Os objectivos para o desenvolvimento do milénio
Uma crítica do sul
Em Setembro de 2000, na Cimeira Milénio das Nações Unidas,
os 191 países membros da ONU acordaram um conjunto de oito Objectivos
para o Desenvolvimento do Milénio
(Millenium Development Goals)
para as nações mais pobres do mundo. Estes objectivos, a serem
concretizados até 2015, foram desde sempre o cerne das questões
políticas discutidas e das acções relativas ao
desenvolvimento sócio-económico. Encontros e conferências
sobre os objectivos sob a égide da ONU e de elementos governamentais dos
países membros realizaram-se regularmente desde 2001, e mais
recentemente na Cimeira 2005 Milénio + 5. O propósito destes
encontros e conferências foi reiterar os objectivos e reafirmar o
compromisso dos países para com ele, bem como para assessorar a
extensão, para a qual o progresso tem vindo a apontar. A maioria dos
Objectivos do Desenvolvimento para o Milénio pode ser vista à
primeira vista como inquestionável. Contudo, não resultaram de
uma iniciativa do próprio Sul, mas foram trazidas primariamente pela
tríade (EUA, Europa e Japão), e foram co-patrocinados pelo Banco
Mundial, pelo FMI, e pela OCDE. Tudo isto levantou a questão de saber se
eles são o disfarce ideológico (ou pior) para iniciativas
neoliberais. A crítica sistemática e reveladora de Samir Amin aos
Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio é assim da maior
importância. Os próprios objectivos estão anexos a este
artigo. A declaração adoptada pela assembleia geral está
disponível em
http://www.un.org/millennium/declaration/ares552e.pdf
.
- Ed. da Monthly Review
Os Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio (ODM) foram adoptados
por aclamação em Setembro de 2000 por uma resolução
da Assembleia Geral da ONU intitulada "Declaração do
Milénio das Nações Unidas". Esta
inovação processual, chamada de "consenso", contrasta
bastante com a tradição da ONU, que sempre requereu que textos
deste tipo fossem cuidadosamente preparados e discutidos a uma grande
profundidade em comités. Isto reflecte simplesmente uma mudança
no equilíbrio do poder internacional. Os EUA e os seus aliados europeus
e japoneses são agora capazes de exercer uma hegemonia sobre uma ONU
domesticada. De facto, Ted Gordon, bem conhecido consultor da CIA, foi quem
traçou os objectivos do milénio!
É feita a afirmação de que os ODM siguem as
conclusões alcançadas no ciclo de cimeiras organizado na
década de 90. Isso é ir longe de mais. Os encontros
preparatórios para estas cimeiras tentaram uma coisa nova ao organizar
assembleias dos chamados representantes da sociedade civil em paralelo com as
conferências oficiais onde apenas os representantes dos estados tinham
assento. Embora as coisas tenham sido organizadas para reservar os melhores
lugares para as ONG´s caritativas, as quais são
beneficiárias do apoio financeiro de grandes fundações e
estados, e geralmente para excluir as organizações populares que
combatiam por progressos sociais e democráticos
(organizações populares autênticas são sempre pobres
por definição), por vezes as vozes destas últimas foram
ouvidas. Nas próprias conferências oficiais, os pontos de vista
da tríade e do Sul divergiram amiúde. É muitas vezes
esquecido que as propostas da tríade foram rejeitadas em Seattle,
não apenas nas ruas, mas também nos estados do Sul. Também
é importante recordar que a reconstrução (ou pelo menos os
primeiros sinais de reconstrução) de um grupo (se não uma
frente) do Sul teve lugar em Doha. Todas estas divergências foram
suavizadas pela suposta síntese dos ODM. Em vez de se formar um
comité genuíno com o objectivo de discutir o documento,
preparou-se um esboço nos bastidores de uma agência obscura. O
único denominador comum está limitado à expressão
da piedosa esperança de reduzir a pobreza. No que se segue, examinarei
como estes objectivos estão formulados e as condições
exigidas para alcançá-los.
OS OBJECTIVOS OFICIAIS PARA O 'DESENVOLVIMENTO' DO MILÉNIO
Oito conjuntos de objectivos foram definidos para os próximos quinze
anos (2000-15). O cumprimento de cada um dos alvos que os definem
especificamente é baseado em indicadores mensuráveis, geralmente
aceitáveis no seu todo.
