provocadora"
("ringardise"):
a defesa dos interesses de classe (incansavelmente tratada de
"corporativismo"!), o respeito pelo o facto nacional (preferem os
regionalismos impotentes diante do capital, os comunitarismos, mesmo as
etnocracias à báltico, à croata, etc). São
"modernos" no contra: o elogio da competição entre
trabalhadores, regiões e países (seja qual for o preço
social), ou o de conceitos anti-laicos da religião (como a papolatria
à polonesa).
A reconstrução de uma esquerda europeia exige logo a
crítica radical de todos estes discursos. Ela exige principalmente que
identifiquem os princípios na base dos quais a alternativa pode ser
construída, e que se tirem concretamente as consequências em
termos de programas a curto e a longo prazo.
As considerações precedentes constituem uma leitura severa
não apenas do "projecto europeu" tal como é mas ainda
das reacções que suscita mesmo no seio dos movimentos sociais
progressistas engajados. O projecto tal como é deveria sem
dúvida ser qualificado não de "projecto europeu" mas de
"tabuleiro europeu do projecto atlantista colocado sob a hegemonia dos
Estados Unidos". As reacções maiores críticas do
projecto parecem-me ser principalmente articuladas na busca de um
equilíbrio menos assimétrico no seio da tríade
imperialista (por uma arrumação neste quadro das
relações entre a Europa e os Estados Unidos) do que de um
equilíbrio mundial menos desvantajoso para o "resto do mundo".
Nestas condições o problema mantêm-se: o projecto europeu
pode "mudar de direcção", ou deve, para que isso seja
possível, passar pela fase de reconhecimento aberto do seu fracasso?
3- O Sul pode fazer recuar o imperialismo?
O imperialismo colectivo da Tríade (Estados Unidos, Europa,
Japão) está na ofensiva e empenha-se activamente em refazer o
mundo em função dos seus próprios objectivos. Na quase
totalidade dos países do Sul já conseguiu reduzir os seus poderes
ao estatuto de "compradores". Nesse quadro os Estados Unidos, porque
constituem a ponta de lança desta ofensiva, estão em
posição de alargar o seu projecto hegemónico
específico. Este projecto passa pelo estabelecimento de um
"controle militar do Planeta" (os verdadeiros termos em que
Washington expressa sem pudor as suas ambições).
Para a realização deste projecto Washington escolheu o
Médio Oriente como região de primeiro choque, por diversas
razões que enumerei noutro lado (S. Amin
L'hégémonisme des Etats Unis et l'effacement du projet européen
2000). Mas o projecto visa, muito para além do Médio Oriente,
o "Sul" no seu todo, ou seja, toda a Ásia, a África e a
América Latina. O novo imperialismo colectivo não tem outro meio
para impor a prazo a manutenção dos países mencionados no
seu estatuto de dominados, e é por isso que os parceiros da
Tríade estão definitivamente alinhados neste projecto, por mais
demente e criminoso que seja, apesar das reservas expressas de vez em quando.
O "Sul" permanece "a zona das tempestades" no sentido de
que as revoltas dos seus povos vítimas de devastações
sociais sem precedentes estão destinadas a multiplicar-se. É
preciso então reduzi-las pela violência militar uma
verdadeira nova guerra dos "cem anos" entre o "Norte"
(enquanto continuar imperialista) e o "Sul".
Nesta perspectiva o
establishment
dos Estados Unidos considera que a China constitui o seu grande
adversário estratégico. Este
establishment
está no entanto dividido quanto a este ponto central. Uma
fracção pensa que a China poderia prosseguir o seu
desenvolvimento económico acelerado inscrevendo-se na
globalização liberal tal como está, e que, desta maneira
ela aceitará jogar o jogo e acomodar-se à liderança dos
Estados Unidos. Nesse caso a China seria mais um aliado do que um
adversário, mesmo que esse aliado possa exigir (e obter)
concessões particulares em proveito próprio. Uma forma de
complementaridade construir-se-ia entre a China que cobriria uma
proporção crescente das importações de bens de
consumo manufacturados dos Estados Unidos e estes últimos, fornecedores
de tecnologias de ponta e capitais. Mas uma outra fracção da
classe dirigente de Washington teme que a China faça o seu
próprio jogo, tente apropriar-se das tecnologias avançadas e
simultaneamente reforçar as suas capacidades militares. Seria preciso
então encarar uma guerra preventiva contra este adversário
estratégico antes que seja demasiado tarde.
Pode-se, ao olhar o que se passa na sociedade chinesa para identificar as
contradições que ali se desenvolvem, esclarecer melhor a
questão colocada quanto ao lugar da China no sistema das suas
relações com os centros imperialistas do sistema de um lado e com
as periferias deste de outro lado?
São questões que não são consideradas no discurso
de economia convencional, que se satisfaz com verdades simples e superficiais
como o crescimento do PIB. As classes dirigentes dos países em causa
a China no caso têm elas próprias tendência a
satisfazer-se com a imagem do futuro que se julga poder deduzir deste
género de "projecções", principalmente quando
"as coisas correm bem" (que o crescimento registado é forte).
Uns e outros só conseguem imaginar o sempiterno empenhamento na
"meta de alcançar"
("chemin du raftrappage").
O momento actual é caracterizado de uma maneira geral pelo
estilhaçamento do Sul, e o contraste crescente entre um grupo de
países ditos "emergentes" (como a China, a Índia, o
Brasil, mas também países de tamanho mais modesto, entre outros a
Coreia) num polo e um "quarto mundo" estagnado. Podemos concluir que
os países emergentes estão na via do desenvolvimento no sentido
do alcance
(rattrapage)
? Minha análise, que incide nas características no novo sistema
centros/periferias, leva-me a uma resposta negativa a esta questão.
