"A Europa não existe:
o que há é simplesmente a face europeia do projecto
norte-americano"
por Samir Amin
[*]
entrevistado por Giuliano Battiston
[**]
Um capitalismo de rosto humano? "Pura ilusão".
Altermundialismo moderado? "Uma ingenuidade". Europa? "Ainda
não existe". Longe da retórica cautelosa do
politicamente correcto,
incansável dinamizador de alternativas políticas e
económicas ao dogma neoliberal dominante, o economista egípcio
Samir Amin fez da linguagem franca, do rigor analítico e da
paixão militante, os instrumentos de sua inveterada batalha para se
considerar antes o homem e as suas necessidades do que o lucro.
Partidário fervoroso da necessidade de acompanhar as
reivindicações de justiça social, e de exercer a critica
das desigualdades intrínsecas à globalização
capitalista, e de uma radicalização da luta política capaz
de unificar as diferentes energias dos movimentos altermundialistas, Samir Amin
é um autor extremamente frutífero. Os seus textos são
lidos e discutidos por todos os que pretendem transformar a heterogeneidade de
"movimentos" num actor político colectivo, e pelos que temem
as derivas politizadas dos mesmos.
P. De acordo com uma certa "vulgata" liberal e conservadora,
não só o mercado seria o único instrumento de
regulação da sociedade, como a própria
promoção e universalização dos direitos dependeria
dos processos de globalização económica. Como se poderia
articular a relação entre a globalização, na sua
forma actual, e direitos fundamentais?
R. O discurso da ideologia dominante, que estabelece uma absoluta igualdade
entre democracia e mercado, e baseando-se nesta premissa, sustenta que
não há democracia sem mercado e que o próprio
mercado crias as condições para o aprofundamento da democracia
, é um discurso vulgar, puramente propagandístico, que
não tem nada a ver com a realidade histórica nem com a sua
análise científica. Pelo contrario, há uma
contradição absolutamente fundamental nessa retórica
dominante que, reduzindo a democracia à sua dimensão meramente
política, e limitando-a à democracia representativa, a dissocia
da questão social que se supõe ser regulável pelo
funcionamento do mercado, ou melhor dizendo, de um mercado imaginário. A
teoria do capitalismo imaginário dos economistas convencionais, para
quem o mercado generalizado tenderia para o equilíbrio, supõe que
a sociedade é simplesmente composta pelo conjunto dos indivíduos
que a compõem, sem ter em conta as formas da organização
social, a pertença à família, à classe social,
à nacionalidade: esquecendo, pois, que para Marx era uma verdade natural
a saber: que os valores económicos estão
"incrustados" na realidade social.
P. Se existe uma contradição fundamental entre mercado global e
direitos fundamentais, com que instrumentos poderia ser construída uma
via que permitisse superar esta contradição?
R. Não tenho receitas, mas sugiro a abordagem do tema com a perspectiva
de lançar estratégias de luta comum em torno de alguns pontos
fundamentais, o primeiro dos quais assenta na ideia de que não pode
haver democracia autêntica sem progresso social. É um objectivo
que vai exactamente na direcção oposta ao discurso dominante, o
qual, como se viu, dissocia ambos os termos, e anda afastado do pensamento dos
bem-pensantes social-liberais e social-demócratas, que supõem que
os efeitos negativos do capitalismo podem ser contidos por meio de uma
regulação social parcial. Talvez fosse preferível esquecer
o termo "democracia" e falar bastante mais de
"democratização", entendida como um processo sem fim; e
recordar que a necessidade de associar a democracia ao progresso social
é um objectivo que diz respeito a todos os países do mundo.
Também nos países chamados democráticos a democracia
está em crise: precisamente porque, dissociada da questão social,
fica reduzida à democracia representativa, e a solução dos
problemas económicos e sociais é transferida para o mercado.
É uma via muito perigosa: na Itália, como noutros lugares,
você votou livremente (ou quase, dado que o voto está muito
condicionado pelos media), e no entanto, muita gente se questiona: porquê
votar, se o parlamento afirma que algumas decisões são impostas
pelo mercado e pela globalização? Deste modo, a democracia
vê-se deslegitimada, e corre-se o risco de se derivar para formas de
neofascismo suave.
P. De acordo com a sua análise, sempre existiram o capitalismo e a
globalização, mas depois da II Guerra Mundial teríamos
iniciado uma nova fase na qual entra a estratégia dos EUA de estender a
doutrina Monroe ao planeta inteiro. Quais são, em sua opinião, as
características desta nova fase da globalização, e quais
os objectivos prioritários da estratégia americana?
R. Esta nova fase assenta numa transformação da natureza do
imperialismo (falo de imperialismo, e não de "império"
como Toni Negri): se até final de II Guerra Mundial o imperialismo
conjugava-se no plural, e as potências imperialistas estavam em
permanente conflito entre si, então assistimos a uma
transformação estrutural que deu à luz o imperialismo
colectivo, a que chamo da "tríade": simplificando um pouco,
EUA, Europa e Japão, quer dizer, o grupo dos segmentos dominantes do
capital que têm interesses comuns na gestão do sistema mundial.