Cada um destes objectivos é certamente recomendável (quem
desaprovaria a redução da pobreza ou a melhoria da
saúde?). Contudo, a sua definição é amiúde
extremamente vaga. Ainda assim, debates relacionados com as
condições requeridas para alcançar os objectivos
são muitas vezes dispensados. É assumido sem questionamento que o
liberalismo é perfeitamente compatível com o cumprimento dos
objectivos.
Objectivo 1: Redução da pobreza extrema e da fome à metade.
Isto não é senão uma fórmula encantatória
vazia enquanto as políticas que geram pobreza não forem
analisadas e denunciadas e propostas as alternativas.
Objectivo 2: Alcançar a educação primária universal.
A UNESCO dedicou-se a este objectivo em 1960, esperando
alcançá-lo em dez anos. Foi feito progresso durante as duas
décadas subsequentes, mas tem-se perdido terreno desde então. A
quase óbvia relação entre este terreno perdido, a
redução da despesa pública, e a privatização
da educação não é examinada nem na prática
nem em teoria.
Objectivo 3: Promover igualdade de género e dar poder às mulheres.
A igualdade em questão está reduzida ao acesso à
educação e a delegação de poder é medida
pela proporção de mulheres assalariadas. Os fundamentalistas
neoconservadores cristãos dos EUA, Polónia e alhures, os
muçulmanos da Arábia Saudita, Paquistão e outros
países, e os fundamentalistas hindus concordam em eliminar qualquer
referência aos direitos das mulheres e da família. Sem
discussão, declarações sobre esta questão
são apenas conversa fiada.
Objectivos 4, 5 e 6: (Relativos à Saúde) reduzir a mortalidade
infantil para dois terços e a mortalidade maternal em três
quartos; parar com a disseminação de doenças
pandémicas (SIDA, malária, tuberculose).
Os meios implementados nestas áreas pressupõem que sejam
completamente compatíveis com a privatização extrema e o
respeito total pelos "direitos de propriedade intelectual" das
corporações transnacionais e, bastante curiosamente, são
recomendados no Objectivo 8 relativo à suposta parceria entre o Norte e
o Sul!
Objectivo 7: Garantir a sustentabilidade ambiental.
Um princípio geral é afirmado ("integrar os
princípios do desenvolvimento sustentável" em
políticas nacionais e globais), mas nenhum conteúdo definido
é tornado explícito. Além disso, qualquer
menção da recusa dos EUA em promover as condições
necessárias para a protecção ambiental (i.e., a sua
rejeição do Protocolo de Quioto) é cuidadosamente evitada.
Pressupõe-se, pois, que a racionalidade da estratégia
económica capitalista é compatível com os requisitos do
"desenvolvimento sustentável". Não é obviamente
o caso já que a estratégia capitalista é fundada sobre o
conceito do desconto rápido do tempo económico (com as
decisões do investimento do governo a nunca excederem uns poucos anos no
máximo), enquanto que as questões levantadas aqui dizem respeito
ao longo prazo. Os objectivos específicos estão assim de facto
reduzidos a nada de mais: reduzir para metade a população que
não tem acesso a água potável, melhorar as
condições de vida nos bairros de lata dois objectivos
vulgares da simples saúde pública.
Os critérios para medir os resultados (emissões de CO
2
, alteração na camada do ozono) tornam possível sem
dúvida monitorizar a degradação do ambiente, mas
não o diminuem certamente. Note-se a estranha timidez dos redactores
relativamente à biodiversidade (não se trata de infringir os
grandes direitos das transnacionais!): eles propõem-se apenas
"observar" a evolução das áreas dos
territórios protegidos da destruição da biodiversidade!
Mas acima de tudo não travá-la!
Objectivo 8: Desenvolver uma parceria global para o desenvolvimento.
Os redactores trataram imediatamente de estabelecer uma equivalência
entre esta "parceria" e os princípios do liberalismo ao
declarar que o objectivo é estabelecer um sistema financeiro
multilateral e comercial aberto! A parceria torna-se assim sinónima de
submissão às exigências dos poderes imperialistas.
Progresso em acesso ao mercado é medido pelo volume de
exportações no PIB (um aumento neste ratio é assim
sinónimo de progresso independentemente do preço social!),
progresso nas condições de não-discriminação
pela redução dos subsídios.
Para prosseguir com esta "parceria liberal" requer-se, no fim, nada
mais do que lutar contra a pobreza (o único objectivo "social"
permitido). A isto é acrescentado, como cabelo na sopa, "boa
governação", a frase preferida pelo establishment dos
Estados Unidos que nunca é definida e é adoptada acriticamente
pelos europeus e pelas instituições do sistema global (ONU, Banco
Mundial, etc.).