Nesta análise as novas vantagens decisivas que definem as posturas de
dominação dos centros não são mais
constituídas pelo monopólio da indústria como no passado
quando a contradição centros-periferias era praticamente
sinónimo de países industrializados/países não
industrializados, mas pelo controle das tecnologias, dos fluxos financeiros, do
acesso aos recursos naturais, da informação e dos armamentos de
destruição maciça. Por este meio os centros imperialistas
controlam efectivamente as indústrias deslocalizadas nas periferias
"emergentes" as verdadeiras periferias do futuro.
Há muita ilusão, nos países emergentes em causa, sobre o
futuro que os desenvolvimentos em curso preparam. No caso da China o
êxito da opção daquilo que poderia ser uma perspectiva
capitalista nacional a de um capitalismo poderoso transformado em actor
activo no sistema mundial embate em obstáculos que se
tornarão cada vez mais sérios. Por um lado esta
opção não pode associar as imensas massas populares
camponesas e urbanas aos benefícios do crescimento económico. As
resistências deste estão pois destinadas a manifestar-se com cada
vez com mais vigor. Já aqui chamei a atenção sobre a
resistência particular dos camponeses, beneficiários de uma
revolução radical a seu favor, ameaçados pelo projecto de
privatização do solo agrário (um projecto de
"enclosure"
[1]
). O desenvolvimento destas lutas poderia fazer inflectir o projecto
chinês na direcção de um "socialismo de mercado"
autêntico, ou seja uma combinação que dá toda a sua
força à prioridade social (justiça social) no modelo de
desenvolvimento, reorientado para a expansão prioritária da
procura interna das classes populares. Haveria então um afastamento
muito grande do modelo da China inscrito simplesmente na
globalização liberal. Reenvio aqui aos debates sobre o assunto,
vivos na China. (S. Amin,
Theory and practise of Chinese market socialism,
2005).
Por outro lado, é preciso ser ingénuo para pensar que as
potências imperialistas dominantes aceitarão sem reagir ver um
país do tamanho da China tornar-se um "parceiro igual". Quando
a China pode pensar em comprar uma transnacional de petróleo para se
inserir melhor na globalização liberal e assegurar-se neste
quadro do seu abastecimento, os Estados Unidos em violação
de todos os princípios que só os doutrinários do
liberalismo julgam ser os que regem a realidade das relações
económicas fizeram abortar a tentativa por uma
intervenção política brutal. Os choques entre a China e as
potências imperialistas em todos os domínios que dizem respeito ao
acesso aos recursos naturais do planeta, o comando das tecnologias modernas, os
direitos de propriedade industrial, passam a ser violentos. Maiores do que os
conflitos que não deixarão de desenvolver-se à medida que
a China se imponha aos mercados internacionais de produtos banalizados.
As ilusões que alimentam uns e outros nos outros países
emergentes são ainda mais grosseiras. No Brasil, por exemplo, mais
frequentemente também na América Latina, segmentos importantes da
esquerda acham possível a construção de blocos
hegemónicos gerados na tradição da social democracia (a
"boa" a do Estado de Previdência do após-guerra
na Europa, mas não a de hoje alinhada com o liberalismo).
Esquecemos as condições realmente excepcionais que permitiram a
social democracia do Estado de Previdência. As sociedades ocidentais
envolvidas dispunham de um avanço sobre todas as outras que permitiam
simultaneamente concessões do capital ao trabalho e o prosseguimento do
seu domínio imperialista sobre o resto do mundo. A social democracia foi
social-imperialista e até social-colonialista até ao fim, quando
foi vítima dos movimentos de libertação. De resto a
ameaça que constituía a alternativa comunista foi decisiva no
deslize do poder em direcção ao compromisso histórico
capital/trabalho que caracteriza este movimento excepcional da história.
Pela primeira vez a causa das classes trabalhadoras havia adquirido uma
"respeitabilidade" de que não beneficiara até
então. Essas condições não são as das
sociedades periféricas de hoje, mesmo nos países
"emergentes" que estão longe de poder impor-se em igualdade
com os centros imperialistas. Além disso, a página do
compromisso histórico em questão foi virada nos próprios
centros desenvolvidos. A social democracia tornou-se social liberal porque o
liberalismo é o meio pelo qual os centros desenvolvidos prosseguem o seu
domínio imperialista sobre o resto do mundo. A social democracia
não sai do quadro da sua tradição social imperialista; e
porque o social imperialismo hoje é social liberal, o deslize em
questão era de esperar. Assim o liberalismo, ainda que algo atenuado
pelos sociais liberais quanto aos seus efeitos devastadores, reconduz as
classes trabalhadoras populares dos centros ao estatuto de dominados
praticamente excluídos do poder que fora seu até 1945. As novas
condições poderiam constituir assim a base objectiva da
reconstrução de uma frente internacionalista de povos (do Norte e
do Sul), naturalmente com a condição de que as forças
políticas que, no Norte, têm a audiência dos trabalhadores,
rompam categoricamente com as ambições do imperialismo.
O destino que o projecto imperialista reserva aos povos das periferias
"não emergentes" é ainda mais dramático. As
regiões do mundo ditas "marginalizadas" são na
realidade objecto de políticas sistemáticas das forças
dominantes que qualifiquei de estratégias de "exclusão
programada" dos povos afectados facilitando uma integração
mais forte dos seus recursos naturais submetidos a uma pilhagem intensificada.
A execução deste projecto passa pela agressão e
ocupação militar (como no Iraque), a colocação sob
tutela devido ao endividamento (caso dos países de África).