Este sistema, que representa a forma do novo imperialismo frente a 85% da
população mundial, "requer" a guerra. Este é
precisamente o ponto em que se manifesta o projecto do
establishment
americano, e que reflecte a orientação da maioria da classe
dominante norte-americana, disposta a controlar militarmente o planeta. Os EUA
optaram por desencadear o primeiro ataque ao Médio Oriente por uma
série de razões, mas por duas em particular: pelo petróleo
e pelo controle militar das principais regiões petrolíferas do
planeta, para exercer uma liderança incontestada, a fim de se constituir
numa ameaça permanente para todos os potenciais concorrentes
económicos e políticos. Mas também porque têm na
região, aquilo a que eu defino de o seu porta aviões fixo: o
Estado de Israel através do qual garantem um instrumento de
pressão permanente, que é utilizado na ocupação da
Palestina e, como se viu, é utilizado também na agressão
ao Líbano.
P. Você sustenta que o militarismo agressivo do EUA não é
tanto um sinónimo de força, mas bem mais, um meio de equilibrar a
sua vulnerabilidade económica. Poderia explicar melhor o que quer dizer
com isto?
R. De acordo com a teoria dominante, de que infelizmente é também
vítima grande parte da opinião pública europeia, a
supremacia militar dos EUA representaria a ponta do iceberg de uma
superioridade em fase terminal baseada na eficácia económica e na
hegemonia cultural. Mas a realidade é que os EUA estão numa
posição de vulnerabilidade extrema, que se manifesta no enorme
défice comercial com o estrangeiro, e dessa fragilidade deriva a
opção estratégica da classe dirigente dos EUA que
desemboca no uso da violência militar. Existem documentos do
Pentágono que demonstram que os EUA consideraram possível uma
guerra nuclear em que as vítimas pudessem chegar aos 600 milhões:
como escreveu Daniel Ellsberg, cerca de 100 holocaustos.
P. Frente ao protagonismo dos EUA, a Europa parece ainda incapaz de articular
um projecto político realmente alternativo. Que deveria a Europa fazer?
R. Por enquanto, e apesar de tantos europeus terem esperança nisso,
não acredito que a Europa esteja em condições de chegar a
ser um elemento alternativo à hegemonia do EUA. Teria que sair da NATO,
romper a aliança militar com os EUA e emancipar-se do liberalismo. No
entanto, actualmente, as forças políticas e sociais europeias
parecem interessadas em tudo menos num projecto desse tipo, até ao ponto
em que como fez um dia o velho PS italiano reforçaram
melhor o atlantismo e o alinhamento com a NATO e o liberal-socialismo. Hoje
não se vislumbra outra Europa. E neste sentido, a Europa não
existe: o projecto europeu é simplesmente a face europeia do projecto
norte-americano.
P. Porém, existe margem para construir "outra Europa", e foi
você mesmo que falou do conflito de culturas políticas que
opõe a Europa aos EUA.
R. As culturas políticas da Europa foram formadas no curso dos
últimos séculos em torno da polarização entre a
direito e a esquerda: quem estava a favor do Iluminismo, da
revolução francesa, do movimento operário, da
revolução russa, situava-se à esquerda; quem estava contra
isso, situava-se à direita. A história da Europa é a
história de culturas políticas do
"não-consenso", que estendem o conflito para além da
versão redutora da luta de classes. A cultura dos EUA tem uma outra
história, e que se formou como uma cultura do consenso: consenso sobre o
genocídio dos índios, sobre a escravatura, sobre o racismo. E
sobre o capitalismo, que nos EUA não foi posto em questão, e se
houver luta de classes, não haverá politização
dessa luta. Na realidade, as sucessivas migrações, graças
às quais se edificou o povo americano, substituíram a
formação de uma consciência política por uma
consciência comunitária. Assistimos hoje a uma
intenção de "americanizar" a Europa, e de substituir a
cultura do conflito por uma cultura do consenso: pretende-se que não
haja já direita nem esquerda, que não hajam já
cidadãos, mas apenas consumidores mais ou menos ricos.
P. O Fórum Social Mundial, de acordo com uma reconstrução
superficial que alcançou algum eco, teria nascido no rastro das
manifestações altermundialistas de Seattle. Porém, a
história do Fórum tem uma orientação muito menos
"ocidental" do que normalmente se pensa. Pode comentar?
R. O FórumSocial Mundial é tanto uma criação
ocidental que
o primeiro encontro deu-se no Brasil; depois e não por
casualidade os encontros seguintes deram-se em Bombaim, Bamako, Caracas
e Carachi, e o Foro, que começa amanhã, escolheu como sede
Nairobi. Convém não esquecer, para além disso, que em
Seattle a Organização Mundial do Comércio foi paralisada,
não pelos manifestantes norte-americanos, mas pelo voto da maioria dos
países em desenvolvimento. Um dos primeiros encontros que deram vida ao
FSM, foi o chamado "anti-Davos em Davos", uma
manifestação pequena, mas de grande valor simbólico
organizada em 1999 pelo Fó:rum Mundial das Alternativas,
graças ao
qual, os representantes das vítimas das políticas do capitalismo
liberal puderam discutir a agenda oficial de Davos. Éramos poucos, mas
representávamos grandes forças sociais: sindicatos hindus,
coreanos, brasileiros, organizações de mulheres e camponeses,
associações da África Ocidental, defensores dos direitos
sociais, movimentos brasileiros. Dali nasceu a ideia de programar um novo
encontro a uma escala maior.
22/Janeiro/2007
[*] Economista, presidente do Fórum Social realizado em Nairobi.
[**] Jornalista, de
Il Manifesto.
O original encontra-se em
http://www.sinpermiso.info/articulos/index.php
Esta entrevista encontra-se em
http://resistir.info/
.
|