Muitos objectivos são acrescentados a este texto completamente
contraditório, os quais completam suas lacunas e apresentam
recomendações. Seleccionei cinco deles para um exame mais detido:
Perdão de parte da dívida aos países pobres
mais pesadamente endividados.
Na verdade, o programa implementado a este respeito para os países
fortemente endividados impõe uma tutela genuinamente colonial sobre
eles. Que os governos dos países em questão tenham internalizado
o abandono da sua soberania em nada altera as coisas. Na verdade, no passado,
chefes de estado por vezes abdicaram face à colonização.
Mas tal abdicação nunca fora aceite como legítima pelos
povos envolvidos.
Tratar de forma abrangente dos problemas da dívida dos países em
desenvolvimento através de medidas nacionais e internacionais para
torná-la sustentável a longo prazo.
Esta exortação não é acompanhada por qualquer
informação relativa ao que se deve seguir
(negociações internacionais? dentro de que estrutura?) ou aos
princípios sobre quais tais medidas deveriam ser fundamentadas.
Contudo, algumas coisas razoáveis podem ser ditas sobre o assunto, tais
como a necessidade de uma auditoria que torne possível classificar as
dívidas (imoral, ilegal, aceitável...) e uma
elaboração de legislação que torne possível
definir para o futuro as condições legais das dívidas e a
criação de tribunais encarregados da aplicação da
lei nesta área. É perfeitamente óbvio que tudo isto
é ignorado pelos redactores dos ODM!
Em cooperação com as companhias farmacêuticas, proporcionar
acesso a medicamentos essenciais baratos nos países em desenvolvimento.
O significado da intenção generosa em possibilitar acesso a
medicamentos é imediatamente anulado pela especificação de
que isto seria "em cooperação com a indústria
farmacêutica", precisamente aqueles que proíbem toda a gente
de por em causa o seu monopólio abusivo!
Em cooperação com o sector privado, tornar disponível os
benefícios das novas tecnologias mormente tecnologias de
informação e comunicação.
Aqui novamente uma intenção é sujeita a uma
condição que a esvazia de qualquer significado "em
cooperação com o sector privado"!
Mais assistência oficial generosa ao desenvolvimento para países
comprometidos em reduzir a pobreza.
Há melhor comédia do que esta proposta, infinitamente repetida
nos últimos cinquenta anos por aqueles que são
responsáveis pela sua implementação e que no entanto nunca
a concretizam?
OS OBJECTIVOS REAIS DO CAPITAL DOMINANTE
Um exame crítico da formulação dos objectivos bem como da
definição dos meios que são requeridos para
implementá-los apenas pode levar â conclusão de que os ODM
não podem ser levados a sério. Uma litania de esperanças
piedosas não compromete ninguém. E quando a expressão
destas esperanças piedosas é acompanhada por
condições que no essencial eliminam a possibilidade delas se
tornarem realidade, deve-se formular a pergunta: não estão os
autores do documento a perseguir outras prioridades que nada têm a ver
com "redução da pobreza" e tudo o mais? Neste caso,
não deveria o exercício ser descrito como pura hipocrisia, como
atirar areia para os olhos daqueles que estão a ser forçados a
aceitar os ditames do liberalismo ao serviço de interesses bastante
particulares e exclusivos do capital globalizado dominante?
Além disso, os ODM não podem ser verdadeiramente levados a
sério pelos seus próprios promotores na tríade
imperialista, os quais implementam apenas quando lhes é conveniente e
ignoram-nos em caso contrário, nem pelos estados do Sul que, não
querendo correr riscos agora, se abstêm de rejeitar formalmente as
propostas. Noutra altura, um texto deste tipo não teria sido adoptado e
os estados do Sul teriam, pelo menos, imposto um compromisso.
Os ODM fazem parte de uma série de discursos que têm por objectivo
legitimar as políticas e práticas implementadas pelo capital
dominante e por aqueles que o apoiam, i. e., em primeiro lugar os governos dos
países da tríade, e em segundo os governos do Sul. Os verdadeiros
objectivos, reconhecidos explicitamente como tais, são:
1- Privatização extrema, destinada a abrir novos campos para a
expansão do capital.
Tal privatização levanta a questão da existência da
propriedade nacional do estado, a qual deveria ser liquidada em mercados
livres, inclusive pelo capital estrangeiro. Para além disso, a
privatização aponta para a eliminação de
serviços públicos, em especial a educação e a
saúde. Aqui, as ideias desenvolvidas nos ODM relativas à
eliminação da iliteracia e à melhoria da saúde
perde toda a credibilidade. A privatização da propriedade e o
acesso a importantes recursos naturais, em especial o petróleo e a
água, facilita a pilhagem destes recursos para o esbanjamento da
tríade, reduzindo o discurso do desenvolvimento sustentável a uma
pura retórica vazia.