Nesse quadro a Europa e o Japão estão praticamente alinhados com
Washington. A conferência do Euro Med realizada em Barcelona (fim de
Novembro de 2005) testemunha este alinhamento: a Europa tentou aí impor
a agenda que Bush prefere a prioridade da "luta contra o
terrorismo". Os governos árabes, hoje dóceis ao extremo
às exigências dos mestres do sistema, foram constrangidos a dizer
que não era possível desprezar até este ponto os direitos
dos povos palestiniano e iraquiano. A Europa deixou que os interesses dos
Estados Unidos passassem à frente dos seus no projecto chamado
"grande Médio Oriente". O mesmo acontece no que diz respeito
à África subsaariana, como ilustram os acordos de Cotonou (2000)
e os projectos chamados de parceria entre a União Europeia e as
Comunidades regionais da África. O alinhamento de todos sobre os mesmos
discursos insípidos a respeito da "redução da
pobreza" ou "o bom governo", as tomadas de posição
arrogantes do novo director geral da OMC (o "socialista" Pascal
Lamy!) a fazer empalidecer os embaixadores da
administração Bush, testemunham esta unidade de
visão dos parceiros da tríade imperialista.
Diante deste desafio de uma brutalidade sem igual as reacções do
Sul em questão tanto são tímidas ao extremo como
inapropriadas. Os governos, como os dos protectorados de outrora, não
dispõem senão de uma margem de movimento limitado ao extremo, e
escusam-se a por em causa o liberalismo económico de que os seus
países pagam os custos. Desamparados, grandes sectores das classes
populares seguem atrás das retóricas para-religiosas ou
para-étnicas que se verificam entre os povos do Sul.
Os povos do Sul são por vezes, nessas condições,
confrontados sozinhos e brutalmente com intervenções violentas
dos imperialistas. É o caso do Iraque em particular, assim como o da
Palestina. Embora a sua resistência (parcialmente armada) seja
heróica, esta não beneficia dos apoios morais e políticos
que merece. Paga-se aqui o preço dos recuos da consciência
progressista que caracterizam o momento actual tanto nos países europeus
como nos do Sul. O isolamento relativo dos que combatem na primeira linha o
projecto de desenvolvimento imperialista favorece por vezes derivas nos
métodos da resistência que promovem. Por sua vez isso não
facilita a reconstrução necessária do internacionalismo
dos povos.
Reconstruir a frente unida do Sul diante do imperialismo colectivo da
tríade e da ofensiva militarista dos Estados Unidos constitui o desafio
com que os povos da Ásia, da África e da América Latina
são confrontados.
Os povos da Ásia e da África tiveram êxito durante a
era de Bandung (1955-1975) em fazer recuar o imperialismo da
época, graças à frente unida que lhes opuseram. Mas as
condições que permitiram este êxito já não
são as que governam a conjuntura actual. Na época os poderes
locais, saídos de movimentos de libertação nacional e por
vezes de autênticas revoluções populares, beneficiavam por
este facto de uma legitimidade certa e da confiança dos seus povos.
Além disso os Estados que dirigiam podiam contar até certo ponto
com o apoio da União Soviética, constrangendo os agressores
imperialistas a uma certa retenção. Sabe-se agora que a seguir,
após o desaparecimento da União Soviética, as
potências imperialistas retornaram à sua tradição de
agressão brutal.
Através do Movimento dos Não Alinhados, a frente dos Estados e a
dos povos afectados exprimia-se em simultâneo. Um
remake
de Bandung é hoje impossível. A erosão do populismo
nacional que definia o conteúdo das políticas executadas na
época e a ofensiva imperialista, iniciada nos anos 1980, redobrada
depois de violência a partir de 1990, produziu a deriva compradora dos
poderes locais. Estes perderam por isso largamente a sua legitimidade aos
olhos dos seus povos. Além disso as esquerdas comunistas alinharam-se
largamente no apoio (ainda que dito "critico) aos regimes de populismo
nacional da era de Bandoung e, por isso, não pareciam críveis,
capazes de oferecer uma nova alternativa autêntica. O vazio
ideológico operou como uma chamada de ar, permitindo aos culturalismos
para-religiosos e para-étnicos responderem à confusão com
as ilusões perigosas veiculadas pelos seus discursos.
A alternativa autêntica que chamaria um Bandoung (e uma
Tricontinental) dos Povos enfrenta obstáculos sérios. As tarefas
que as esquerdas nos países do Sul têm de cumprir não
são mais fáceis que os desafios com que as esquerdas europeias
são confrontadas.
4- Na frente cultural: tudo em recuo
O recuo da cultura europeia e a americanização do mundo
traduzem-se pela generalização do princípio do
"grande consenso" fundado na afirmação forte da
"identidade comunitária". Não se deve subestimar o
perigo fatal para a civilização humana que constituiria o
possível êxito de uma evolução que
qualificarei de deriva nesta direcção. Esta deriva, que de
resto já está esboçada, poderia constituir uma
saída à direita para a crise do capitalismo senil e permitir a
sua ultrapassagem não por avanços na direcção do
socialismo mas pela construção de um novo sistema de tipo
"tributário" ("neo-tributário") de que
indicarei mais adiante as grandes características. Por outras palavras,
não apenas "outro mundo é possível" mas "um
outro mundo" é certo, que pode ser melhor mas igualmente pior do
que aquele em que vivemos.
A reflexão sobre este assunto que proponho fundamenta-se numa recusa da
versão linear do "progresso humano fatal de etapa em etapa do
desenvolvimento da história", quer esta versão seja fundada
sobre a ideologia (europeia de origem) da Razão associada ao economismo
da modernidade burguesa ou sobre a interpretação marxista vulgar
da sucessão dos modos de produção. Nos pontos de viragem
da história, ou seja quando o desenvolvimento de um sistema chega ao seu
termo devido à acumulação das contradições
que este produziu (ou seja quando esse sistema entra na idade da senilidade), o
futuro possível conjuga-se no plural. Nesses pontos de viragem as
bifurcações da evolução ulterior são
múltiplas e as direcções da evolução
possível diversas. Esta multiplicidade das bifurcações
tornou-se o objecto de uma formulação matemática rigorosa
(a teoria do caos). Podemos discutir a pertinência desta
formulação (certamente estabelecida para certos objectos de
estudo, como a meteorologia) para o domínio que nos interessa (a
história das sociedades humanas). Pela minha parte, duvido muito desta
pertinência. Em compensação chego à mesma
conclusão (a diversidade dos futuros possíveis) por uma
interpretação não doutrinária do materialismo
histórico, fundada no que qualifiquei de
"sub-determinação das instâncias" (S. Amin,
Critique de l'Air du Temps
).
Na análise que proponho as instancias ideológicas e
políticas conquistaram uma autonomia real nas suas
relações com a instancia económica. Uma
combinação particular destas diversas instâncias
entre outras possíveis e a dominância de uma ou outra que
caracteriza esta combinação permitem então qualificar o
sistema que se constitui em resposta à crise do modelo actual tornado
senil.
Pretendo aliás que o sistema capitalista já entrou há
muito neste tempo final da senilidade, no sentido de que a gravidade das
contradições produzidas pela lógica do seu desenvolvimento
é a partir de agora tal que a sua gestão implica um uso
permanente da maior violência política e militar dos senhores do
sistema, entre outras a guerra permanente do Norte contra o Sul.
Não resulta desta constatação que a crise do sistema
capitalista mundial senil em curso não acabe necessariamente na sua
ultrapassagem pelo socialismo igualmente mundial. Isto é uma
possibilidade. A qual exigiria na análise que proponho: (a) no plano
das evoluções políticas e sociais a
associação do progresso social, do aprofundamento da democracia e
do reforço da margem de autonomia das Nações numa
globalização multipolar negociada; (b) no plano ideológico
e cultural a renovação dos valores do universalismo.
Nesta segunda dimensão as evoluções dominantes em curso
vão exactamente no sentido inverso. As manifestações deste
grande salto para trás são visíveis no que propõe o
"pós modernismo", pelo menos nas suas correntes dominantes,
pela sua colocação em causa da "verdade objectiva" e da
valorização da "multiplicidade dos discursos". Alan
Sokal e Jean Bricmont propõem uma crítica cáustica desta
demissão da Razão (A. Sokal,
Pseudosciences et postmodernisme,
2005).
A ciência pretende utilizar em simultâneo a Razão (a
lógica) e a observação que lhe permitiria descobrir
verdades objectivas, ainda que esteja perfeitamente consciente de que estas
são sempre parciais e relativas (a ciência não procura
conhecer a "verdade absoluta do todo"), que as suas descobertas e as
teorias que deduz devem ser objecto de uma colocação em causa
permanente que permita corrigir os seus erros e avançar. Nesta
definição a ciência mergulha as suas raízes no
comportamento humano desde a mais remota antiguidade de todas as sociedades do
planeta. Acontece que a ciência deu um salto em frente qualitativo
gigantesco na Europa moderna a partir da Renascença. Foi neste quadro
que ela rompeu da maneira mais sistemática com os métodos do
raciocínio por analogia, substituindo a metáfora pelo rigor de
observação e do raciocínio, que caracterizava e
(caracteriza sempre) as "para-ciências" (como a astrologia) e a
magia. Não é por acaso que este salto em frente está
estreitamente associado à crítica dos dogmatismos religiosos
(fundamentados na interpretação de textos "sagrados"),
nem que esteja associado ao nascimento do capitalismo. Simultaneamente este
salto em frente está de facto associado a uma tendência forte ao
eurocentrismo, que pretende que por uma razão ou outra só podia
ter sido realizado pelos "europeus", tal como as demais
características da sociedade moderna em que a ciência se
desenvolve em especial o machismo patriarcal. Todos estes limites da
ciência tal como ela é podem perfeitamente ser o objecto eles
próprios de uma crítica científica, ou seja, ela
fundamenta-se também no uso da razão e da
observação e da dúvida céptica.
Mas a versão o pós moderna, que tem o vento em popa, não
propõe este modo de crítica. Ela pretende recolocar em
questão o estatuto privilegiado da ciência em matéria de
conhecimento. Pretende que "verdade objectiva" simplesmente
não existe, que a "verdade" é o que as
"pessoas" pensam ser verdadeiro. Por outras palavras coloca o
discurso científico (qualificado como narração) no mesmo
plano das outras narrações (as da magia, das para-ciências,
das religiões). Pretende mesmo que a multiplicidade de facto das
narrações efectivamente em curso aniquila toda a pretensão
à universalidade. Coloca todos estes discursos num mesmo plano e, coisa
curiosa (mas não incompreensível) abstêm-se de submeter os
que se auto qualificam de contra hegemónicos ao mesmo rigor
crítico que reserva ao "discurso dominante".
O discurso pós modernista acompanha e legitima as
evoluções maiores em curso ou seja a emergência dos
"culturalismos" (a conjugar sempre no plural). Entendo assim a
afirmação que as "culturas" constituiriam realidades
trans-históricas fundadas sobre valores diversos, incomensuráveis
e permanentes. Nada na história real dos povos confirma este a priori
aberrante. O "culturalismo" que não se deve confundir
com o facto banal e evidente que constitui a diversidade cultural
legitima o discurso de perseguir o absoluto de que se alimentam todos os
movimentos para religiosos (o Islão político, o hindutva, o
cristianismo fundamentalista dos Estados Unidos, as inumeráveis
"seitas" de todo o género) ou para étnicas. Não
se trata senão de discursos super reaccionários que em nada
participam nas aspirações à libertação dos
seres humanos e mais particularmente das classes e povos dominados, mas ao
contrário os encerra no impasse e lhes faz aceitar a
dominação real de que são vítimas a do
capitalismo senil.