2- A generalização da apropriação privada da terra
agrícola.
Tal como os produtos agrícolas e alimentos, a terra também tem
que estar sujeita à lei geral do mercado. Esta ofensiva geral aponta
para nada menos do que a política extensiva de "enclosures"
(referente às "enclosures" implementadas na Inglaterra dos
séculos XVII - XVIII e depois expandida ao resto da Europa no
século XIX) ao mundo inteiro. O seu êxito levaria à
destruição das sociedades camponesas que constituem metade da
humanidade. Esta destruição, já em andamento (e o
liberalismo gostaria de ver o tempo a acelerar), é já a grande
causa do pauperização do terceiro mundo, a qual resulta na
migração do campo para os subúrbios urbanos. Porém,
isso é de somenos importância, já que a minoria dos
chamados modernos produtores rurais, que sobreviverão ao massacre, e
estarão sujeitos às exigências do agronegócio,
produzirão superlucros que este último pretende capturar. Nada
mais importa.
3- "Abertura" comercial dentro de um contexto de
desregulação máxima.
É um meio de remover todos os obstáculos à
expansão de um comércio que é tão desigual quanto
poderia ser em condições caracterizadas por um desenvolvimento
mundial polarizado e uma concentração crescente de poder nas
mãos de transnacionais que controlam o comércio de
matérias-primas e produtos agrícolas. O exemplo do café
ilustra os desastrosos efeitos sociais desta escolha sistemática.
Há vinte anos, todos os produtores de café recebiam nove mil
milhões de dólares e todos os consumidores pagavam 20 mil
milhões por este mesmo café. Hoje em dia, estes dois
números são respectivamente seis e 30 mil milhões. A
diferença entre eles está na gigantesca margem de lucro capturada
por um punhado de intermediários oligopolistas. Não é
preciso dizer que nestas condições campanhas a favor do chamado
comércio justo, mesmo quando os seus promotores são movidos pelas
mais impecáveis intenções morais, não estão
ao nível do desafio. A correcção destes termos de
comércio deteriorados para os produtores só pode ser obtida
através da intervenção política de autoridades
governamentais tanto através de legislação nacional
como de negociações internacionais e legislação.
4- A igualmente descontrolada abertura dos movimentos de capitais.
O pretexto falacioso avançado é que a desregulação
tornaria possível atrair capital estrangeiro. Todavia é bem
conhecido que a China, que atrai mais deste capital do que outros
países, tem mantido um controlo apertado sobre as empresas estrangeiras.
Por outro lado, investimentos directos estrangeiros são destinados a
pouco mais do que pilhar os recursos naturais. Na verdade, o FMI impôs
a abertura de "contas de capital" para facilitar o endividamento dos
EUA, permitir ao capital especulativo efectuar ataques de pilhagem, e sujeitar
as divisas do Sul à subvalorização sistemática.
Esta subvalorização, por sua vez, torna possível os
activos locais destes países serem comprados por quase nada, para a
vantagem evidente das corporações transnacionais.
5- Os Estados são proibidos em princípio de interferir nos
assuntos económicos.
Internamente, o estado é reduzido a estritas funções de
polícia. Internacionalmente, é reduzido a garantir o
serviço da dívida, como a primeira (e quase exclusiva!)
prioridade em gastos públicos. A dívida não é nada
mais do que uma forma particularmente primitiva de exploração e
pilhagem.
Este modelo é apresentado como sendo sem alternativa porque ele é
imposto pelas exigências "objectivas" da
globalização, as quais negam o poder dos estados nacionais. Na
verdade, a relação causal é exactamente o inverso: a esta
forma particular (entre outras possíveis) de globalização
está destinado o objectivo de destruir a capacidade das
nações e dos estados de resistir à expansão do
capital transnacional.
É por isso que todos estes princípios, adoptados livremente pelos
autores dos ODM, podem apenas produzir o que já descrevi noutro lado
como apartheid numa escala mundial, reproduzindo e acentuando a
polarização global. Como contraponto, a restauração
de uma margem de autonomia para os estados e o reconhecimento da legitimidade
da intervenção do estado (a definição mesmo de
democracia) dentro de uma perspectiva multipolar são as
condições iniludíveis exigidas para atingir os objectivos
sociais proclamados pelos ODM.
Na realidade, os objectivos sociais proclamados pelos ODM não constituem
os verdadeiros objectivos do exercício no seu todo. A sua suposta
embalagem democrática tem, por sua vez, de ser sujeita a uma
dúvida legítima. Nenhuma democracia poderá criar
raízes se não apoia o progresso social mas, ao invés vez
disso, estiver associada à regressão social. Esta é sem
dúvida a razão porque a noção insípida de
"governação" é servida como um acompanhamento da
retórica vazia dos ODM.
Os autores do documento parecem não ter prestado atenção
aos factos. No decorrer das três décadas que se seguiram à
Segunda Guerra Mundial, a mais taxa alta de crescimento conhecida na
história aconteceu ao mesmo tempo com pleno emprego e notável
avanço do movimento social e, se não sempre com
redução da desigualdade, pelo menos com a
estabilização de estruturas apontava para uma
distribuição dos rendimentos mais equitativa. Mas parece que,
como os sistemas vigentes naquele tempo regulavam os mercados, estes
procedimentos eram "irracionais" e os seus resultados
"maus". Ao longo das três décadas seguintes, com a
bem-vinda desregulação, houve um colapso de crescimento, um
aumento do desemprego de tirar a respiração, a
precarização e outras manifestações de
pauperização, e um amontoar de desigualdades. Todavia parece que
este sistema é ainda assim melhor e mais racional. Isto acontece
indubitavelmente porque nos sistemas anteriores a taxa de retorno do capital
estava na casa dos 4 a 8 por cento e desde então duplicou para 8 a 16
por cento.
O NOVO LIBERALISMO DOUTRINÁRIO
A questão central diz respeito ao conceito de desenvolvimento mantido,
explícita ou implicitamente, nos Objectivos para o Desenvolvimento do
Milénio. Pode ser formulado desta forma: Nos sucessivos sistemas
económicos e políticos globalizados dos tempos modernos, quem foi
forçado a ajustar-se a quem? Os sujeitos em causa podem ser classe ou
grupos sociais, regiões ou países.
Na lógica capitalista fundada sobre a propriedade privada, é o
capital (a firma) que comanda e emprega o trabalho. Os trabalhadores
não têm acesso directo aos meios de produção, os
quais não são usados para a sua satisfação. Na sua
expansão global, o capitalismo está a polarizar, isto é,
está fundado no ajustamento assimétrico. As periferias
são moldadas para servir o modelo de acumulação dos
centros dominantes. A ideologia do capitalismo ignora o conceito de
desenvolvimento substantivo, pois reconhece apenas a expansão de
mercados.
É significativo que o termo "desenvolvimento" apareça
apenas após a Segunda Guerra Mundial (durante o período colonial,
a exploração das colónias foi cinicamente
excluída), apoiado pelos governos dos estados asiáticos e
africanos que surgiram dos movimentos de libertação nacional.
Neste sentido, a conferência de 1955 de estados asiáticos e
africanos em Bandung foi o local de nascimento do projecto de desenvolver o
novo terceiro mundo. Era um projecto multidimensional de
modernização: da economia (através da
industrialização), da sociedade e do estado. Este projecto de
modernização aparece dentro de um tipo de
globalização e não é de todo um convite à
autarquia económica e cultural. Mas implicava que neste processo o
Norte se ajustaria às exigências de desenvolvimento do Sul,
desenvolvimento conceptualizado como um "alcançar"
(catching up).
A globalização neste contexto é pois reconhecida como
tendo de ser o resultado para além dos conflitos de
negociações entre parceiros que reconhecem a divergência
dos seus interesses. Na América Latina, o
desarrollismo
propõe um modelo análogo de desenvolvimento.
A globalização capitalista assenta em alianças sociais
transnacionais. Assim, os modelos de acumulação nos centros
dominantes e nas periferias dominadas não poderiam ser reproduzidos sem
cada um destes passos. O modelo "colonial", desafiado após a
Segunda Guerra Mundial, envolveu o comando de sociedades da periferia pelas
classes compradoras locais de uma dado tipo (mercadores intermediários,
grandes proprietários). O novo modelo resultante da
descolonização envolvia reformas sociais que privavam as antigas
classes compradoras do seu poder e substituíam por blocos
hegemónicos de um novo tipo (populismo nacional). Este modelo é
a base dos êxitos (não dos fracassos!) da
transformação económica e social do terceiro mundo nos
anos 50, 60 e 70. Mas foi sempre combatido com violência
pelos poderes da tríade imperialista.