Os problemas respeitantes à diversidade cultural e os discursos contra
hegemónicos são tais que facilitam muitas vezes a confusão
que julgo necessário evitar. Sejamos portanto claros neste assunto.
Sim, a modernidade realmente existente produzida pelo capitalismo imperialista
é culturalmente enviesada, eurocêntrica, masculina e patriarcal,
prometéica no sentido de que trata a natureza como objecto. Sim, os
discursos contra hegemónicos que o demonstram (o feminismo, o
ecologismo, o anti imperialismo cultural) constituem os elementos positivos
incontornáveis de toda alternativa humanista. Mas esta alternativa,
longe de ser a negação da modernidade, é o desenvolvimento
racional e radical abolindo o eurocentrismo, a ditadura machista e o desprezo
das nações.
Diante deste desafio, pedir para renunciar à aspiração
universalista é fundamentalmente reaccionário. É aceitar
que seja dado um lugar aos discursos contra hegemónicos na
condição de que fiquem fechados nos guetos que lhes são
destinados. A democracia estilo Estados Unidos encoraja esta
"diversidade" impotente. Alinhar-se-ão os "women
studies", os "black studies" aos quais serão autorizadas
todas as proclamações, enquanto o discurso convencional da
economia dominante prosseguirá a sua rota sem experimentar o menor
incómodo. Esta ideologia dita pós modernista não pode
inspirar o radicalismo necessário para mudar o mundo.
Todos os comunitarismos se singularizam pelo facto de que tratam o grupo no
qual se identificam como "homogéneo". Há "os"
negros, "os" croatas, "os" muçulmanos, etc. Ou se a
pertença aos grupos mencionados define por vezes mas nem sempre
uma identidade real em certas circunstâncias, esta identidade
nunca é exclusiva, mesmo quando é vivida como tal nos casos
extremos de alienação.
Certas interpretações feministas e ecologistas mas
certamente não todas aderem aos comunitarismos neste disparate.
As mulheres não constituem um grupo homogéneo tal como os
homens , mesmo se, de um modo geral, todas elas sofrem com a
posição de dominadas nas quais o sistema, fundado na
dominação masculina, as encerra. Certos ecologistas tratam
igualmente dos interesses comuns da humanidade pela salvaguarda da vida sobre o
Planeta como se a humanidade em questão constituísse uma
realidade homogénea.
Todas estas correntes de pensamento e de acção que ocupam lugares
importantes nos "movimentos" da nossa época fazem
referência a realidades incontestáveis. Sem os racismos, as
dominações masculinas, o desprezo pela natureza, elas
simplesmente não existiriam. Estas realidades que se deve combater
estão portanto na origem da sua força. Mas este combate
não será eficaz a menos que integre todas as dimensões do
problema numa análise de conjunto (evitando as reduções
vulgares simplificadoras será necessário lembrar?) e saiba
daí derivar estratégias à altura dos desafios.
É a razão pela qual esta "ideologia" é aquela
que promovem as forças dominantes e mais particularmente o
establishment
dos Estados Unidos. Nada de mais funcional para a busca das
dominações locais que esta ideologia, porque ela dá forma
a consensos aparentes de conjuntos de indivíduos que se definem pela sua
"identidade particular irredutível". Exprimirei a realidade
desta funcionalidade pela seguinte imagem: se tiver na mão uma garrafa
de coca-cola e na outra o emblema da nossa identidade pretendida (o
Corão, a Bíblia ou uma insígnia étnica) não
será perigosos (mesmo que julgue ser!).
Em contraponto a afirmação da necessidade de ciência e de
universalidade como únicos fundamentos possíveis para a
civilização humana, não exclui de modo algum qualquer
culto da "modernidade". Pois se a data de nascimento e as
condições da formação da modernidade realmente
existente podem ser reconhecidas, esta não é alcançada no
termo do seu percurso (de resto não há termo, a história
não tem fim). E como a modernidade realmente existente até hoje
é aquela do capitalismo cabe às sociedades do planeta
ultrapassá-la por uma modernidade pós capitalista superior.
As involuções reaccionárias em curso, se elas devessem
tornar-se dominantes e reduzir ao silêncio os seus contraditores,
contribuiriam então para uma ultrapassagem pós capitalista que
qualificaria de construção de um sistema
"neo-tributário".
A analogia na escolha da qualificação faz referência aos
caracteres pelos quais identifiquei a especificidade dos sistemas
pré-modernos (pré capitalistas), em contraponto com o capitalismo
(moderno). Pretendo de resto que esta distinção seja a que Marx
propõe no
Capital, Crítica de economia política,
como no conjunto dos seus escritos (principalmente em
A ideologia alemã
). A determinação em última instancia pelo
económico não exclui a diversidade de formas de domínio
das diferentes instancias: no capitalismo o económico é a
instancia dominante (e deste facto a forma de alienação que
define o sistema é a alienação economista do
mercado em termos vulgares), nos sistemas anteriores a instância
dominante é o político (e a forma de alienação que
o permite é alienação religiosa).
A nova ideologia prepara um retorno ao domínio do político. A do
económico, própria do capitalismo, é com efeito
necessariamente posta em questão pelo próprio desenvolvimento das
forças produtivas, isto é pelo que se chama a nova
revolução tecnológica em curso. Mas o domínio do
político (ou melhor e mais precisamente do político/cultural)
pode tomar diferentes formas associadas a conteúdos sociais eles
próprios diversos.
Ela pode tomar a forma (superior) de um domínio da
socialização pela democracia (em contra ponto da
socialização pelo mercado), de um domínio da solidariedade
(em contra ponto da competição) e dar assim um pedestal
sólido para uma sociedade comunista. Era, creio a visão de Marx;
e é nesse sentido que escrevi que o comunismo se define pelo
domínio do cultural (
Critique de l'air du temps
).
Mas este domínio pode tomar uma outra forma, a definida no programa dos
neocons dos Estados Unidos: ditadura absoluta de mercado (ou seja do grande
capital dos oligopólios), "democracia" consensual esvaziada de
todo o alcance contestatário e renovador, afirmação
violenta da pertença identitária às comunidades
(religiosas e "raciais" para empregar a própria linguagem dos
Neocons). Seria errado subestimar o perigo que estas opções
representam. Pois mesmo se se evidencia que a sua expressão pelos
Neocons é extrema e raia por vezes a extravagância, as
tendências da evolução vão nesse sentido por toda a
parte, nos Estados Unidos, na Europa, no resto mundo. O modelo da
"democracia/direitos do homem" proposto pelas classes dirigentes
constitui o pedestal e a mascarada, que na realidade está longe de
aparecer como tal para muitos. Este modelo de domínio do
político é reforçado e não contrariado
pela redução do papel do Estado, que a doutrina liberal
pretende legitimar em termos de reforço da democracia posta em
acção pela sociedade civil. Esta está concebida e
construída numa pirâmide de subconjuntos de para-cidadãos
que se dão a aparência de serem activos quando na realidade
estão despojados de todo poder real, trabalhando em conjunto na
construção de consensos vazios de conteúdo. O modelo
trata igualmente a "cultura" no modo plural, tendo rejeitado o
universalismo, glorificado a "diferença" e adaptado o ponto de
vista do "culturalismo". Permite então à
política de dominação que procura instrumentalizar as
"diferenças" em questão.
Os principais caracteres prováveis do modo de gestão
económica desta alternativa ultra reaccionária transpareciam
já na "nova era do capitalismo":
financeirização que reforça a centralização
dos postos de comando em benefício de pequenos grupos,
afirmação de novas formas "mafiosas" da classe
dirigente tornando a sucessão dos valores burgueses tradicionais, etc.
No plano mundial a economia em questão é a do "apartheid
à escala mundial". Ela implica assim, como prevê
expressamente o projecto de Washington e da NATO, a "guerra
permanente" do Norte contra o Sul. D. Ellsberg lembra-nos que o seu custo
poderia ser de seiscentos milhões de vítimas!
5- Reconstruir o internacionalismo dos povos perante o imperialismo
O liberalismo económico e o imperialismo constituem as duas faces
indissociáveis da mesma realidade do capitalismo dominante da nossa
época. Que o qualifiquem de "novo capitalismo" (para de certa
maneira o elogiar), de capitalismo "cognitivo" ou de outro modo nada
muda à natureza do desafio com que os povos se defrontam.
Não haverá saída humana para o sistema mundial
"pós liberal" sem que esta se abra para as
relações internacionais realmente "pós
imperialistas". À falta disso a crise desembocará num futuro
ainda mais sombrio, um sistema neo-tributário e certamente super
imperialista.
Conjugando as análises que aqui propuz tanto no que diz respeito
à Europa como aos Súis
(les Suds),
verifica-se que os "movimentos" de protesto e de luta estão
longe de ter desenvolvido uma visão estratégica alternativa
coerente e forte, à altura dos desafios. É preciso ter a coragem
lúcida de o dizer. Demasiados "movimentos" autocongratulam-se
mutuamente pelas suas acções (perfeitamente legítimas) sem
julgar necessário ir mais longe, ainda menos colocar ênfase nas
insuficiências. Uma certa ideologia do "movimento" pretende
que a soma de todas estas resistências e lutas produza por si mesma a
alternativa. Nem a história nem a reflexão teórica e a
observação da realidade confirmam este ponto de vista
fácil.
Os povos fazem a sua história, mas nos limites das possibilidades
objectivas oferecidas na sua época, tem sido dito. Ora acontece
justamente que as possibilidades objectivas oferecidas pelo desenvolvimento
tecnológico moderno são imensas: todos os problemas materiais
maiores de toda a humanidade poderiam ser resolvidos. O obstáculo
é constituído pelas lógicas da rentabilidade financeira
que o capitalismo impõe. Libertos da sua submissão a estas
lógicas os povos dariam à crise do sistema a saída humana
desejada. Por outras palavras, o futuro depende das opções
ideológicas e da invenção de formas de
organização política adequadas. Ou ainda: o socialismo
mundial não é apenas necessário, é objectivamente
possível.
Esta proposição não significa que a resposta ao desafio
seja "fácil". A inversão necessária no sistema
das ideias e dos valores dominantes que a proposição implica
é com efeito de uma amplitude gigantesca. Supõe que os povos dos
centros do sistema em particular os europeus reinventem uma
cultura de esquerda autêntica, em ruptura com o capitalismo e o
imperialismo. Que à longa série dos capítulos sucessivos
que constituíram a "cultura política da esquerda
europeia" (as Luzes, a Revolução francesa, o movimento
operário e o marxismo, a Revolução Russa) o
imaginário dos povos europeus se revele capaz de inventar um
capítulo novo. Supõe que os povos das periferias a zona
de tempestades se libertem por sua vez das ilusões de um
desenvolvimento possível no quadro da globalização
capitalista e dos fantasmas de alternativas passadistas e que formulem
alternativas de uma nova desconexão que responda aos desafios e
às possibilidades da nossa época. Supõe que uns e outros
reinventem formas de organização e de acção
políticas adequadas e eficazes, pois a agenda das exigências
é pesada de perguntas ainda sem respostas convincentes.
Indicarei aqui apenas, em termos muito breves, alguns dos eixos principais do
desafio tal como os vejo:
i) definir novos assuntos históricos capazes de dominar as
evoluções e de lhes dar as direcções desejadas.
ii) definir o desafio estratégico político que proponho
"resumir" nos termos seguintes: conceber programas capazes de
associar (e não dissociar) a) o progresso social; b)
avanços
democráticos, c) o respeito das Nações e dos povos.