A reviravolta da conjuntura política iniciada nos anos 80 trouxe-nos de
volta a tempos antigos, antes do desenvolvimento, ao qual na verdade mostrou a
porta. É significativo que a nova linguagem da ciência economia
dominante abandone mesmo este termo e o substitua por "ajuste
estrutural", isto é, ajuste das sociedades e economias do Sul
às exigências da busca da acumulação no Norte.
Simultaneamente, esta reviravolta no equilíbrio do poder em
benefício do capital aparece por todo o lado tanto no Norte como
no Sul como um fortalecimento da sujeição do trabalho ao
capital. O novo liberalismo doutrinário reconhece apenas mercados em
expansão, não a deliberada transformação
política de estruturas sociais e económicas.
Apesar de imposto com extrema brutalidade sobre as sociedades do Sul, o novo
modelo (neocolonial dizem alguns, mas o termo é pobre é na
verdade uma questão de pensamento "paleo-colonial") teve que
ser revestido de um discurso que lhe dá aparência de legitimidade.
Foi necessário reintroduzir a palavra "desenvolvimento" (como
nos Objectivos para o Desenvolvimento do Milénio) mas esvaziando-a de
todo significado. Isto foi feito reduzindo-a à luta contra a pobreza e
pela boa governação.
Uma série de documentos preparou esta revisão no sentido das
palavras. As agências acordaram administrar o resto do mundo (85 por
cento da população da terra, as periferias dominadas)
através do imperialismo colectivo (a tríade) que preenchia as
funções deles esperadas. O Banco Mundial (a que chamo o
Ministério de Propaganda do G7) elaborou, neste espírito,
documentos aflitivos intitulados Documentos de Estratégia da
Redução da Pobreza (Poverty Reducation Strategy Papers, PRSP). O
FMI (a autoridade colectiva monetária colonial da tríade)
impôs a prioridade do serviço da dívida, a própria
dívida sendo o meio de impor ajustamentos estruturais. A OMC, longe de
ser um instituição responsável pelo controlo do
comércio mundial, está dedicada ao objectivo de moldar os
sistemas produtivos das periferias às necessidades da expansão
comercial do Norte, isto é, a operar como um ministério colectivo
das colónias. A União Europeia alinhada com a ofensiva
geral da tríade imperialista integra as relações
entre a UE e o Grupo de Estados Africanos, das Caraíbas e do
Pacífico (ACP) dentro deste mesmo contexto, perseguido literalmente na
convenção para o desenvolvimento dos ACP.
Poder-se-ia perguntar por que é que os governos do países do Sul
subscreveram todos estes mandamentos delineados nos centros imperialistas. A
resposta, em termos gerais, é que deveríamos olhar para os blocos
sociais hegemónicos acima mencionados que tornam possível a
reprodução da globalização assimétrica.
Há uma nova classe compradora nos países da periferia que na
verdade deriva a sua existência do novo modelo de liberalismo
globalizado. Esta classe compradora participou nos arranjos do novo governo que
se seguiram à erosão dos modelos populistas nacionais inspirados
por Bandung.
Para ser mais preciso, é possível distinguir, dentre as
razões que levaram o Sul a "juntar-se ao liberalismo".
Há aquelas que são provavelmente exclusivas dos chamados
países emergentes (China em primeiro lugar). Nestes países, os
governos presentes vivem de ilusões: pensam em
"alcançar" (através de crescimento forte) enquanto
estão a ser construídos como as periferias industrializadas do
amanhã, e dominados pelos novos monopólios na base dos quais
centros imperialista reproduzem o seu domínio (monopólios de
tecnologia, acesso aos recursos naturais do planeta, e armas de
destruição maciça). Pensam em construir uma
"nação forte e independente", mas nessa conexão
devem ignorar que os EUA preparam "guerras preventivas" contra eles
que não lhes permitirá ter esta oportunidade. À
História indubitavelmente será dada a responsabilidade de
dissipar estas ilusões.
Aqui darei mais ênfase às lógicas oferecidos em
relação às regiões periféricas mais
vulneráveis, África em particular. O discurso desenvolvido nesta
matéria pelo pensamento dominante é bem conhecido: a
África é marginalizada na nova globalização.
É por sua própria culpa, tendo afundado num nacionalismo
excessivo durante o período de Bandung. Ela só pode ser sair
desta difícil situação se aceitar ser "mais
integrada" na globalização por uma abertura totalmente
descontrolada que permitirá ao capital estrangeiro
"desenvolvê-la". As misérias associadas a esta
opção, para a qual não há alternativa, será
apenas "transitória" e pode ser atenuada por programas de
"luta contra a pobreza". Esta opção exigirá,
além disso, administração política
democrática chamada "boa governação".