Isto
implica entre outras coisas conceber uma União Europeia respeitosa das
Nações e não construída contra elas.
iii) combinar a socialização pelo mercado e uma
socialização pela democracia chamada a afirmar-se cada vez mais
progressivamente.
iv) combinar a "competição" e a
"solidariedade", tomando a medida da superioridade da solidariedade,
que, através da história, esteve mais na origem do progresso do
que a concorrência.
v) traduzir em termos concretos as políticas de regulação
e de protecção eficazes para avançar em
direcção a um desenvolvimento multidimensional, socialmente
equitativo, e de duração ecológica, o que implica que se
atribua à "lei" uma autoridade superior à do
contrato" (conforme com a tradição europeia que
também aqui está em conflito com a dos Estados Unidos).
vi) tomar a medida exacta das evoluções demográficas do
continente europeu (o "envelhecimento" que não é
"negativo" excepto para aqueles a quem só interessa a
maximização do lucro mas o produto do progresso da
humanidade), dar-lhes respostas correctas em termos de migrações
(fundadas na rejeição da perspectiva comunitarista) e em termos
de "financiamento de reformas" (fundadas sobre o princípio da
repartição e não naquele dos Fundos de Pensões que
opõem as gerações).
vii) identificar os constituintes de blocos hegemónicos nacionais,
populares e democráticos, anti-imperialistas nas condições
concretas dos diversos países do Sul e formular objectivos
estratégicos da etapa que lhes corresponde.
Avanços nestas direcções tornam-se sinónimos de
construção progressiva do internacionalismo dos povos. Trata-se
com efeito de articular as lutas dos povos do Norte (através da
recomposição da cultura de esquerda europeia) e as dos povos do
Sul. Este internacionalismo necessário dos povos de todos os
povos não se pode fundar sobre conceitos vagos de
"solidariedade humana à escala mundial", que frequentemente
frisam a caridade ou a indigência da análise. A luta contra a
"pobreza", "a boa governação", a
afirmação dos interesses comuns da humanidade diante dos desafios
ecológicos (rarefacção dos recursos,
deterioração dos climas) são emblemáticos deste
método "idealista" (no sentido pejorativo do termo) que ignora
os interesses dos grupos sociais afectados e os seus conflitos eventuais. O
internacionalismo em questão deve ser fundado sobre a
identificação de interesses comuns, diante de um
adversário comum que não se pode qualificar senão de
"capitalismo imperialista".
No seu tempo, a Terceira internacional leninista depois maoísta havia
construído alianças mundiais que respondiam em teoria e em
parte, pelo menos a um desafio análogo, formuladas nas
condições e nos limites da sua época. Não se trata
de produzir um
remake
deste capítulo da história, definitivamente encerrado. A nova
articulação das lutas anti-imperialistas no Norte e no Sul
está para inventar praticamente de A a Z.
Sem pretender estar à altura de formular mais do que a questão
que nos aqui nos preocupa, proporei considerar que esta
construção passa primeiro pela derrota do projecto dos Estados
Unidos de controle militar do planeta. Esta é, na minha análise,
a condição necessária sem a qual todo o avanço
democrático ou social realizado aqui ou ali permanecerá
extremamente vulnerável.
O internacionalismo dos povos não exclui o reconhecimentos de
"contradições do seio do povo". Sendo o povo que se
trata aqui é o do Planeta, estas contradições expressam-se
não apenas no seio de um povo em especial mas igualmente entre os povos
do mundo. É a razão pela qual o respeito da autonomia das
Nações constitui o único pedestal sobre o qual pode ser
construído o internacionalismo. O argumento aqui desenvolvido
não é do "culturalismo" pelo qual se faz da
singularidade cultural um motivo de rejeição da
aspiração universalista. Sem dúvida a singularidade dos
percursos históricos é uma realidade e como tal não deve
jamais ser ignorada e desprezada. Mas para lá desta platitude, a
modernidade construída pelo capitalismo sendo fundada sobre a
inserção desigual dos povos na mundialidade, a
emancipação (em nome dos valores universais que ela sublima)
passa pela construção de um mundo multipolar. A receita liberal
que consiste em submeter o planeta inteiro às mesmas "regras"
(pelo menos na aparência senão na realidade já que a
realidade é sempre a "de dois pesos e duas medidas" em favor
dos poderosos) produz necessariamente o aprofundamento das desigualdades.
Se a construção do internacionalismo dos povos releva em
definitivo da responsabilidade dos povos (por distinção dos
"governos"), isto é, as classes trabalhadoras como os
movimentos e as organizações que são as suas, o combate
para avançar nesta direcção não pode negligenciar
as contradições (embora "secundárias") entre as
classes dirigentes (ou seja, os Estados). Reenvio às propostas de
leitura que fiz dos conflitos Norte-Sul em curso de cristalização
(entrevista de S. Amin por Rémy Herrera,
50 ans après Bandoung,
Recherches Internationales 2004).
Um outro mundo melhor bem entendido é possível. As
condições objectivas existem para que possa ser assim. Não
há determinismo histórico anterior à história. As
tendências inerentes à lógica do capital embatem na
resistência de forças que não aceitam os efeitos. A
história real é então o produto deste conflito entre a
lógica da expansão capitalista e as que decorrem da
resistência de forças sociais vítimas da sua
expansão. O desenvolvimento de lutas sociais pode levar ao poder
blocos hegemónicos diferentes daqueles que governam a ordem neoliberal
globalizada actual, fundadas sobre compromissos entre os interesses sociais de
que se reconhece a diversidade e a divergência (blocos de compromisso
capital-trabalho nos centros capitalistas, blocos
nacionais-populares-democráticos anti-comprador nas periferias). Nesse
caso o Estado encontra ampla margem de manobra no quadro de um sistema mundial
fundado no princípio da multipolaridade negociada. É preciso
trabalhar para que seja assim. A multipolaridade é então
sinónimo de margem de autonomia real para os Estados. Esta margem
será utilizada de uma maneira dada definida pelo conteúdo social
do Estado em questão.