Este discurso abunda em contradições e
inadequações. A África não está menos
integrada na globalização do que outras regiões, mas
estava e está integrada de um modo diferente. As formas da nova
integração proposta, baseada na especialização
agro-mineral, não são novas mas são pelo contrário
um retorno ao antigo (paleo-colonial). Estas formas podem apenas acentuar o
empobrecimento e exclusão de enormes massas da população,
em especial os camponeses. Mas simultânea e independentemente, elas
facilitam a pilhagem dos recursos naturais do continente (petróleo,
minerais e madeira), que é o principal objectivo do grande capital
transnacional em África. Os investimentos estrangeiros directos
não virão para África para nada mais.
A responsabilidade das actuais equipas governamentais e por
detrás delas as novas classes compradoras não devem ser
desculpadas. Mas isso não absolve as forças dominantes nos
centros imperialistas do sistema global da sua responsabilidade.
A Nova Parceria para o Desenvolvimento da África
(New Partnership for Africa's Development, NEPAD)
é sem dúvida parte do novo pensamento liberal, mas parece que
não com grande convicção. Deveria ser lembrado que
originariamente por trás desta iniciativa estava a recusa justificada do
discurso racista "afro-pessimista" e a proclamação por
Thabo Mbeki em 1998 de que "os africanos devem e podem apropriar a
modernidade", um modo de indicar o renascimento da África a que ele
apelava. Mas Mbeki enveredou pelo mesmo discurso de especificar que esta
apropriação deveria ser feita "em cooperação
com os países desenvolvidos", ignorando, ou pretendendo ignorar,
que isso nunca sucedera até então. O NEPAD inclui mesmo no seu
título o termo "parceria", usado durante longo tempo pela
União Europeia e adoptado, por sua vez, pelo discurso do Milénio
das Nações Unidas.
No seu conteúdo, o documento fundador da NEPAD, New Partnership for
Africa's Development, NEOPAD) não é de facto muito coerente.
[1]
Identifica os gargalos que bloqueiam o desenvolvimento em África, que
identifica em todos os aspectos da realidade (infra-estruturas e energia,
educação e saúde, agricultura familiar e ambiente, e
tecnologias modernas, particularmente tecnologia de computadores), dando a
impressão de que leva em consideração as práticas
hostis do comércio mundial. Mas ao mesmo tempo, o documento alinha com
o pensamento liberal dominante: abandona a centralidade da indústria que
o Plano Lagos tinha, no seu tempo e com bom razão, tomado como o eixo
central do desenvolvimento para este que é o menos industrializado
continente da Terra. Adere a um modelo agro-mineral de crescimento
(paleo-colonial), e adopta o discurso da redução de pobreza.
Inquestionavelmente ainda mais sério, o documento da NEPAD alinha com o
pensamento liberal no discurso da "boa governação".
Isto é um conceito que é útil como meio para dissociar o
progresso democrático do progresso social, para negar a sua igual
importância e conexão inextricável um com o outro, e para
reduzir a democracia à boa gestão sujeita a exigências do
capital privado, uma gestão "apolítica" por uma
sociedade civil anódina, inspirada pela ideologia medíocre dos
Estados Unidos. Este discurso aparece no preciso momento em que a
interrupção na construção do estado (iniciada no
período Bandung) imposta pelo ajuste estrutural criou, não
condições para um avanço democrático mas, ao
invés disso condições para a mudança em
direcção à primazia das identidades étnicas e
religiosas (para-étnica e para-religiosa, de facto) que são
manipuladas por máfias locais, beneficiam de apoios externos, e muitas
vezes degeneram em "guerras civis" atrozes (na verdade conflitos
entre senhores da guerra). Como argumenta Bernard Founou-Tchuigoua, é
menos uma questão de parceria Norte-Sul (aqui UE/ACP) do que uma nova
fase no ajuste estrutural assimétrico.
A exposição dos documentos da NEPAD, as suas
hesitações ou carácter anódino, adquire o seu
significado neste contexto. Por exemplo, o desejo de aliviar a dívida
é expresso, mas isto é feito precisamente porque a dívida
cumpriu a sua função de impor o ajuste estrutural. O NEPAD
também propõe um desenvolvimento "integrado"
(Pan-Africano), tal como a UE, dando preferência a acordos com grupos
regionais africanos. Mas, no fim, este documento permanece, tanto quanto as
suas propostas sobre comércio, transferências de capitais, de
tecnologia e patentes estão relacionadas, alinhado com dogmas liberais.
Direi em conclusão que um sistema deste tipo dificilmente tem qualquer
futuro. Nem os ODM nem o NEPAD conseguirão atenuar a seriedade dos
problemas e diminuir os processos resultantes da involução
política e social. A legitimidade dos governos desapareceu. Assim,
estão maduras condições para a emergência de outras
hegemonias sociais que tornam possível um renascimento do
desenvolvimento concebido como deve ser: a combinação
indissociável de progresso social, avanço democrático e a
afirmação da independência nacional dentro de uma
globalização multipolar negociada. A possibilidade destas novas
hegemonias sociais está já visível no horizonte. Aposto
que no fim de 2015, ninguém vai propor uma folha de balanço das
realizações dos ODM ou da NEPAD, que há muito
estarão esquecidos.
[1]
O documento quadro da NEPAD foi adoptado pela 37ª Cimeira da
Organização de Unidade Africana em Julho de 2001 em Lusaca,
Zâmbia, e está disponível em
http://www.nepad.org/2005/files/inbrief.php
Apêndice: Os Objectivos da ONU para o Desenvolvimento do Milénio
Objectivo 1: Erradicar a fome e pobreza extremas;
Reduzir à metade a proporção de pessoas que vivem com menos
de um dólar por dia;
Reduzir à metade a proporção de pessoas que passam fome;
Objectivo 2: Alcançar a educação primária universal;
Assegurar que todas as crianças completem uma escolaridade
primária; plena
Objectivo 3: Promover a igualdade de género e conceder poder às
mulheres.
Eliminar a disparidade de género na educação
primária e secundária preferencialmente em 2005, e a todos os
níveis em 2015;
Objectivo 4: Reduzir a mortalidade infantil;
Reduzir em dois terços a taxa de mortalidade infantil entre
crianças com menos de cinco anos;
Objectivo 5: Melhorar a saúde maternal;
Reduzir em três quartos o rácio da mortalidade maternal;
Objectivo 6: Combater a SIDA, malária e outras doenças;
Travar e começar a reverter a disseminação da SIDA;
Travar e começar a reverter a incidência da malária e outras
doenças importantes;
Objectivo 7: Assegurar sustentabilidade ambiental;
Integrar os princípios de desenvolvimento sustentável em
políticas nacionais e programas; inverter a perda de recursos ambientais;
Reduzir à metade a proporção de pessoas sem acesso
sustentável à água potável;
Alcançar melhoramentos significativos nas vidas de pelo menos 100
milhões de moradores em favelas, em 2020;
Objectivo 8: Desenvolver uma parceria global com países em
desenvolvimento, desenvolver e implementar estratégias para trabalho
decente e produtivo para a juventude;
Desenvolver ainda um comércio livre e um sistema financeiro que tenha
regras previsíveis e não-discriminatórias, inclui um
compromisso para boa governação, desenvolvimento e
redução da pobreza nacional e internacionalmente;
Nomear as necessidades especiais dos países menos desenvolvidos. Isto
inclui tarifas e acesso livre de quotas para as suas exportações;
o aumento do alívio da dívida dos países pobres mais
endividados; o cancelamento da dívida oficial bilateral; e
assistência oficial ao desenvolvimento mais generosa para países
comprometidos na redução da pobreza;
Nomear as necessidades especiais dos países interior e dos pequenos
estados em desenvolvimento insulares;
Negociar de forma abrangente com os problemas de dívida dos
países em desenvolvimento através de medidas nacionais e
internacionais para tornar a dívida sustentável a longo prazo;
Em cooperação com os países em desenvolvimento,
desenvolver trabalho decente e produtivo para os jovens;
Em cooperação com as companhias farmacêuticas, providenciar
acesso a medicamentos essenciais baratos nos países em desenvolvimento;
Em cooperação com o sector privado, disponibilizar os
benefícios das novas tecnologias mormente tecnologias de
informação e comunicação;
Fonte:
http://www.un.org/ millenniumgoals/index.html
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[*]
Director do Fórum do Terceiro Mundo, em Dacar,
Senegal. Os seus livros mais recentes incluem
Obsolescent Capitalism: Contemporary Politics and Global Disorder
(Zed Books, 2004) e
The Liberal Virus: Permanent War and the Americanization of the World
(Monthly Review Press, 2004).
O original encontra-se em
http://www.monthlyreview.org/0306amin.htm
.
Tradução de Pedro Santos, a partir da versão em
inglês.
Este artigo encontra-se em
http://resistir.info/
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