O momento actual é caracterizado pelo desenvolvimento de um projecto
norte americano de hegemonismo à escala mundial. Este projecto é
o único a ocupar hoje toda a cena. Não há mais
contra-projecto visando limitar o espaço submetido ao controle dos
Estados Unidos, como era o caso na época do bipolarismo (1945-1990);
para lá das suas ambiguidades de origem o próprio projecto
europeu entrou numa fase de apagamento; os países do Sul (o grupo dos
77, os Não Alinhados) que tiveram a audácia no decorrer do
período de Bandung (1955-1975) de opor uma frente comum ao imperialismo
ocidental renunciaram a isso; a própria China, que se manteve isolada,
tem a ambição quase única de proteger o seu projecto
nacional (de resto também ele ambíguo) e não se posiciona
como parceiro activo na modelação do mundo.
O imperialismo colectivo da tríade é o produto de uma
evolução real do sistema produtivo que produziu a solidariedade
dos oligopólios nacionais dos centros do sistema que se expressa no seu
cuidado de "gerir em conjunto", e em seu proveito, o mundo. Mas se a
"economia" (entendida como a expressão unilateral das
exigências dos segmentos dominantes do capital) aproxima o país da
tríade, a política divide as suas nações. O
potencial trazido pelo conflito das culturas políticas, apelando
efectivamente a pôr fim ao atlantismo, fica então hipotecado pelas
opções das esquerdas majoritárias (em termos eleitorais,
os partidos socialistas europeus), aliados ao social-liberalismo.
A Rússia, a China e a Índia, são os três
adversários estratégicos do projecto de Washington. Os poderes em
vigor nestes três países tomam provavelmente uma consciência
crescente. Mas parecem acreditar que podem manobrar sem ferir directamente a
administração dos Estados Unidos. Uma aproximação
euro-asiática (Europa, Rússia, China e Índia) que
então certamente arrastaria o resto da Ásia e da África e
isolaria os Estados Unidos, é certamente desejável. Há
alguns sinais nesse sentido. Mas estamos ainda longe de ver a sua
cristalização por fim à escolha atlantista da Europa.
Finalmente, o Sul em geral já não tem projecto próprio
como foi o caso na era de Bandung (1955-1975). Sem dúvida as classes
dirigentes dos países ditos "emergentes" (a China, a Coreia, a
Ásia do Sudeste, a Índia, o Brasil e alguns outros) perseguem
objectivos que elas parecem definir bem e para a realização dos
quais os seus Estados agem. Estes objectivos resumir-se-iam na
maximização do crescimento no seio do sistema da
globalização. Estes países dispõem ou
julgam dispor de um poder de negociação quer lhes
permitiria tirar melhor proveito desta estratégia
"egoísta" do que numa vaga "frente comum"
construída com os mais fracos que eles. Mas as vantagens que podem
obter dessa forma são particulares aos domínios singulares que os
interessam e não põem em causa a arquitectura geral do sistema.
Eles não constituem portanto uma alternativa e não dão a
este vago projecto (ilusório) de construção de um
"capitalismo nacional" a consistência que define um verdadeiro
projecto societário. Os países do Sul mais vulneráveis (o
"Quarto mundo") nem têm projecto próprio de natureza
análoga, e o produto eventual de "substituição"
(os fundamentalismos religiosos ou etnicistas) não merece este
qualificativo. Também é o Norte que toma a iniciativa
única de avançar "para eles" (dever-se-ia dizer
"contra eles") os seus próprios projectos, como a
associação União Europeia - ACP (e os "acordos de
parceria económica" chamados a substituir os acordos de Cotonou com
os países de África, das Caraíbas e do Pacífico), o
"diálogo euro-mediterrânico", ou os projectos
americano-israelenses respeitantes ao Médio Oriente e mesmo o
"grande Médio Oriente".
Nota do tradutor
[1]
Enclosures:
A expressão designa o processo de expulsão das suas terras dos pequenos
proprietários britânicos no fim do século XVIII, que pôs uma grande massa
de gente na miséria e a vaguear pelo país. Esta massa de gente tornada
miserável foi a base do capitalismo, pois veio a constituir o proletariado da
Revolução Industrial.
Para uma explicação melhor ver Ellen Meiksins Wood,
The Origin of Capitalism
, Monthly Review Press, 1999, 138 pgs., ISBN 1-58367-000-9.
Se efectuar encomendas à Amazon.fr através dos links nesta
página resistir.info poderá receber uma pequena comissão.
Artigos de Samir Amin publicados em resistir.info:
A Revolução Tecnológica no coração das contradições do capitalismo senil
Por uma renovação da solidariedade dos povos do Sul
As condições para um sistema global alternativo baseado na justiça social e internacional
A Índia, uma grande potência?
O imperialismo americano, a Europa e o Médio Oriente
Ajudas públicas e protecção dos agricultores: Falsos problemas e verdadeiros desafios
Pobreza mundial, pauperização & acumulação de capital
A ideologia americana
A ambição desmedida e criminosa dos EUA
Imperialismo e globalização
A propósito dos motins nos subúrbios franceses
[*]
Director do Fórum do Terceiro Mundo,
Presidente do Fórum Mundial das Alternativas.
Intervenção apresentada em Bamako, no Fórum Social Mundial
Descentralizado, a 18/Janeiro/2006.
Este ensaio encontra-se em
http://resistir.info/
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